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NÃO – Os novos bandeirantes
Daniel Calazans Pierri
Antropólogo, é membro da coordenação geral do CTI
(Centro de Trabalho Indigenista)
Quando, no ano passado, esquentou o debate sobre a proposta de emenda constitucional que visa transferir a responsabilidade de demarcar terras indígenas do Poder Executivo para o Congresso Nacional, a PEC 215, a reação dos povos indígenas foi imediata e se espalhou por todas as regiões do país.
Não há nenhum povo indígena que considere essa medida positiva, porque ela inviabilizaria qualquer demarcação futura ao passar a decisão final das demarcações para a mão dos grandes proprietários de terra, que têm enorme influência no Poder Legislativo, por meio sobretudo da bancada ruralista.
A primeira reação de impacto dos índios a essa proposta foi a ocupação do Congresso Nacional por delegações de povos de todo o país que se encontravam em Brasília por ocasião do Acampamento Terra Livre, realizado tradicionalmente em abril, por conta do "Dia do Índio", marcado na data de hoje.
A consequência dessa mobilização foi a instauração na Câmara de uma comissão paritária formada por índios e deputados que ouviu renomados juristas e especialistas, todos eles apontando para a inconstitucionalidade da proposta.
Ignorando a posição dessa comissão paritária, os parlamentares prosseguiram com a instalação de uma Comissão Especial formada quase que exclusivamente por ruralistas, o que motivou novas mobilizações dos indígenas, que organizaram a Semana Nacional de Mobilização Indígena, em setembro.
Dentro dessa onda de protestos, destacou-se a mobilização dos guarani-mbya em São Paulo, que denunciaram o simbolismo do orgulho dos paulistas em relação aos bandeirantes, personagens da história conhecidos pela crueldade com a qual assassinaram e escravizaram os guarani durante a colonização.
Em protesto contra a PEC 215, os guarani fecharam a rodovia dos Bandeirantes, que passa praticamente em cima da aldeia guarani do pico do Jaraguá, e afirmaram em manifesto que os ruralistas de hoje são os bandeirantes de ontem, pela violência com a qual têm tratado a questão indígena.
Os ruralistas ainda não desistiram da aprovação dessa medida que só atende aos seus interesses particulares e prosseguem na sua tramitação, promovendo audiências públicas utilizadas como palanques eleitorais que terminam por incitar o ódio contra os povos indígenas.
Em uma audiência realizada no município de Vicente Dutra (RS) e registrada em vídeo, o deputado federal Luís Carlos Heinze (PP-RS) chega a dizer, sem aparentar constrangimento, "que índios, quilombolas, gays e lésbicas são tudo que não presta", mostrando que sua filiação ao espírito bandeirante, apontada pelos guarani, não é mera analogia.
O governo federal, por sua vez, continua cedendo à pressão dessa "base aliada" e também faz de sua própria lavra e punho propostas de alteração do processo de demarcação de terras que igualmente resultam na prática na paralisação das demarcações. É o caso da minuta de portaria apresentada pelo Ministério da Justiça que, mesmo sem transferir aos parlamentares a palavra final sobre demarcações, permite aos ruralistas ingerência direta e decisiva sobre os estudos que culminam na demarcação de terras.
A legislação atual brasileira é referência internacional. A falha está na demora de sua aplicação. Em 1988, quando foi promulgada a Constituição Federal, estabeleceu-se o prazo de cinco anos para a conclusão de todas as demarcações de terras indígenas. Já se passaram mais de 25 anos e ainda há muitas terras não demarcadas. Diante da intensa ofensiva contra seus direitos, indígenas de todo o país continuam em forte mobilização. Era de se esperar.
Daniel Calazans Pierri, 29, antropólogo, é membro da coordenação geral do CTI (Centro de Trabalho Indigenista)