Paulo Totti
O tenente Souza Cruz avisou: "Entrar sem escolta não aconselho, não. Sem observação visual, nem pensar". Ilustrou o conselho com dois dedos abertos em "v" e estendeu-os desde os olhos em direção à favela lá embaixo. O tenente estava num dos elevados da Linha Amarela – que une a Barra da Tijuca às imediações do Aeroporto do Galeão – onde se encontra, de costas para a Maré, o 22º Batalhão da Polícia militar do Rio.
O taxista também estava cauteloso. "Aí não entro mais não. Na semana passada tive de pedir licença para os traficantes".
Apesar do agouro, e irresponsavelmente sozinho, o repórter se atreveu, às 10h de sábado, a entrar na "avenida" Guilherme Maxwell, e internar-se cerca de 10 quarteirões pela região considerada como das mais conflagradas do Rio. Desde terça-feira, as mais de dez "comunidades" que formam o Complexo da Maré, à margem da Baía da Guanabara – Vila do João, Baixa do Sapateiro, Morro do Timbau, Praia de Ramos, entre outras, num total de 130 mil pessoas – deveria estar ocupada, entre 8 e 18 horas, por 2 mil fuzileiros navais. Sua missão seria, no dia da eleição, assegurar a paz para que os moradores exercessem seu direito de voto sem intimidações de traficantes ou milicianos e, nos dias anteriores, retirar propaganda irregular.
Traficantes não foram vistos – são jovens fáceis de identificar, exibem carabinas e outras armas de grande porte, à bandoleira – e nem os fuzileiros (milicianos são difíceis de localizar; podem estar usando farda da PM). Em compensação, paredes e muros da "avenida" estavam tomados pela propaganda que o TRE julgou irregular e destruiu em outras comunidades.
No meio da rua, funcionava uma feira livre, com o fervilhamento que se observa em feiras de classe média de São Paulo. Advertido que, a qualquer momento poderia ser interrogado sobre o que estava fazendo por lá, o repórter comprou mamões, e, ao perceber que calçava sapatos com cadarço e não tênis ou sandálias Havaianas, pensou em responder que era fiscal de campanha de um dos candidatos a vereador – nome e número inspirados por um grande outdoor. Não foi preciso.
A calma absoluta só era rompida por grupos de dez ou mais cabos eleitorais que, pacificamente, distribuiam "santinhos" e amabilidades. A propaganda visível era de candidatos dos 20 partidos que apoiam o reeleito prefeito Eduardo Paes. Única exceção era a propaganda do ex-deputado federal pelo PMDB, Marcelo Itagiba. Ex-secretário de Segurança do Rio e agora candidato a vereador pelo PSDB, Itagiba foi acusado pelo candidato do PSOL, Marcelo Freixo, de apoiar as milícias. Itagiba nega. À entrada da feira, um cavalete ostentava seu slogan: "Contra os mensaleiros".
A presença de fuzileiros navais não foi notada em nenhuma das entradas do complexo, pela Avenida Brasil, pela Linha Amarela ou pela Linha Vermelha, que liga o centro do Rio aos municípios da Baixada Fluminense.
Presença ostensiva, até de tanques e outros blindados guarnecidos de armas para guerra antiaérea, foi vista na sexta-feira na comunidade da Coreia, no bairro de Senador Camará, nos confins da Zona Oeste. Ali, a chegada das tropas do Exército foi comandada pelo general José Alberto da Costa Abreu, comandante da 1ª Divisão do Exército, acompanhado do presidente do TRE fluminense, Luiz Zveiter. Três caminhões-caçamba recolheram propaganda irregular. Nenhuma de Marcelo Freixo. Não que o candidato do PSOL tenha se esmerado na observância das rígidas regras da legislação eleitoral.
Não houve propaganda impressa de Freixo fora das zonas Centro e Sul do Rio. Num percurso, de Jacarepaguá a Senador Camará, o Valor não surpreendeu um só galhardete, cavalete, outdoor ou outro tipo de material de propaganda do PSOL. "Imprimimos, no máximo, mil cartazes. Faltou dinheiro e, em algumas áreas, milicianos impediram a atuação de nossos candidatos", disse uma fonte do PSOL. O PT, por sua vez, apesar de apoiar Paes, foi quase ausente na periferia da cidade, à exceção do candidato a vereador Marcelo Sereno, assessor de José Dirceu na Casa Civil durante o primeiro mandato do ex-presidente Luiz Ignácio Lula da Silva. Seus cartazes estavam entre os retirados na Coreia.
A presença de tropas militares em 28 comunidades – com 400 mil eleitores, quase 10% dos 4,7 milhões de eleitores cariocas – e sete cidades do interior do Estado do Rio, foi pedida pelo TRE ao TSE. Indagado sobre a eficácia de só nos últimos dias de campanha combater a pressão sobre o eleitorado por milícias e traficantes que atuam nas favelas há muito tempo, Luiz Zveiter disse que " na sexta, no sábado, e no domingo da eleição, as irregularidades chegam ao auge".
Nunca no Estado houve tumulto durante uma eleição a ponto de comprometer seu resultado. Para a detenção de 257 pessoas que faziam boca de urna, ontem no Rio, não foram necessários os tanques.