Imagens de Serguei Tcherkasov, suposto ‘espião russo’, veiculadas pelo site Bellingcat
Para investigadores, facilidade em obter documentos falsos e ampla aceitação do passaporte brasileiro favorecem espionagem
Fabio Serapião
O6 Abril 2023
Fabio Serapião
BRASÍLIA
Nota DefesaNet Três matérias da Folha de São Paulo falando sobre uma rede de espiões Russos operando no Brasil. Vale a pena ler em especial na próxima visita do Chanceler Russo sergei Lavrov ao Brasil, no dia 17 de Abril de 2023 O editor |
Os três casos de supostos espiões russos atuando pelo mundo com identidade brasileira acenderam o alerta na Polícia Federal ainda em 2022 e levantaram a suspeita do uso do país de forma sistemática para formar agentes ilegais pelo governo russo.
Serguei Tcherkasov, detido na Holanda e enviado para o Brasil em maio, Mikhail Mikushin, detido na Noruega em outubro, e o suposto espião apontado por autoridades gregas pelo sobrenome Chmirev se valiam de identidade brasileira para viajar o mundo trabalhando para os serviços de inteligência russos, de acordo com as investigações abertas pelos países.
Por meio da falsificação de documentos, eles viraram Viktor Muller Ferreira, José Assis Giammaria e Gehard Daniel Campos Wittich.
Para os investigadores, a facilidade de conseguir uma certidão de nascimento no Brasil e, posteriormente, outros documentos até chegar ao passaporte é um atrativo para as agências de espionagem. Além disso, a boa receptividade do passaporte brasileiro no mundo é apontada como fator importante para o aumento no número de casos de espiões ilegais cujas identidades foram “esquentadas” no Brasil.
Assim como no caso de Tcherkasov, o setor de inteligência da PF trocou informações com autoridades dos outros países e dos Estados Unidos à época das prisões. O russo conseguiu seus documentos supostamente corrompendo uma agente cartorária. A relação dos dois é investigada no inquérito aberto para apurar lavagem de dinheiro e corrupção.
Como mostrou a Folha, a PF mapeou transações em dinheiro recebidas pelo suposto espião e chegou em integrantes do governo russo sediados no Brasil. Para isso, os investigadores cruzaram imagens do circuito interno de uma agência bancária no Rio e registros de uma pessoa que visitou o russo na prisão.
São citados pela PF como suspeitos de integrarem o consulado russo no país e depositarem valores para Tcherkasov dois homens identificados como Aleksei Matveev e Ivan Chetverikov. A investigação de Tcherkasov ficou por conta das autoridades brasileiras, mas no dois outros casos as apurações foram abertas nos países onde eles foram descobertos.
O surgimento desses espiões ilegais tem movimentado as agências de inteligência em todo mundo. A Folha apurou que autoridades americanas relataram às brasileiras tratar-se do maior caso de espiões conhecidos como “illegals” desde 2010, quando o FBI, a polícia federal americana, deflagrou a operação Ghost Stories contra 10 espiões russos que integravam uma rede atuante em áreas do país.
Eles foram presos e depois trocados em uma negociação dos EUA com a Rússia. O caso virou série de TV e envolvia casais de espiões e outros russos responsáveis por se infiltrar em diversos setores da sociedade americana.
Na segunda-feira (03MAR2023), o jornal britânico The Guardian revelou a história de um terceiro suposto agente de inteligência russo que teria vivido por anos no Rio de Janeiro, chegando a comprar uma propriedade perto do consulado americano na cidade.
Gehard Daniel Campos Wittich —ou um espião russo de sobrenome Chmirev, segundo uma alta autoridade grega disse ao Guardian— teria vivido por ao menos cinco anos no Rio com identidade falsa, se apresentando como o filho de pai austríaco com mãe brasileira criado por seus avós em Viena.
Ainda de acordo com a publicação britânica, Wittich era dono de uma empresa de impressões 3D que tinha agências do governo e até mesmo instalações militares entre seus clientes. O jornal conta ainda que a real identidade do suposto espião foi descoberta após ele dizer para sua namorada brasileira —que não sabia das suas atividades para o governo russo— que viajaria a um evento de trabalho na Malásia.
Como ele deixou de fazer contato com sua namorada, ela iniciou uma campanha nas redes sociais e pediu ajuda da embaixada brasileira na Malásia para tentar localizá-lo.
A pista sobre Wittich veio de Atenas, onde autoridades gregas informaram que ele na verdade era casado com uma espiã russa que atuava no país europeu —e que também havia desaparecido. Segundo o Guardian, as autoridades que acompanham o caso acreditam que Wittich e sua esposa retornaram à Rússia diante do risco de terem suas identidades expostas.
Em outubro de 2022, foi revelado que autoridades de segurança da Noruega também prenderam outro suposto espião russo que afirmava ser um acadêmico brasileiro. O homem se identificou como José Assis Giammaria e trabalhava na Universidade de Tromsø (norte do país).
Antes de chegar à Noruega, Giammaria havia passado anos estudando em universidades do Canadá sobre temas relacionados à segurança no Ártico, segundo o Guardian. Informações sobre ele levantadas pela PF brasileira mostram como ele conseguiu um CPF apenas aos 22 anos, o que é considerado tardio e indício para falsificação de documentos. O pai não tinha registro do Brasil, e a mãe chegou a possuir um CPF, atualmente suspenso.
Em 2013, ele tirou o passaporte brasileiro, e três anos depois foram registradas pela PF uma entrada no Brasil vindo do Canadá e a saída dele para Toronto.
PF mapeou depósitos de membros do governo da Rússia a suposto espião no Brasil
Funcionário do consulado e homem que se identificou como cônsul são citados em transações que beneficiaram russo preso no país
Fabio Serapião
O5 ABRIL 2023
Folha de são Paulo
BRASÍLIA
A Polícia Federal cruzou imagens do circuito interno de uma agência bancária no Rio e registros de uma pessoa que visitou Serguei Vladimirovitch Tcherkasov na prisão para apontar integrantes do governo da Rússia como a origem de depósitos ao russo investigado no Brasil sob a suspeita de espionagem.
As informações sobre as transações financeiras estão no inquérito aberto para investigar os possíveis crimes de lavagem de dinheiro e corrupção cometidos pelo russo. Ele foi detido e enviado ao Brasil em abril de 2022 por autoridades holandesas, que o acusaram de ser um espião russo usando passaporte brasileiro para tentar se infiltrar como funcionário do Tribunal Penal Internacional, em Haia.
Parte das informações foi divulgada há cerca de 15 dias sem a identificação dos envolvidos nem os detalhes das transações, após o governo dos Estados Unidos apresentar uma denúncia contra Tcherkasov por fraude bancária e outros crimes relacionados à sua atuação como agente estrangeiro —de acordo com autoridades americanas, ele viveu um período no país usando documentos brasileiros falsificados.
Nos EUA, o suspeito de ser do GRU, unidade de inteligência militar da Defesa russa, apresentava-se como o brasileiro Viktor Muller Ferreira e cursou mestrado na Universidade Johns Hopkins de 2018 a 2020.
As transações, na interpretação dos investigadores, confirmam a existência de uma rede de apoio do governo russo no Brasil ao suposto espião e enfraquece o argumento do pedido de extradição feito por Moscou, de que Tcherkasov seria, na verdade, um condenado por tráfico de drogas na Rússia.
A PF chegou às transações após quebrar o sigilo bancário do suspeito. As movimentações indicaram uma série de depósitos mensais em dinheiro nas contas do russo —o total ao longo de um ano foi de cerca de R$ 80 mil. Parte desses repasses era depositada em uma agência bancária no Rio de Janeiro.
A partir das imagens do circuito interno do banco e das datas dos depósitos reveladas pela quebra de sigilo, a polícia detectou ao menos três pessoas como responsáveis pelos repasses, ainda que apenas duas delas sejam citadas nominalmente nos relatórios em posse da PF.
Em sete de fevereiro de 2022, por exemplo, um integrante do corpo consular russo identificado como Aleksei Matveev esteve em uma agência do Banco do Brasil no Rio de Janeiro para realizar um dos repasses. Nas imagens, a PF aponta para a suspeita de ser Ivan Chetverikov. Segundo o relatório, um “caucasiano” que acompanhou o executor dos depósitos para o russo.
A PF passou a suspeitar de Chetverikov após visitas de um russo —identificado como um caucasiano que se apresenta como cônsul no Rio— ao suposto espião na prisão. A comparação da foto dele feita no registro da visita e de uma imagem registrada na agência bancária apontou para Chetverikov.
A Folha procurou a embaixada da Rússia em Brasília e o consulado no Rio, mas não obteve resposta sobre quais cargos Chetverikov ocupou no governo e qual a função de Matveev na representação diplomática.
O ministro Edson Fachin, do STF, concordou com o pedido de extradição de Tcherkasov feito pelo governo russo, mas condicionou a medida ao término das apurações em andamento no Brasil, o que não ocorreu.
O russo foi alvo de dois inquéritos na PF. O primeiro, sobre o uso de documento falso para se passar por brasileiro, já foi concluído: ele foi condenado a 15 anos de prisão pela Justiça Federal de São Paulo.
Há ainda a investigação que mira os crimes de lavagem de dinheiro, corrupção e a possível atuação na prática de espionagem no país. O eventual crime de lavagem estaria relacionado às transações financeiras e, também, à compra de um imóvel. Já a corrupção seria ligada a uma agente cartorária que teria facilitado a obtenção da certidão de nascimento fraudulenta do russo no Brasil.
Ao ser detido, Tcherkasov chegou a citar a existência de uma mãe brasileira, já morta, com registro verdadeiro. Os investigadores procuraram uma irmã dessa suposta mãe e descobriram que ela havia falecido sem nunca ter tido filhos. O suspeito é um dos três russos que passaram pelo Brasil e são apontados como espiões —eles foram identificados ao redor do mundo no último ano.
Na segunda (03ABR2023), o britânico The Guardian revelou a história de outro suposto agente da inteligência russa que teria vivido por anos no Rio, chegando a comprar uma propriedade perto do consulado americano na cidade. Gerhard Daniel Campos Wittich —ou um espião russo de sobrenome Chmirev, segundo uma autoridade grega disse ao jornal— teria vivido por ao menos cinco anos no Rio com identidade falsa, apresentando-se como um filho de pai austríaco e mãe brasileira criado pelos avós em Viena.
Em outubro de 2022, foi revelado que autoridades de segurança da Noruega prenderam outro suposto espião russo que afirmava ser um acadêmico brasileiro. O homem se identificava como José Assis Giammaria e trabalhava na Universidade de Tromsø, no norte do país.
Antes de chegar à Noruega, Giammaria havia passado anos em universidades do Canadá estudando temas relacionados à segurança no Ártico, também de acordo com o jornal The Guardian.
Novo suposto espião russo no Brasil emitiu identidade no país em 2016 e fez negócio com a Marinha
Gerhard Daniel Campos Wittich administrava desde 2018 empresa de impressão 3D no Rio de Janeiro
Bruna Fantti
Italo Nogueira
4 ABRIL 2023
RIO DE JANEIRO
Folha de São Paulo
Apontado como um espião russo no Brasil pela Grécia, segundo a imprensa europeia, o homem que dizia ser Gerhard Daniel Campos Wittich emitiu seu primeiro documento brasileiro em fevereiro de 2016.
Dois anos depois, ele fundou uma empresa de impressão 3D no Rio de Janeiro que recebeu R$ 27 mil de órgãos do governo federal brasileiro entre 2020 e 2022 para a realização de serviços gráficos.
O principal cliente dele no governo federal foi a Marinha. Em 2020, o Centro Tecnológico do Corpo de Fuzileiros Navais fez três encomendas à empresa que somaram R$ 14,3 mil. A Polícia do Exército também solicitou uma imagem de 80 cm de uma cobra, mascote da unidade, por R$ 3.500. O maior pedido foi feito pelo Ministério da Cultura: 500 batoques para rolos de película cinematográfica por R$ 8.500.
A Marinha afirmou, em nota, que “adquiriu serviços ocasionais relativos a suprimentos para impressão na empresa 3D Rio durante as operações de enfrentamento à Covid-19”. “Os produtos adquiridos, portanto, não comprometeram o sigilo e a segurança das operações da Marinha.”
A 3D Rio funciona no centro da cidade, a alguns metros da sede do consulado americano. Ela segue funcionando, mas há apreensão entre os funcionários sobre a continuidade da firma desde o sumiço de seu dono. De acordo com as informações publicadas pelo jornal The Guardian, ele é casado com Irina Romanova Chmirev, também identificada como uma espiã russa que atuava na Grécia.
Ambos desapareceram no início do ano de seus locais de moradia, deixando para trás namorados, amigos e funcionários que fizeram e contrataram durante o período em que viveram nesses locais.
O homem que se apresentava como Wittich namorou uma servidora pública federal. Ele dizia ser brasileiro com ascendência austríaca, tendo sido criado em Viena, o que seria a razão do forte sotaque. Ele viajou à Malásia no início de janeiro para, em tese, fazer um curso de impressão 3D. Depois, não deu mais notícias.
Namorada e amigos passaram a fazer uma campanha na internet em busca de informações. O Itamaraty foi acionado e confirmou que um homem usando o nome do empresário se hospedou no hotel indicado pelos amigos brasileiros. Contudo, depois de deixar o estabelecimento, não deixou mais rastros.
O primeiro registro no Brasil é a emissão de sua carteira de identidade, em fevereiro de 2016, pelo Detran-RJ. Em nota, o órgão afirmou que “está à disposição para fornecer informações às autoridades encarregadas da investigação”. Dois anos depois, o empresário emitiu uma carteira de motorista.
Ao reenquadrar a firma como de pequeno porte, em 2020, declarou morar num apartamento no bairro de Botafogo, na zona sul da cidade. Procurado, o proprietário do imóvel não quis comentar o assunto.
A empresa é ativa nas redes sociais e conhecida no mercado de impressão 3D. Num dos últimos posts, divulgou bonecos em miniatura do apresentador Marcos Mion exibidos no programa “Caldeirão”, da Globo.
O suposto espião apresentava uma carteira de identidade tendo como nome da mãe a brasileira Fátima Regina Campos Monteiro, e o pai, o austríaco George Wittich. Caso confirmada a atuação do empresário como espião, esse será o segundo caso de um agente russo usando uma identidade brasileira. Serguei Vladimirovich Tcherkasov está preso na carceragem da Polícia Federal em São Paulo sob acusação de falsidade ideológica. Ele foi condenado a 15 anos de prisão pela 5ª Vara da Justiça Federal de Guarulhos.
Tcherkasov, 39, foi detido em abril de 2022 por autoridades holandesas por usar documentos de identidade falsos. O suposto espião chegou ao país usando documentos brasileiros, em nome de Victor Muller Ferreira, para tentar entrar no Tribunal Penal Internacional de Haia na vaga de analista júnior.
A polícia holandesa determinou que ele não era um cidadão brasileiro, mas um provável agente do Departamento de Inteligência das Forças Armadas da Rússia. Ele foi considerado um “ilegal” —espião disfarçado no exterior com identidade completamente nova. Tcherkasov foi deportado em 3 de abril de 2022 para o Brasil, onde foi denunciado pelo crime de falsidade ideológica pelo Ministério Público Federal.
Em setembro de 2022, porém, Moscou requisitou ao governo brasileiro sua extradição para a Rússia, onde supostamente era procurado por tráfico de drogas. Como mostrou a Folha, o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, concordou com o pedido, mas condicionou a ida de Tcherkasov a seu país de origem ao encerramento de uma investigação em andamento na Polícia Federal, o que não aconteceu.