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Celso Amorim: “Rússia dificilmente vai sair derrotada da guerra”

Assessor especial do presidente Lula defende a aproximação com o líder da Venezuela, Nicolás Maduro. E diz que Rússia dificilmente vai sair derrotada da guerra

Deborah Berlinck
Headline
Genebra
9 Junho 2023



Duas declarações de Luiz Inácio Lula da Silva geraram vivas críticas e dúvidas se o presidente, ao voltar ao poder 20 anos depois de seu primeiro mandato, está sintonizado com o tom e as mudanças geopolíticas do mundo. Uma foi quando disse que a Rússia, um país invasor, era tão responsável pela guerra quanto a Ucrânia, o país invadido. A outra foi quando tentou reabilitar Nicolás Maduro, líder reconhecidamente autocrata da Venezuela, como um democrata.

Nota DefesaNet

Esta entrevista do Assessor internacional ex-chanceler Celso Amorim é a exemplificação das ideias alucinadas do atual governo no campo da política externa.

Comentá-las é escrever um artigo completo

O Editor

Um homem sempre do lado de Lula – fiel mesmo nos tempos de sua prisão – se empenha para justificar e explicar as falas do presidente:

Celso Amorim. Maduro, um democrata? Ele respondeu assim:

“Você perguntaria: o Trump é um democrata? Não sei. O Brasil tem que manter boas relações com o Trump se for governo? Tem. Então, é isso.”

Artífice da política “ativa e altiva” dos dois primeiros governos, quando era ministro das Relações Exteriores, o diplomata voltou agora ao Palácio do Planalto como o assessor especial de Lula. Mas num cenário bem diferente: com um Brasil diminuído em peso econômico e influência depois de quatro anos de isolamento do país no cenário internacional durante o governo Bolsonaro. Nos dois primeiros mandatos de Lula, o Brasil reinava como o país emergente que deu certo. E Amorim também colheu frutos com isso. Não é mais o caso.

Em entrevista à Headline, Amorim não quis entrar no mérito das declarações de Lula, que geraram reações do Uruguai e do Chile, no caso da Venezuela, e dos Estados Unidos e Europa, no caso da Rússia. Mas deixou claro a linha da política externa do novo governo em relação à Venezuela: o Brasil quer o fim do isolamento de Maduro e o fim das sanções dos Estados Unidos contra o país.

“Há momentos para apontar falhas e há momentos para apostar na melhora. Nós estamos apostando na melhora (na Venezuela)”, disse Amorim, que viajou para o país e voltou dizendo nunca viu “uma situação tão distendida entre governo e oposição” nos últimos 20 anos.

A Venezuela confirmou eleições presidenciais no ano que vem. A última atualização sobre a situação de direitos humanos no país da Missão de Investigação da ONU, de março deste ano, diz que “ataques persistentes e repressão generalizada do governo da Venezuela contra supostos opositores continuam a assombrar a população do país”. Estima que há ainda 282 pessoas presas arbitrariamente por motivos políticos e 716 pessoas mortas em 2022 em confrontos com agentes da lei.

Mas Amorim disse que não sentiu “temor”, nem ouviu relatos de tortura da parte da oposição na sua viagem em março ao país. Segundo ele, líderes da oposição se movimentam “livremente”, entre eles Juan Guaidó, reconhecido como “presidente interino” da Venezuela pela oposição e parte da comunidade internacional de 2019 a 2022.

O assessor especial de Lula foi ainda mais longe no caso da guerra entre Rússia e Ucrânia. Embora não acredite que isso não aconteça, ele alertou que uma derrota da Rússia pode levar à mesma situação da Alemanha ao final da Primeira Guerra. Humilhada, a Alemanha levou o mundo à Segunda Guerra.

No sentido contrário da declaração de Lula, Amorim frisou que a Ucrânia “é vítima” e a Rússia, o invasor. Mas ele citou grandes historiadores que alertaram para o fato de que uma expansão da OTAN (a aliança defensiva do Atlântico Norte) geraria uma insegurança na Rússia. E não poupou a OTAN e as potências do Ocidente por suas cotas de responsabilidade pela guerra, quando disse:

“A Ucrânia é vítima. Mas de quem ela é vítima, sobretudo? Ela é vítima de um espírito de Guerra Fria que continuou a prevalecer e que não devia ter prevalecido. Isso justifica a invasão russa? Não justifica, porque é uma quebra do direito internacional. Porém, se você está interessado não em condenar, mas em encontrar um caminho para a paz, você tem que entender as causas um pouco mais profundas da situação.

No fundo, Amorim defende a linha mestra da política externa brasileira: o Brasil “fala com todo mundo” – democratas ou não.

Leia os principais trechos da entrevista:

Headline – Muita gente aplaudiu a iniciativa de reunir pela primeira vez os líderes da América do Sul de diferentes correntes ideológicas.  Mas criticou-se muito o presidente Lula por ter ofuscado a reunião de cúpula, quando tentou reabilitar o regime de Nicolás Maduro da Venezuela, provocando reações de alguns líderes, como do Uruguai e do Chile. Agora, para alguns, a cúpula vai ser mais lembrada pelo que desuniu do que pelo uniu. Não foi um erro?

Celso Amorim – O que você considera que foi um erro? Ter convidado o Maduro?

Headline – Não. Falo das declarações dizendo, que Maduro é um democrata.

Celso Amorim – Olha, eu não sei. Bom, primeiro não me cabe comentar o que o presidente disse ou deixou de dizer. Eu acho que a presença em si do Maduro era indispensável. Acho que um grande erro que se cometeu na América do Sul, em geral, foi o isolamento do Maduro, obviamente agravado de maneira dramática pelas sanções norte-americanas, sobretudo na época do Trump. Não foram só sanções que eles, Estados Unidos, estavam aplicando. Eles obrigavam os outros indiretamente também a se comportar dessa maneira.

Talvez o presidente esteja falando um pouco em função de uma expectativa. Ele mencionou, por exemplo, a minha visita à Venezuela. A pedido dele, fui lá como enviado. Conversei com o governo, conversei com a oposição. Não senti da parte da oposição temor. Eu falei com Gerardo Blyde, coordenador do diálogo, em nome da oposição. Perguntei a ele se viu o Guaidó (Juan Guaidó, reconhecido como “presidente interino” da Venezuela pela oposição e parte da comunidade internacional de 2019 a 2022).  Ele disse: “o Guaidó acabou de sair da minha casa.” Quer dizer, o líder mais execrado pelo Maduro se movimenta livremente.

A expectativa de ambos os lados está colocada na eleição. O que vai acontecer daqui até lá? Eu não posso ter certeza, mas eu acho que o fato de tanto o governo quanto a oposição, ninguém mais fala em boicote à eleição, como se falava.  Eles estão apostando na eleição. Claro que para que isso ocorra há uma condição indispensável para os dois lados: que as sanções sejam abolidas, porque as sanções criam problemas, dramatizam a situação política. Os Estados Unidos chegaram a fazer uma proposta humanitária que provavelmente não é suficiente, mas que ajudaria. Ajuda o governo, obviamente, porque melhora a situação econômica. Mas ajuda a oposição, porque ela toma o crédito de ter conseguido isso, em boa medida.

Desde que fui ministro da Defesa (no governo Dilma Rousseff), eu não fui nenhuma vez pessoalmente para fazer nenhuma solidariedade. Fui uma vez ao Consulado da Venezuela quando houve um aumento das sanções e uma ameaça do Trump de invadir.  Não tenho, assim, uma ligação… Tenho ligação política, de longa data, que é uma ligação em favor da democracia da Venezuela e da capacidade da Venezuela de investir, de se desenvolver, de melhorar a condição do seu povo.

O que queria dizer é: desde o início do governo Lula, são 20 anos, eu nunca vi uma situação tão distendida entre governo e oposição. Era impossível antes quase falar. Você falava de alguma coisa da oposição, o governo desabava em cima. Falava alguma coisa do governo, oposição desabava em cima. Não senti esse clima. Claro que não ficaram as pessoas da oposição elogiando Maduro ou vice-versa.

Maduro sabia que eu ia encontrar as pessoas da oposição e não criou nenhuma dificuldade. Até pelo contrário, facilitou alguns contatos. Alguns atores na oposição se colocam fora (do processo), mas a grande maioria que participa do diálogo, inclusive, no México, de certa maneira com a benção informal dos Estados Unidos.

Eu não senti aquele excesso de segurança que era comum em outras viagens à Venezuela. Não vi nada nas ruas. Eu não deveria dizer porque vão falar mal, mas eu vejo mais moradores de rua em outras cidades do mundo do que em Caracas. Então a situação lá está um pouco melhor. Não vou dizer que seja muito boa, não vou dizer que está tudo perfeito, mas eu acho que há um bom diálogo e é nisso que a gente tem que apostar.

Headline – A discussão não é nem tanto se o governo brasileiro deve ou não manter um canal aberto com Nicolás Maduro, mas sim sobre reabilitá-lo como um democrata. Para você, Nicolás Maduro é um democrata?

Celso Amorim – Olha, eu não gosto de ficar fazendo essas definições. Você perguntaria: o Trump é um democrata? Não sei. O Brasil tinha que manter boas relações com o Trump se for governo? Tem. Então, é isso.

Headline – Você falou em Maduro não se opor que você se encontre com a oposição livremente.  Portanto, o regime de Maduro enfrenta graves acusações de direitos humanos, incluindo tortura.  Um relatório da Missão de Apuração aos Fatos da Comissão de Direitos Humanos da ONU constatou um aumento de perseguições e prisões arbitrárias nos últimos anos. Que credibilidade o Brasil tem para reivindicar uma política externa que fala com todos, se Lula se posiciona claramente ao lado de Maduro, que é considerado um autocrata?

Celso Amorim – Eu não vou fazer uma contagem e uma especificação de todos os governantes da América Latina. Nós recebemos todos. Há muitas acusações sobre vários deles. Alguns estão até sofrendo processos de impeachment, mas isso são processos internos que têm que ser levados em conta. Claro que nós defendemos os direitos humanos. Eu não posso fazer um julgamento sobre o que diz o relatório do qual você está falando, porque o que o relatório da Bachelet (Michelle Bachelet, ex-Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos), de uns 3 anos atrás, recomendou inclusive a criação de um escritório do Conselho de Direitos Humanos, que foi aberto. Portanto, eu tendo a achar que a situação tem melhorado. Talvez não esteja perfeita, mas tem melhorado.

Em vários outros países há situações graves de direitos humanos. Nem por isso você vai deixar de ter relações, nem por isso você vai deixar de apostar numa melhora. Há momentos para apontar falhas e há momentos para apostar na melhora. Nós estamos apostando na melhora.

Headline – Oliver Stuenkel, professor de relações internacionais da FGV-SP, disse que a declaração do Lula em relação à Ucrânia não muda a realidade da Ucrânia, mas a fala do Lula em defesa do Maduro muda a realidade na Venezuela, na medida em que envia a mensagem ao presidente venezuelano de que ele pode continuar reprimindo opositores. Não teria sido melhor o presidente simplesmente ter evitado falas a favor de Maduro como um democrata?

Celso Amorim – Não cabe a mim comentar a atitude do presidente.  Acho que essa atitude dele é a de estimular a constante melhora, de trazer para o âmago latino americano e sul americano. Acho que esse é o objetivo dele. Sobretudo, isso se dá em contraponto ao isolamento da Venezuela, que não contribuiu em nada. Você pode dizer que as ações do governo Maduro tiveram tais e tais características, mas talvez o que mais causou prejuízo a Venezuela foi a adoção de sanções violentas, bárbaras, em relação ao povo. Piorou muito a situação econômica.

Agora, com uma ligeira melhora, uma ligeiríssima flexibilização que permite à Venezuela retomar a produção e exportação de petróleo, a situação está se distendendo. Eu não sou o comissário de direitos humanos. Eu sou assessor do presidente, que é vizinho da Venezuela, que tem que ter uma boa relação com a Venezuela e que pode contribuir, como contribuiu no passado.

Quando o presidente Lula assumiu (seu primeiro mandato), eu era o ministro (das Relações Exteriores) em 2003. Na primeira viagem que o presidente Lula fez, ao Equador, o presidente do Gutiérrez (Lucio Gutiérrez) , propôs a criação de um grupo de amigos da Venezuela que ajudou a que se realizasse o referendo revogatório. O Chávez, na época, estava um pouco na dúvida em fazer. Isso foi feito com a observação da OEA, do Centro Carter, enfim, de várias outras.  E o Chávez ganhou. Ganhou de 60-40 praticamente. E foi reconhecido por esses órgãos que mencionei. Não foi uma coisa manipulada. Então eu acho que nós temos condições de contribuir positivamente, porque nós mantemos um bom diálogo com o governo Maduro. E ao mesmo tempo nós temos um bom diálogo com os Estados Unidos. Houve uma reunião na Colômbia há pouco tempo, em que foram representantes do Conselho de Segurança Nacional americano. E eu tive com eles. Eu acho que a gente tem a possibilidade de ajudar.

Headline – De que forma você vê o desenrolar do caso da Venezuela? Como o Brasil poderia ajudar agora que está mais implicado em relações com Maduro?

Celso Amorim – Participando. Nós somos procurados por vários países. Pela Noruega, por exemplo, que está envolvida na mediação. Nós fomos procurados pela oposição. Eles acham que a gente pode ajudar através do diálogo, da conversa, a resolver pequenos problemas, questões que às vezes são falsas questões, mas onde há desconfiança, elas crescem de proporção. Nós temos essa capacidade de ajudar a criar confiança num diálogo que pode propiciar uma melhora. Eu acho que o clima na Venezuela é esse. Foi o que eu senti lá. O clima é de expectativa. Acho que o que mais ajudaria essa consolidação é a eliminação das sanções. Se é de uma vez, se é gradual, sei lá, mas, enfim, eu acho que deveria ser de uma vez, porque as sanções são erradas. Mas do ponto de vista político, o importante é que se dê condições à Venezuela de melhorar, inclusive, a sua situação econômica.

Headline – Você esteve com a oposição também.  O que a oposição diz? Ela vê uma chance de uma transição pacífica na Venezuela?

Celso Amorim – Eles estão nessa expectativa. Eles estão na expectativa da eleição, de ter candidatos e poder ganhar. Essa é a expectativa deles. Eu não ouvi, claro que eu não vou dizer que eles tenham segurança absoluta, que eles tenham dito que está uma maravilha. Eu não estou dizendo isso. Mas eu não ouvi essas queixas, por exemplo, da parte da oposição. O porquê, eu não sei, mas eu não ouvi eles falarem em tortura, não ouvi eles falarem… até o contrário, não é? Assim, no sentido do líder principal – que era até pouco tempo o líder principal, agora ele está desaparecendo, que era o Guaidó – se movimentar livremente. Vai na casa do cara, do sujeito que coordena o diálogo com a oposição. Então a expectativa é essa.

O mais importante no momento é o levantamento das sanções. É uma coisa meio sutil, mas eu vejo também um certo avanço na posição norte-americana. Nessa reunião da Colômbia, o delegado (americano) não se sentiu autorizado a assinar nenhum documento, para decepção dos colombianos, mas ele falou. E não senti que falasse em condicionalidades. Ele falava assim: “vamos fazer as coisas em paralelo.” É um passo.

Headline – Uma das frentes da política externa é usar justamente o histórico de neutralidade do Brasil para tentar negociar a paz na guerra da Ucrânia. O presidente propôs criar um clube da paz. Ele não errou novamente ao dizer que a Ucrânia – um país invadido – é tão responsável pela guerra quanto a Rússia – que é um país invasor – e ainda acusar os Estados Unidos e a Europa de não quererem a paz?

Celso Amorim – Primeiro, o objetivo do Brasil não é ser mediador. Isso não é o objetivo da nossa política externa. Um objetivo que deve ser de todos nós é terminar a guerra. A guerra causa imenso prejuízo, dor e sofrimento, claro que, principalmente, para a Ucrânia.

A Ucrânia é vítima. Mas de quem ela é vítima, sobretudo? Ela é vítima de um espírito de Guerra Fria que continuou a prevalecer e que não devia ter prevalecido. Isso justifica a invasão russa? Não justifica, porque é uma quebra do direito internacional. Porém, se você está interessado não em condenar, mas em encontrar um caminho para a paz, você tem que entender as causas um pouco mais profundas da situação.

E eu acho que, em grande parte, isso está ligado à expansão da OTAN. Aliás, não sou eu que acho. (O historiador) George Kennan, em 97, quando o Clinton pela primeira vez falou nisso (na expansão da OTAN), ele disse “olha, eu acho isso um grande erro, para não ir lá atrás ao que foi prometido ao Gorbachov na época da reunificação da Alemanha”.

Essa expansão da OTAN cria um problema. Ou, pelo menos, suscita uma sensação de insegurança na cabeça dos russos. Gosto de História desde o final da minha adolescência. Eu li o livro “Rússia e o Ocidente” do Arnold Toynbee, que era o maior historiador britânico até surgir o Hobsbawn (Eric Hobsbawn). Ele não tinha nenhuma simpatia pela Rússia e pelo Stalin, muito menos. E ele dizia assim: “Olha, a Rússia tem suas razões para se preocupar com a segurança.”.  Aí ele lembra a invasão dos cavaleiros teutônicos, da Polônia, do Napoleão e do Hitler. E qual é o caminho de passagem? A Ucrânia. Nada disso justifica, volto a dizer, a invasão, mas se você não entender que existem essas preocupações, você não vai conseguir resolver nunca o problema.

Qual é a outra solução: derrotar a Rússia de vez? E o que vem depois? O que vai acontecer com a Chechênia? O que vai acontecer com os outros? Vai estar se criando, talvez, um novo Afeganistão. O que vai acontecer com o rancor e o ressentimento que pode surgir dessa política de debilitamento da Rússia? Estou repetindo palavras que foram usadas por altos funcionários, inclusive militares, de países envolvidos nesse conflito. 

Me lembro da Primeira (Guerra) e do esforço para debilitar a Alemanha. E o que fez o Tratado de Versalhes? Criou rancor, ressentimento. Não vou dizer que foi a única causa, mas em boa parte veio o hitlerismo, inclusive com o seu fortíssimo componente de revanchismo. Não é a única causa do nazismo, obviamente, mas certamente é uma delas. Eu acho o seguinte: é preciso encontrar a paz. A paz não vai ser algo que satisfaça plenamente nenhum dos dois lados. Os princípios das Nações Unidas sempre mencionam a integridade territorial dos estados. Mas entre os princípios da ONU também está autodeterminação.

Os países ocidentais, que hoje defendem a Ucrânia, foram responsáveis pelo bombardeio da Sérvia. Aí você diz assim: “não, mas é porque lá havia um genocídio”. Bom, dizem os russos – eu não estou dizendo que é verdade –, que houve muitos maus tratos também aos russos da região de Donetsk. Eu não sei, porque eu não tenho como julgar isso. Não há nenhuma comissão imparcial que tenha estado lá, mas você tem que procurar ver que há uma dificuldade objetiva.

Talvez o Oliver Stuenkel tenha uma percepção sobre isso. Ele falava muito bem dos BRICS (grupo formado por Brasil, China, Rússia, Índia e África do Sul); atualmente, não tão bem. Ele escreveu sobre os BRICS, ele mudou um pouco de ideia, eu acho. Mas, enfim, os BRICS recentemente deram uma declaração. Cada país tem a sua posição. O Brasil, por exemplo, votou a favor da resolução da Assembleia Geral que condenou a invasão.

Agora eu acho que se você colocar como pré-condição para negociação a retirada total das forças russas de todos os lugares, inclusive da Crimeia, não haverá negociação, simplesmente, é isso.

Não foram os russos que me disseram isso, nem os ucranianos. Uma mera análise histórica demonstra isso. Então, nós temos que encontrar uma solução. Eu não sei qual é. Nem vou dizer a solução aqui, porque qualquer que eu pense, além de ser pretensioso, ela seria imediatamente atacada pelos dois lados. Você tem que começar a criar um quadro, uma estrutura que favoreça o diálogo para o momento em que os dois lados sentirem que o prejuízo, o custo humano e econômico, e etc, da guerra é maior do que o custo de uma eventual concessão.

Headline – Pelo que eu entendi, a culpa principal é da OTAN?

Celso Amorim – Não, não tem a questão da culpa principal. Vamos voltar a dizer: nada exonera a Rússia de ter cometido um ilícito do ponto de vista internacional. Isso tem que ser condenado e nós condenamos. Agora você não consegue resolver o problema se você não entender as questões históricas. E eu acho – a OTAN pode existir, continuar existindo, é uma aliança defensiva –, mas não sou eu que estou falando, foi Kennan e em certo momento o Kissinger (Henry Kissinger) em 2014 em relação à própria Ucrânia. Não estou falando de pessoas esquerdistas, não estou falando de pessoas que tenham simpatia especial pelo Putin na época do Kennan. Nem o Putin estava lá. Eu estou falando de uma realidade histórica.

A Rússia foi invadida por um país ocidental. Ela também fez lá suas invasões, não estou defendendo a Rússia, não. Mas, enfim, a história fica. A guerra da Crimeia foi uma guerra entre a Rússia e o Império Otomano. E foram à guerra, à guerra contra outro império naquela época, contra a Inglaterra e contra a França também. Qual era o corredor pelo qual todos esses invasores passaram? Era Ucrânia.

Isso não justifica. Agora, acho que uma solução como a neutralização – como a Áustria. Ela tem suas preferências políticas, é óbvio, porque ninguém é neutro totalmente politicamente, mas ela não se mete numa questão militar contra a Rússia.

Headline – Você disse ao Financial Times que o Ocidente precisa levar em conta as preocupações do Vladimir Putin para não deslizar em direção a uma paz dos vencedores no estilo de Versalhes. Você acredita mesmo que isso possa desembocar numa Terceira Guerra Mundial, se não houver esse equilíbrio em ouvir as duas partes?

Celso Amorim – Bom, não é uma questão de acreditar, não é? Não é uma questão de crer.  Eu acho que isso é um risco e eu acho que nós temos que diminuir esse risco ao mínimo total. Total não existe, talvez, mas ao mínimo possível. Então, eu acho que, digamos, se você encontrar uma solução que será insatisfatória para todos os envolvidos, mas tolerável.

Veja, quantas situações existem hoje em dia na Europa mesmo? Quantas? Você conhece melhor que eu, você está na Europa. Quantas situações que no fundo não estão resolvidas? Eu mencionei o próprio Kosovo. Metade dos membros da ONU reconhece Kosovo, metade não reconhece, mas não é uma ameaça imediata a uma guerra mundial.

Eu não gosto de ficar citando exemplo, porque eu não quero me indispor com outros países aí, mas é você, olha, faz um joguinho aí, olha situações não resolvidas e que, no entanto, não são uma ameaça à guerra mundial. Então, você tem que encontrar algo parecido.

Não vou dizer exatamente como eu acho que pode ser, primeiro, porque não quero ser pretensioso e não sei direito. Só a conversa entre eles é que pode dar margem a isso. Mas essa conversa não surgirá enquanto um lado ou outro ter esperança de uma vitória total. Então, é preciso que haja a compreensão de que nós estamos vivendo uma situação extremamente difícil, uma guerra em que o número de mortos dos dois lados se sucede, enorme, de forma imensa, e eu acho que é preciso haver uma compreensão e criar uma estrutura. É preciso criar uma estrutura.

Até a guerra do Vietnã, a guerra do Vietnã, não é um bom exemplo, porque demorou muito, mas mesmo assim eles começaram a discutir a paz em 68 e só conseguiram em 75. Mas talvez tenha evitado o pior em 75. Acho que não é preciso tanto tempo. Agora, a comunidade internacional está muito mais preparada. Você tem muito mais países interessados.

Não é o Brasil que está procurando mediação. Veja, sabe por quê? Fica uma ideia assim “ah, o Brasil está megalômano”. O Brasil não está nada megalômano. Eu recebi há pouco um alto funcionário estrangeiro e comentei que o Brasil tem é o único país do mundo, provavelmente, que tem fronteiras com 10 países e que não tem guerra há 150 anos. Isso é uma credencial. E ele disse: “por isso mesmo nós queremos o apoio de vocês”.

Outro dia o Blinken (Anthony Blinken, secretário de Estado dos EUA) comentando, é claro que ele não está de acordo com a solução que ele imagina que o Brasil está propondo. Mas, enfim, mas foi ele que citou: ”não, nós somos a favor – e o primeiro que ele citou – que o Brasil possa ajudar, que a China possa ajudar, ótimo”. Então, é só dentro do Brasil é que existe essa percepção de desprezo, que o Brasil, que o objetivo do Lula é seu intermediário, que objetivo do Brasil…Não é objetivo nenhum.

Para voltar a um assunto pelo qual nós somos muito criticados, o Brasil nunca se auto propôs a trabalhar no negócio do Irã, do programa nuclear. Foi o Obama que pediu ao Lula. E pediu nos termos que nós conseguimos. Ele depois mudou de ideia, isso é outro problema. Mas seu colega, já hoje falecido Clóvis Rossi, quando teve o acordo americano, ele disse que o acordo do Lula era melhor e o Clóvis Rossi não pode ser acusado, não podia ser acusado, o saudoso Clóvis Rossi não podia ser acusado de ser especialmente simpático à nossa política, certo? Fez muitas críticas.

Headline – O cerne da crítica era mais no sentido de equiparar Ucrânia e Rússia como responsáveis no mesmo nível.

Celso Amorim – Nós não estamos dizendo isso. Vocês estão pegando uma declaração ao Time, que foi uma entrevista, eu não sei direito exatamente o que o presidente falou. E eu acho que, digamos assim, você pode dizer quem foi o principal causador da guerra, é uma coisa. Agora, quem é o principal causador da continuação da guerra? Os dois e mais quem apoia.

Headline – Zelenski deu uma entrevista e disse estar disposto a ouvir as propostas do líder brasileiro para acabar com a guerra. Ele reforçou o convite para uma reunião com o presidente Lula. Quando essa reunião vai acontecer?

Celso Amorim – Eu não sei, uai. Tem que ver a oportunidade, tem que ver o interesse. Sabe, isso não é o objetivo nosso. Nós não estamos numa disputa de popularidade com Zelenski. Saber quem é que está convidando quem, não tem isso. Nós estamos interessados. Eu acho que deve ser o interesse dele – acredito que seja – acabar com a guerra, não é? Então, se o momento em que o encontro do Lula com o Zelenski ajudar a acabar com a guerra, se esse momento chegar, obviamente nós estaremos lá, o presidente Lula estará lá.

Agora, eu acho que o problema não passa por aí. Eu acho que não passa nem por um encontro do Lula com Zelenski, nem no encontro com Lula com Putin, porque nenhum dos dois, nesse momento, parecem dispostos a fazer as concessões. necessárias para terminar com a guerra. É preciso haver um momento de cansaço em que a concessão seja menos dramática ou menos custosa do que a continuação do conflito.

Infelizmente, ambos continuam achando, com a contra ofensiva ucraniana, por um lado, e a capacidade de resistência dos russos, por outro, que eles podem ganhar.

Você fez a pergunta sobre o que está contribuindo (para a guerra). É você estimular um otimismo que talvez seja irrealista. Talvez o Zelenski, achando que ia ter (caça americano) F-16, que ele ia ter não sei o quê, acha que pode ganhar a guerra com os russos. Eu acho muito difícil. Muitos tentaram e não conseguiram. Nós não estamos falando aqui do Iraque ou da Líbia. Nós estamos falando de um país que tem 11 fusos horários, que tem uma riqueza imensa, que é aliado da China, que é a maior potência econômica hoje, dependendo do critério que você usa. É um pouco complicado imaginar que vai ganhar essa guerra.

Headline – Você esteve na Rússia e na Ucrânia depois das declarações do Lula.

Celso Amorim – É. Eu acho que eu fui um dos pouquíssimos que estive – do meu nível, mais baixo, o mais alto, menos ainda – com o Zelenski e com o Putin depois que a guerra começou.

Headline – O que você ouviu deles?

Celso Amorim – O que eu ouvi deles é o que eles falam habitualmente. Eu acho que nada do que ouvi me surpreendeu. Não vou dizer que houve uma novidade excepcional. Eu acho que foi interessante eles terem me recebido e terem se dado ao trabalho de explicar com as suas próprias palavras a situação e a sua disposição. Mas eu ouvi muito pouca disposição para negociar neste momento.

No caso dos russos, eles não dizem que não querem negociar, mas eles dizem até que tentaram negociar logo no início da guerra, ali na Turquia e tal. Mas que os países ocidentais acabaram, sobretudo os Estados Unidos, teriam então – eu não estou subscrevendo essa teoria, não, eu só estou dizendo o que teriam (dito), mas é o que eles dizem publicamente –, teriam impedido o Zelenski de seguir negociando.

E, no caso do Zelenski, ele mesmo disse. Ele disse para o papa “eu não quero mediador”,  não é? Ele comigo foi delicado, polido, mas uma semana depois, ele disse para o papa que não precisava de mediador. Aliás, não sei a quem ele estava se referindo. Enfim, de qualquer maneira, não quer, não acha que seja o momento de negociar e está confiante nesse apoio que ele tem no Ocidente, que ele vai poder,  digamos, enfim, ferir a Rússia de tal modo que ela concorde em retirar as tropas.

Headline – Ou seja, de nada adianta se encontrar com o presidente Lula agora.  Zelenski negou, inclusive, que houve um desencontro no Japão, e que tenha sido porque ele não apareceu na hora marcada, segundo a Folha de São Paulo.

Celso Amorim – Isso é uma não questão.

Headline – Alguns especialistas acham que a política externa brasileira deveria se dedicar mais a temas onde o Brasil possa liderar no plano global, como meio ambiente. Ou seja, concentrar mais os seus esforços em meio ambiente, e menos em questões controversas como Ucrânia e Venezuela. O que você acha?

Celso Amorim – Eu tenho 60 anos dedicados à diplomacia, de modo que essa expressão “especialistas”, para mim, não conta. Mas para tentar responder a pergunta, eu acho que uma coisa não tem contradição com a outra. Aliás, não há uma coisa que possa fazer mais mal ao meio ambiente do que a guerra. Tem que ser meio ambiente com humanidade. Só o meio ambiente sem humanidade, não é meio ambiente, é o ser em si, como diriam os filósofos.

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