Marcha da Maconha – No Brasil e no Mundo publicado 07 Maio 2011
Por Reinaldo Azevedo
A descriminação da maconha — na verdade, das drogas em geral — é um daqueles quase-consensos desastrosos que se vão formando entre os bem-pensantes e que passam ao largo das necessidades e dos problemas reais da esmagadora maioria das pessoas. Infelizmente, os efeitos deletérios de certas escolhas não são, depois, percebidos pelos tais bem-pensantes. As maiorias que se lixem; os outros fizeram a sua parte: foram generosos…
Querem um exemplo escandaloso? O chamado Movimento Antimanicomial, dado o horror dos hospitais e entidades destinadas a receber doentes mentais, conseguiu acabar com as instituições destinadas à internação de doentes irrecuperáveis ou que necessitam de atenção permanente.
Com um pouquinho de Michel Foucault aqui — oh, a loucura é apenas uma das várias formas DE ser DO ser!!! — e muito de desídia do estado brasileiro, conseguiu-se satanizar a internação de doentes mentais. Em vez de se dispensar tratamento adequado aos portadores de patologias, decidiu-se que o melhor era entregá-los mesmo ao deus-dará. E ao deus-dará ficaram. Reiterados estudos demonstram, por exemplo, que a esmagadora maioria dos chamados “moradores de rua” — nome politicamente correto para a mendicância — são portadores de graves distúrbios. Deveriam estar tomando remédio. Em vez disso, o Movimento Antimanicomial os entregou ao consumo de crack e, agora, de oxi. Um plano para exterminá-los, segundo a mais eficiente estratégia da eugenia nazista, não teria sido mais eficiente. Enquanto não morrem à míngua — ou assassinados por seus próprios pares de vício —, vagam pelas cidades como zumbis, literalmente: são mortos-vivos.
Quando os chamados manicômios foram extintos, os “foucaultianos” chegaram às suas casas e acenderam uma vela moral ao guru da sanidade alternativa, do “outro modo de ser”, da conformação psíquica que não estava rendida ao produtivismo reacionário do capital. Pegaram “O Nascimento da Clínica”, deleitaram-se de horror ainda uma vez com as páginas iniciais de “Vigiar e Punir” — com a narrativa da mais horripilante cena de tortura e execução que conheço —, tudo acompanhado de um bom papo, quem sabe de um bom vinho (os mais ousados queimaram um matinho…), e deram seu trabalho por concluído.
Ocorre que a Dona Gislaynne e o Seu Uóxiton ficaram lá na periferia, sem ter o que fazer com o seu maluco. Como ela tem de sair de casa para trabalhar, vê-se, muitas vezes, na contingência de acorrentar o seu adolescente viciado em crack ou algum outro parente sem condições de viver em sociedade. O risco é algum vizinho denunciar, e ela acabar em cana. O Seu Uóxiton também tem uma vida dura e não pode cuidar dos seus doentes. Com má sorte, um repórter ainda enfia um microfone na sua cara e pergunta como ele tem coragem de ser tão cruel; não entende, afinal, que seu filho ou filha ou é um ser alternativo ou é apenas um doente das drogas, que merece um tratamento humano?
Merece, sim! Mas onde?
O fim dos manicômios é filho do mesmo aparelho mental que pede agora a descriminação das drogas. “Já que os hospitais psiquiátricos se mostram inúteis; já que eles são fontes de violência e agressão aos direitos humanos; já que os doentes são tratados como cães sarnentos; já que tudo isso ofende o nosso senso de dignidade de humanidade, então a única coisa decente a fazer é extingui-los.” E assim se fez! E os zumbis vagam por aí, nem mortos nem vivos, como lhes é próprio.
Por que evoquei a questão de renda? Porque as pessoas com dinheiro têm o que fazer com seus loucos e com seus drogados. Clínicas que atuam do modo como deveriam atuar os tais manicômios, mas a um preço proibitivo para a esmagadora maioria das pessoas, oferecem aos ricos aquilo de que estão privados os pobres. É a forma que tomou o libertarismo dos bem-pensantes.
O mesmo se daria — ou se dará, já que o movimento é crescente — em relação às drogas. Para as classes médias endinheiradas e para os ricos, com efeito, não haveria grandes mudanças. Já hoje a maconha e outras porcarias são vistas como parte de escolhas individuais. O futuro de boa parte dos consumidores está mais ou menos garantido; se necessário, sempre haverá uma clínica à disposição.
Com os pobres, a coisa é bem outra. À medida que a maconha — e as outras drogas; por que só ela? — pudesse circular livremente nas escolas, por exemplo (ainda que não fosse consumida no local), é evidente que aumentaria brutalmente a base de potenciais consumidores, como, aliás, é estupidamente maior a base de pessoas que experimentam álcool. Trata-se de uma droga que altera o comportamento; que potencializa — e isto está cientificamente provado — o efeito de outras doenças psíquicas, como esquizofrenia; que induz o consumidor, sob seu efeito, a imaginar uma vida interior mais rica do que ela efetivamente é no mundo dos não-consumidores.
Que assistência terão esses pobres? A mesma que já têm hoje para o álcool, o crack, o oxi e outras drogas: nenhuma! Ficarão, a exemplo dos loucos das “classes inferiores”, sem ter a quem apelar. O estado brasieiro estará lhes facultando uma chance a mais de se tornarem dependentes químicos sem uma resposta adequada como política pública. É A MESMA LIBERDADE QUE MATA DO MOVIMENTO ANTIMANICOMIAL.
A descriminação das drogas será mais um presente que os bem-pensantes darão à humanidade ideal, ignorando os homens reais.