Revolta do líder do Grupo Wagner gera medo e insegurança. Imprensa estatal tenta explicar como chefe da milícia rebelada passou de traidor a anistiado.
(DW) No fim de semana passado, muitos moradores do sul da Rússia receberam apelos desesperados de familiares em outras regiões do país. “Peguem suas coisas e venham o quanto antes para cá!” era um pedido comum.
Por causa da proximidade com a Ucrânia, a situação no sul da Rússia é tensa desde o início da guerra. No fim de semana passado, ficou ainda pior.
Dessa vez, porém, o perigo vinha do lado russo, melhor dito, da milícia paramilitar conhecida como Grupo Wagner e chefiada por um aliado do presidente Vladimir Putin, Yevgeny Prigozhin.
“Traição é crime em tempos de guerra”
“Minha vizinha recebeu uma ligação da filha dela dos Montes Urais: ‘Mamãe, você não pode mais ficar em Rostov, venha para cá'”, relatou uma mulher à DW de Rostov, uma cidade que foi tomada pelo Grupo Wagner.
Mas não apenas lá havia medo e insegurança. Medo porque ninguém sabia dizer até onde a milícia iria. A notícia de que ela já estava a 200km de Moscou logo se espalhou, e o prefeito da capital aconselhou os moradores a deixaram a cidade.
Insegurança porque Prigozhin, até havia pouco endeusado por toda a imprensa estatal, era, poucas horas depois, demonizado por essa mesma imprensa.
“Motim armado na Rússia, sem apoio popular! Traição em tempos de guerra é um crime grave!”: foi assim que o apresentador Dmitri Kiselev iniciou seu jornal noturno na emissora Rossia no primeiro dia da rebelião. Dias depois, diante das imagens de tanques em retirada, ele diria: “Guerra fratricida pôde ser evitada”.
Perdas entre militares russos
Kiselev tentou apresentar o acordo que selou o fim do motim como uma vitória do Kremlin, argumentando que poderia tudo poderia ter sido muito pior e que o “grande derramamento de sangue” pôde ser evitado.
Ele deu pouco destaque às mortes de dez soldados russos pela milícia de Prigozhin.
O que causou ainda mais confusão foi a absolvição de Prigozhin. Ainda uns dias atrás chamado de “traidor” que iria “responder pelo que fez”, o chefe da milícia era agora um homem livre que não seria de forma alguma punido. Todas as acusações contra ele foram retiradas, noticiou a agência russa RIA.
Declaração de falência do Estado
Essa situação obrigou a imprensa estatal russa a, mais uma vez, esclarecer a situação para o seu público, já confuso. A chefe da emissora RT, Margarita Simonjan, tentou com estas palavras: “Normas jurídicas não são mandamentos de Cristo ou as Tábuas da Lei de Moisés. Elas são escritas por pessoas para garantir a ordem e a estabilidade no país. Mas, se numa situação crítica de exceção, não conseguem cumprir sua função, e até mesmo produzem o efeito contrário, então… ao inferno com elas!”.
Para o filósofo russo Denis Grekov, essa declaração nada mais é do que uma declaração de falência do Estado russo. “Um estado que não detém mais o monopólio da violência ou no qual o poder não é mais unificado, onde as normas jurídicas não valem mais, no fundo não é mais um estado”, observa.
A pesquisadora sobre propaganda Maria Borsunova resume a declaração assim: “Simonjan tentou explicar que o sistema jurídico e penal russo é voltado às necessidades. Se for necessário, um processo criminal pode ser aberto num dia e fechado no próximo, depende do que se está precisando no momento.”
“Opinião pública patriota”
Grekov avalia que a chamada “opinião pública patriota” vai continuar expressando admiração por Prigozhin. A atuação do líder paramilitar, cujos soldados tomaram a cidade de Bakhmut depois de meses de duros combates, continua sendo festejada como um ato heroico na imprensa russa de propaganda.
Grekov acrescenta que também entre os militares russos há muita admiração pelo líder do Grupo Wagner. Muitos se mostram decepcionados com o ministro da Defesa, Serguei Shoigu.
Em 2024 haverá eleições na Rússia. Uma candidatura de Prigozhin, a quem são atribuídas ambições políticas, é mais duvidosa do que nunca depois da rebelião. Já Putin jamais descartou que irá se candidatar. Ao menos por enquanto.
Como o motim do Grupo Wagner repercutiu na América Latina
Na maior parte da América Latina, as notícias de que o Grupo Wagner, de mercenários liderados por Yevgeny Prigozhin, se dirigia para Moscou em tanques de guerra parece haver gerado surpresa e confusão, mas não espanto.
Segundo Mauricio Jaramillo, professor de Ciências Políticas da Universidade do Rosário, da Colômbia, especulou-se muito, por dois motivos. “Em primeiro lugar porque, em termos gerais, a posição dos Estados, com exceção de Cuba, Venezuela e Nicarágua, tem sido de neutralidade. E em segundo: há muita expectativa, mas pouca informação confiável. Circulam muitas notícias falsas ou imprecisas”, afirma.
“O problema com os meios de comunicação da América Latina é que têm uma linha internacional muito fraca”, diz, apontando que, assim, “muitos, no momento da crise, publicam muitas notícias de maneira prolífica e, uma vez sustada [a crise], deixam de informar”. As crises e os problemas de cada país ocupam as manchetes, e o público parece ficar sem o seguimento e o aprofundamento dos fatos, frisa Jaramillo.
Em relação à guerra na Ucrânia, o professor critica o fato de alguns veículos latino-americanos desconhecerem “olimpicamente” o princípio da neutralidade que há décadas vigora na região. Alguns parecem ter esquecido a lição da Guerra Fria, em que os países da América Latina eram tratados como “fichas” de um jogo geopolítico alheio.
Por essa razão, o presidente da Colômbia, Gustavo Petro, teria se negado a entregar aos Estados Unidos material bélico destinado à Ucrânia, “uma reação que foi respeitada pelo governo Joe Biden e que não prejudicou em absoluto as relações”, reforça Jaramillo. Em relação ao restante da região, ele ressalva que “por não se filiarem à Otan, os países da América Latina não podem ser classificados de pró-russos”.
Dependência da Rússia é risco para Venezuela
Os regimes de Caracas, Havana e Manágua foram os únicos latino-americanos a respaldar no Twitter o líder russo Vladimir Putin. O chanceler venezuelano, Yván Gil, postou um comunicado rechaçando a “insurreição armada, através de métodos terroristas”. O presidente de Cuba, Miguel Díaz-Canel, expressou convicção de que na Rússia “prevalecerá a ordem constitucional”. E o da Nicarágua, Daniel Ortega e sua vice, Rosario Murrillo, expressaram solidariedade “perante o desafio à sabedoria e forças da Rússia”.
O governo venezuelano foi o primeiro a manifestar apoio a Moscou. Sobre o quanto Caracas depende da Rússia, de onde obtém armamento, Carlos Blanco, ex-presidente da Comissão Presidencial para Reforma do Estado da Venezuela, explica: “[Os presidentes Hugo] Chávez e [Nicolás] Maduro modificaram o padrão estratégico das Forças Armadas venezuelanas, cuja missão fundamental era a defesa da soberania nacional e do território. Essa mudança da abordagem estratégica se dirigiu ao possível enfrentamento de um ‘império’ – quer dizer, os Estados Unidos – e a se defender de uma eventual incursão militar, que se realizaria através da Colômbia.”
A Venezuela é considerada a maior compradora de armamento russo na América Latina, já tendo recebido mais de 100 mil Kalashnikov AK-103, além de tanques, aviões de combate, helicópteros militares e sistemas antiaéreos. Em 2019, estimava-se em 11 bilhões de dólares a extensão dessa cooperação técnico-militar. Segundo o jornal alemão Wirtschaftswoche, a Rússia concedeu empréstimos para esse fim.
Além disso, em 30 de março de 2021, durante a visita do vice-primeiro-ministro russo, Yuri Borisov, Caracas fechou 12 acordos nos campos financeiro, energético, alimentar, comercial, militar, alimentar e de saúde. E, segundo documentação obtida pelo diário espanhol Nius, tanto o Executivo venezuelano quanto a petroleira estatal PDVSA manteriam contas no banco russo Evrofinance Mosnarbank.
Para Blanco, que atua como consultor da União Europeia, “o que está ocorrendo na Rússia, a partir da invasão da Ucrânia e dos processos de descontentamento de cidadãos e militares, é evidente”, e “essas ondas de desassossego e instabilidade na Rússia são preocupantes para um regime como o de Maduro, que se sustenta basicamente por essas alianças internacionais”. Mas o que antes se aplicava aos EUA, vale hoje para Moscou: “Qualquer espirro russo pode provocar uma forte bronquite no governo venezuelano.”