Quase dois anos depois do terremoto que devastou o Haiti e deixou salto total de 316 mil mortos, a situação do país está longe de voltar ao ponto, já crítico, de antes da tragédia. A avaliação é do ex-comandante das Forças da ONU no Haiti, general Carlos Alberto dos Santos Cruz, que atuou no país entre 2007 e 2009.
O general disse ao Estado que, ao contrário do que se imagina, o maior problema não é a falta de recursos para melhorar as condições de vida da população, mas o descontrole sobre o envio e o recebimento dessa verba para o país, sem a contabilização pelo governo haitiano. Segundo ele, "não há sincronismo entre os trabalhos das ONGs e do governo do Haiti" e "cada um faz o que quer e, com isso, se cria um poder paralelo, fora do controle do governo central.
De acordo com dados do Banco Mundial, de 2009,10 mil organizações não governamentais atuavam no país antes do terremoto. Com a tragédia, o número subiu para 12 mil, mas o governo de Porto Príncipe só tem o registro de 560 ONGs. No entanto, não há estimativa concreta por parte do governo local do volume de recursos que já foi destinado ao Haiti e onde os recursos foram aplicados. Além do descontrole em relação aos recursos das ONGs, a maior parte das verbas oficialmente prometidas também não chegou. Dos US$ 5,3 bilhões prometidos para a reconstrução do país em dois anos, só a metade foi recebida.
Para dar uma dimensão do descontrole, o general Santos Cruz comentou que a estimativa é de que apenas 10% do que chega de doação externa vai para o governo haitiano, e a quantidade de recursos movimentada é "uma incógnita". Ele lembra que uma pesquisa foi realizada com 300 ONGs norte-americanas para se tentar saber quanto tinham enviado para o Haiti. Apenas 38 responderam, informando que mandaram US$ 1,8 bilhão, mas não se sabe exatamente onde os recursos foram aplicados.
Dependência. Outro problema do próprio orçamento federal do Haiti aprovado neste ano, da ordem de US$ 3 bilhões, cerca de 60% dependem de ajuda internacional, o que dificulta qualquer tipo de planejamento. "Nenhum governo consegue se planejar dependendo de dinheiro de doações externas", afirmou o general, ao explicar que esta falta de estrutura governamental acaba por depositar "esperanças excessivas" na presença da ONU no país.
Com o passar do tempo e o esquecimento da tragédia provocada pelo terremoto, o trabalho da missão de paz entra na rotina, as ajudas mínguam e a ONU começa a reduzir sua presença no território. O ministro da Defesa, Celso Amorim, defende que é importante manter o engajamento em relação ao país, mas reconhece que "não é bom para o Haiti nem para ninguém que a tropas fiquem lá indefinidamente". O ministro não fixa prazo para retirada das tropas brasileiras e lembra que isso dependerá sempre de acertos entre a ONU e os governos do Haiti e do Brasil.
Amorim tem defendido uma mudança no perfil da missão que, acredita, deve começar a se voltar mais para os aspectos do desenvolvimento socioeconômico e da diminuição da dependência externa do país caribenho. "A ideia é que haja desenvolvimento no Haiti, que é a melhor maneia ra de diminuir substancialmente o problema da segurança no país", afirmou.
O general Augusto Heleno, o primeiro comandante das tropas da ONU no Haiti, em 2004 acredita que "já está na hora de nós pensarmos, paulatinamente, de sairmos da missão, uma vez que hoje ela é missão tipicamente de polícia, muito mais do que de paz, que exija força militar tão numerosa". Mas ele ressalta que, "do ponto de vista militar", a participação da tropa brasileira "tem sido altamente vantajosa porque a tropa tem adestramento em situação real e isso é de um valor inestimável para o treinamento do pessoal". O general destacou o trabalho da companhia de engenharia do Exército brasileira, que, "extrapolando sua missão", construiu poços artesianos e estradas, asfaltou ruas, recuperou escolas e hospitais.
Apesar de todas as ajudas, a taxa de pobreza é altíssima no Haiti, com quase 80% da população vivendo com US$ 2 por dia, a taxa de mortalidade infantil é de 60 crianças por mil, 50% das crianças não freqüentam as escolas e a lista da Transparência Internadonal coloca o Haiti em 165º lugar em corrupção, numa escala que vai até 176. Mas a violência no país está controlada. Lá ocorrem de seis a sete assassinatos por 100 mil habitantes. E uma taxa cinco vezes menor do que a do Rio de Janeiro, que é de 35 assassinatos por 100 mil habitantes.