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Marcelo Godoy,
O Estado de S.Paulo
30 de março de 2020
Caro leitor,
O general Ajax Porto Pinheiro, último comandante da Força de Paz no Haiti, compartilhou com seus antigos subordinados um texto para explicar como se devem comportar os militares diante da crise do coronavírus. "Convivi com esse desespero, angústia e ansiedade que estamos vivenciando três vezes em momentos distintos. Três crises!"
Ajax estava em Washington com sua família no 11 de setembro de 2001. "Veio o atentado às Torres Gêmeas e ao Pentágono. De um dia para o outro nosso mundo virou de cabeça para baixo. Medo de sair de casa, medo de atentado terrorista, americanos nos olhando desconfiados por sermos estrangeiros, recebimento de cartas suspeitas de contaminação com antraz, aulas suspensas, filas intermináveis em aeroportos e supermercados."
Em 2010, à frente de seu batalhão, o general desembarcara no Haiti, quando o país fora destruído por um terremoto que matou 300 mil, inclusive soldados brasileiros. Seis anos depois, lá estava ele de novo, quando um furacão, o Mathew, devastou o país.
Agora, Ajax tem de enfrentar uma nova tragédia: a conduta de Jair Bolsonaro na crise da covid-19 e suas consequências para as Forças Armadas.
Em seu texto, o general diz o que devem fazer os militares diante da pandemia:
"Aos que lideram em diversos níveis é importante manter a frieza e entender que os desafios são mutantes e as soluções têm de ser adaptadas diariamente. Recuar, adaptar, aceitar opinião diferente da sua não é fraqueza, é sinal de inteligência!". Tudo o que o presidente e os que o cercam no Palácio não fazem. Até parece papo de comunista dizer que a Itália tem mais de dez mil mortos e nos EUA eles são mais de 2 mil.
Ajax prossegue, com base em sua experiência no Caribe: "Outra lição que aprendemos naqueles dias e meses terríveis foi entender que fazíamos parte da solução e que, portanto, era fundamental que não fôssemos dominados pela emoção para não sermos parte do problema." Bolsonaro podia mandar enquadrar essa frase e pendurá-la em seu gabinete. "A vaidade é péssima conselheira nessas horas! A humildade para entender que ninguém entende de tudo deve ser incutida em todas as lideranças. Isso conta muito para a condução da crise."
O que, além da vaidade inconsequente, explica as caminhadas do presidente em Brasília? Incapacidade para liderar ou cálculo político? Ele topa assumir o crédito pelas mortes da covid-19, contanto que governadores e prefeitos sejam responsabilizados pela recessão? Seu raciocínio seria: o luto será de poucos, mas o bolso atingido de todos. Por fim, Ajax escreveu: "Quem não aprende com os erros está fadado a repeti-los." As Forças Armadas estarão dispostas a continuar apoiando Bolsonaro em 2022? Ou elas têm outro plano?
Depois de enviar seu texto para contatos pelo WhatsApp, o general, que hoje assessora o ministro Dias Toffoli, fez um comentário final: "É uma corrida contra o tempo. O vírus precisa de tempo curto para espalhar a morte no maior número de pessoas. Seu ciclo de vida curto é sua grande vulnerabilidade. Daí a necessidade de expor menos pessoas à praga." Ajax sabe da urgência. Entende que é preciso ficar em casa, fazer exercício e ler livros. E os outros generais?
O leitor viu aqui que a imensa maioria dos integrantes do Alto Comando do Exército concorda com Bolsonaro no conteúdo, mas faz reservas sobre a forma. Dias antes, outro general, o ex-ministro Santos Cruz, escrevera no Twitter: "O líder tem de transmitir uma orientação segura, serena, exemplar e tem de prestigiar seus assessores". E afirmou que "em tempo de coronavírus, a prioridade é salvar vidas". Santos Cruz buscou a assessoria de um economista para defender um pacote de ajuda econômico quase 6 vezes maior do que o de Bolsonaro.
Citar o que pensam os generais é cada vez mais necessário em um governo profundamente militar. O contra-almirante Antonio Barra Torres, que é médico, foi o avalista da primeira saída de Bolsonaro para abraçar "seu povo" – os radicais que o adulam – em frente ao Planalto na manifestação do Foda-se, aquela que queria atravessar a Praça dos Três Poderes para trancar o Congresso e o Supremo. Dias depois, Bolsonaro responderia candidamente à pergunta se preparava um golpe. "Quem quer dar um golpe não vai falar que vai dar?" Sério? Não brinca.
Para o cientista político Eliezer Rizzo de Oliveira, a estratégia de Bolsonaro é clara. "Ele aposta em um fechamento lento, gradual e seguro." O presidente é o antiGeisel, o responsável pela abertura lenta e gradual. Mas não só ele. Militares que o acompanham no governo também sonham com um "governo forte" para enfrentar, como disse à coluna um general que tem acesso à turma do 4º andar do Planalto, "os corruptos que estão do outro lado da praça". Mas o que fazer com a maioria do povo que reprova o governo? "Vai ter choro e ranger de dentes", concluiu o general.
A turma que não desgruda de Bolsonaro inclui o coronel Alfredo Menezes, superintendente da Zona Franca de Manaus, que promoveu carreata na sexta-feira pela abertura do comércio na cidade. Em pouco mais de 1 ano de governo, parte dos militares conseguiu a proeza de se afundar na política. Bolsonaro é o seu governo. E assim ele é visto pela maioria de seus apoiadores verde-oliva. A imparcialidade e o apartidarismo saíram pela porta dos quartéis com os últimos conscritos de 2018. Aos de fora, "aos paisanos ordinários", como um coronel da Aeronáutica costuma se referir aos políticos que detesta, pode até parecer que Ajax ou Santos Cruz representam alguma fratura. Não são.
Em nenhum momento os dois criticam a figura de Bolsonaro ou os colegas que permanecem no governo, Suas vozes discordantes permitem aos militares manterem a unidade, pois será ainda dentro da "família militar" que os descontentes permanecerão. O professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Piero Leiner afirma que as ações de Ajax e Santos Cruz emulam uma fissura para que aqueles que começam a divergir "caiam numa perna que está sob controle". "É o que em luta livre se chama de 'telecatch'. O mesmo empresário controla os dois lutadores e faz um embate simulado."
Quando a sociedade perceber que não há uma ala militar no governo que se opõe ao radicalismo de Bolsonaro, mas, simplesmente, generais que o apoiam – e entre eles dois da ativa -, a imagem positiva das Forças Armadas, dizem os estudiosos, estará em jogo. Não se tratará mais de Bolsonaro, mas dos generais. Se o custo em vidas da epidemia crescer em razão do cálculo político do presidente não será também para Ajax ou Santos Cruz que a sociedade vai olhar em busca de salvação. E só restará aos militares uma nova e melancólica volta aos quartéis.
CORONA VÍRUS – ECONOMIA E FINANÇAS
É preciso liderança agregadora, transparência e reconhecimento da importância da participação de especialistas e da sociedade. Este momento é extraordinário. Precisamos adotar medidas extraordinárias, não ortodoxas.https://t.co/imT4QMkr5i
— General Santos Cruz (@GenSantosCruz) March 27, 2020
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Citar o que pensam os generais é cada vez mais necessário em um governo profundamente militar. O contra-almirante Antonio Barra Torres, que é médico, foi o avalista da primeira saída de Bolsonaro para abraçar "seu povo" – os radicais que o adulam – em frente ao Planalto na manifestação do Foda-se, aquela que queria atravessar a Praça dos Três Poderes para trancar o Congresso e o Supremo. Dias depois, Bolsonaro responderia candidamente à pergunta se preparava um golpe. "Quem quer dar um golpe não vai falar que vai dar?" Sério? Não brinca.
Para o cientista político Eliezer Rizzo de Oliveira, a estratégia de Bolsonaro é clara. "Ele aposta em um fechamento lento, gradual e seguro." O presidente é o antiGeisel, o responsável pela abertura lenta e gradual. Mas não só ele. Militares que o acompanham no governo também sonham com um "governo forte" para enfrentar, como disse à coluna um general que tem acesso à turma do 4º andar do Planalto, "os corruptos que estão do outro lado da praça". Mas o que fazer com a maioria do povo que reprova o governo? "Vai ter choro e ranger de dentes", concluiu o general.
A turma que não desgruda de Bolsonaro inclui o coronel Alfredo Menezes, superintendente da Zona Franca de Manaus, que promoveu carreata na sexta-feira pela abertura do comércio na cidade. Em pouco mais de 1 ano de governo, parte dos militares conseguiu a proeza de se afundar na política. Bolsonaro é o seu governo. E assim ele é visto pela maioria de seus apoiadores verde-oliva. A imparcialidade e o apartidarismo saíram pela porta dos quartéis com os últimos conscritos de 2018. Aos de fora, "aos paisanos ordinários", como um coronel da Aeronáutica costuma se referir aos políticos que detesta, pode até parecer que Ajax ou Santos Cruz representam alguma fratura. Não são.
Em nenhum momento os dois criticam a figura de Bolsonaro ou os colegas que permanecem no governo, Suas vozes discordantes permitem aos militares manterem a unidade, pois será ainda dentro da "família militar" que os descontentes permanecerão. O professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Piero Leiner afirma que as ações de Ajax e Santos Cruz emulam uma fissura para que aqueles que começam a divergir "caiam numa perna que está sob controle". "É o que em luta livre se chama de 'telecatch'. O mesmo empresário controla os dois lutadores e faz um embate simulado."
Quando a sociedade perceber que não há uma ala militar no governo que se opõe ao radicalismo de Bolsonaro, mas, simplesmente, generais que o apoiam – e entre eles dois da ativa -, a imagem positiva das Forças Armadas, dizem os estudiosos, estará em jogo. Não se tratará mais de Bolsonaro, mas dos generais. Se o custo em vidas da epidemia crescer em razão do cálculo político do presidente não será também para Ajax ou Santos Cruz que a sociedade vai olhar em busca de salvação. E só restará aos militares uma nova e melancólica volta aos quartéis.