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Droga: nova Religião e Narcocultura

“Um povo sem memória é um povo sem história. E um povo sem história está fadado a cometer, no presente e no futuro, os mesmos erros do passado” – Emília Viotti da Costa (historiadora e professora)

Foto – Altar para Jesús Malverde, o “santo dos narcotraficantes mexicanos” (fonte da imagem: Roberto Armenta).

Insurgência e Insurgência Criminal – A última linha de defesa – Droga: nova Religião e Narcocultura
(2ª parte)

Flávio César Montebello Fabri *
Colaborador DefesaNet


Nota DefesaNet
Matérias integrantes da série
Parte I – Insurgência e insurgência criminal – A última linha de defesa

Parte II – Insurgência e insurgência criminal – A última linha de defesa Droga : nova Religião e Narcocultura

O Editor


O Centro de Estudos Estratégicos do Exército Peruano (CEEEP) publicou recentemente um artigo com a análise de modelos de contrainsurgência. Bem coerente a iniciativa da produção de pensamento / doutrina, tendo em vista os ambientes atuais de conflito e as ameaças que se apresentam.

Sobre o notório interesse peruano sobre o tema, recordemos de eventos que envolveram o grupo insurgente Movimento Revolucionário Tupac Amaru – MRTA. Em particular, o que fez provocar o desencadeamento da famosa operação Chavin de Huántar, para a retomada da residência oficial do embaixador japonês no Peru (onde houve uma festa com centenas de importantes convidados). No dia 17 de dezembro de 1996, o local foi invadido por 14 integrantes MRTA, em uma crise que se estendeu por impressionantes 126 dias, amplamente documentada e estudada (como curiosidade, o nome da operação refere-se a um sítio arqueológico conhecido por suas passagens subterrâneas, sendo que para a retomada do ambiente e libertação dos reféns, foram construídos túneis para propiciar o adentramento de tropas). O dia 22 de abril de 1997 marcou o fim da crise.

Mas, em relação à insurgência criminal, o CEEEP também promoveu estudo a respeito da atuação de Organizações Criminosas (OrCrim). Em particular, as brasileiras.

No livro Challenges and Threats to Security in Latin America (“Desafios e ameaças à segurança na América Latina”, colaborativamente produzido pelo CEEEP e institutos de estudos estratégicos dos EUA, publicado em 2022), há um artigo que chama a atenção: Evolução e impacto das gangues na América Central e no Brasil. Assim, os pesquisadores Douglas Farah e Marianne Richardson (ambos da Universidade de Defesa Nacional dos EUA) citam:

  • (…) a Mara Salvatrucha (MS-13) na América Central e Primeiro Comando da Capital (PCC) no Brasil – acumularam poder militar, econômico e político, bem como amplo controle territorial, na medida em que agora representam ameaças existenciais aos estados em que operam. Constituem agora componentes-chave de formidáveis ​​estruturas criminosas transnacionais, com laços profundos com o tráfico de drogas e outras atividades criminosas em vários continentes. Os grupos aperfeiçoaram a sua ascensão utilizando modelos diferentes e mantêm diferenças significativas em estrutura e capacidades. Apesar disso, ambos são agora os principais motores da corrupção, da violência, da atividade criminosa e de estruturas de governança alternativas que representam um desafio (…) em toda a América Latina. (…) Em muitos lugares, são vistos como autoridades mais legítimas do que o Estado, tornando a ação eficaz contra eles extremamente complexa e difícil.

 Há semelhanças (se o PCC possui “sintonias” para que ocorra a gestão das diversas áreas da organização criminosa, a MS 13 tem “ranflas”) e diferenças entre tais organizações. Entre as diferenças, a MS 13 almeja conseguir (segundo os pesquisadores citados), a penetração que o PCC possui na “cultura popular e presença social. A MS 13 já teria uma maior penetração e influência dentro das esferas de poder governamental. Ainda, afirmam que “a análise atual indica que o PCC ainda não está tão integrado nos mais altos níveis de poder e, em vez disso, está centrado nas estruturas governamentais regionais e municipais… o PCC tem capacidade logística sofisticada e habilidade para realizar assaltos de alto perfil a bancos e joalherias, não apenas no Brasil, mas em outros países, um tipo de ataque que o MS-13 ainda não realizou”.

Mesmo que efetivamente não ocorram, um fato é constante: a busca de parcerias (temporárias ou não, conforme os interesses) entre organizações criminosas (fonte: Acervo do jornal Correio Braziliense).

A maior preocupação apresentada é a capacidade que tais organizações possuem de desestabilizar países (literalmente). O Peru, também, constatou que em áreas com pouca ou irrelevante presença estatal, que outro grupo brasileiro se faz presente dentro de suas fronteiras: o Comando Vermelho – CV. Na região de Ucayali (fronteira amazônica com o Brasil), lideranças indígenas foram assassinadas. Há uma grande atividade criminosa (narcotráfico, extração de madeira, garimpos etc.), sendo detectada a presença de representantes dessa organização (em meados de 2022). Com a denúncia da permissividade de autoridades locais, o Peru teria se tornado refúgio para integrantes do CV. A violência (por intermédio de assassinatos e conflitos armados) é a marca que fica registrada por lá.

O interesse, para que Organizações Criminosas Transnacionais operem no meio das selvas, longe de áreas populosas? Como percebido, dinheiro, a ser obtido de várias formas (preferencialmente longe da presença de forças estatais e de qualquer controle).

Para a Colômbia, poderia ser uma benção poder expor que é uma das nações que mais exporta ouro no mundo (exceto pelo fato de que 85% do material exportado é fruto de mineração ilegal, conforme alerta dado, nos idos de 2022, pela Controladoria Geral da República da Colômbia). Nas áreas de extração, a presença de grupos armados é uma constante:

  • “Leonardo Güiza Suárez, diretor do Centro de Inovação Mineira e Ambiental da Universidade de Rosário, em Bogotá, disse (…) que em apenas dois dos 350 municípios, onde se estima que o ouro é extraído, não há presença desses grupos: são eles California e Veta, no departamento de Santander. O restante está sob o controle do grupo guerrilheiro (Exército de Libertação Nacional), dissidentes das guerrilhas (das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) e dissidentes dos antigos paramilitares, que formam as chamadas Autodefesas Unidas da Colômbia e são conhecidos como o Clã do Golfo”.

    (NICHOLLS, Sabrina – Ouro colombiano enriquece grupos criminosos e empobrece o solo e a população – Diálogo – 2023)

Quando há interesses (lucro obtido com apoio mútuo), não há dissonância em relação às parcerias entre esses grupos. Não que sejam amigos, solidários ou que se respeitem eternamente (resta ver a matança que existe quando os interesses de uns acabam por interferir no de outros, bastando a singela pesquisa do termo “guerra entre facções” para dirimir qualquer dúvida). 

Por exemplo, Buenaventura, na Colômbia (onde se encontra um importante porto, no que reside o interesse criminoso de remessas de drogas para outras partes do mundo) estava testemunhando um processo de “negociação de paz”: entre criminosos e o governo… e entre grupos criminosos em disputa. Alguns, que se interessam sobre o tema, mencionam que a violência resultante das disputas era tão grande, que foi negociado um período de não agressão entre integrantes de gangues pelos idos de novembro de 2023. O “acordo” válido até fevereiro deste ano teria sido prorrogado até maio.

O grupo InSight Crime (que busca principalmente debater e informar sobre o crime organizado nas Américas) já havia citado a problemática da ação de criminosos em Buenaventura, a luta por “seu controle” pelas FARC – EP (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo), Forças Unidas de Autodefesa da Colômbia (Autodefesas Unidas da Colômbia – AUC) e, com o tempo, por gangues: os Shottas e os Spartans.

Uma das mais competentes e experientes equipes de mergulhadores da área de segurança pública pertence aos Comandos e Operações Especiais – COE, 4º Batalhão de Polícia de Choque – Operações Especiais (São Paulo). Os mergulhadores PSD’s (Public Safety Diver) contribuem com grandes apreensões de drogas. As mesmas são inseridas em embarcações (por vezes nas chamadas “parasitas”, contentores que são presos nos cascos) e chegam a outros continentes. Há um constante aprimoramento desses profissionais, tão como o investimento em equipamento de ponta para essa atividade importante, extremamente técnica e pouco conhecida. Possuem, também, uma grande capacidade em atuar colaborativamente com outras agências estatais.

Quando mencionado o termo “gangue” é interessante jamais subestimar o que são, o que podem fazer e o prejuízo (e violência) que podem causar. Basta lembrar da MS 13 e milhares de seus integrantes espalhados pela América e Europa.

Sobre a eficácia das leis (e a interpretação destas) podemos afirmar que certamente é um tema que passou a chamar a atenção. Um evento marcante no Brasil foi quando o traficante André do Rap (André Oliveira Macedo) foi solto por decisão de ministro da suprema corte brasileira. A decisão foi revogada, porém o traficante fugiu. Posteriormente, outra esfera da justiça brasileira, pela interpretação que teve, fez devolver bens do traficante (incluindo um helicóptero que, apreendido, estava sendo utilizado em operações policiais, tão como uma lancha).

Foi entendido que o mandado de prisão contra o criminoso não autorizava a apreensão de tais bens. Várias prisões (criminosos considerados alvos importantes, inclusive) foram revogadas em outros momentos, por questões de interpretação da legislação, nas esferas superiores da justiça. Restou, para as forças policiais, a resiliência em persistir na missão.

Além da questão do cabedal jurídico vigente, da jurisprudência que é criada (com seu claro impacto na realidade da segurança pública), do ativismo, há outros pontos em perfeita dissonância quando o foco é aumentar a sensação de segurança, de ordenamento e da própria democracia.

Agora, vamos passar a refletir sobre a oferta de uma “cultura” enaltecendo “valores” no mínimo questionáveis. Podemos, por exemplo, começar por alguns gêneros musicais. Que tal imaginarmos uma imensa quantidade de jovens e adultos dançando no ritmo de músicas com letras violentas, enaltecendo (por exemplo) um grupo criminoso? Letras, onde se fala que “se você não é bom para matar, você é bom para morrer”. Claro que as dezenas (ou centenas) de jovens que em uma festa, baile, ou qualquer que seja o evento onde estejam reunidas e ouvindo esse tipo de música poderiam, também, estar (eventualmente) consumindo álcool e/ou drogas. Alguns desejam se sentir como traficantes “por uma noite”.

O culto ao enfrentamento do aparato estatal, da pretensa ousadia, rebeldia sem se importar com mais nada ou de não respeitar absolutamente ninguém, uso de armas, imposição (pela força) de domínios, violência. Muitos acabam por identificar-se e adoram esse tipo de gênero (alguns, inclusive, talvez afirmem que “são resistência” em relação à ordem instituída em seu país). Alguns, também, dirão que tais músicas são uma forma de “expressão”, de revolta, de insurgência. Ou, como exposto pela BBC News (Washington), que “contam histórias de pessoas que se sentem, muitas vezes com razão, negligenciadas pelos aparatos estatais e econômicos e buscam possibilidades de rebelião e ascensão socioeconômica.

Seria a descrição de um baile funk que ocorre em uma comunidade carioca (ou em qualquer outro lugar com desordem social do Brasil), com vários freqüentadores dividindo o mesmo espaço com narcoterroristas ostensivamente armados de fuzil? Não. A BBC (British Broadcasting Corporation), falou sobre os narcocorridos mexicanos e o sucesso que esse gênero tem alcançado nos Estados Unidos (“Narcocorridos”: as sangrentas baladas mexicanas que fazem sucesso nos EUA. Bernd Debusmann. BBC, 2023). Diversas facetas de um ambiente híbrido de guerra que transcende fronteiras.

Se por um lado buscam a “simpatia”, admiração ou penetração em outros grupos sociais, por outro existem várias outras formas de promoverem o aliciamento. E isso não é nenhuma novidade. Há muito, muito tempo, se noticia sobre a capacidade das OrCrim de cooptação de novos integrantes.  Como também, há muito tempo, vemos dissonância no propósito de ao menos mitigar o problema.

Em locais onde a governança estatal não é forte, há a tentativa¸ por OrCrim, de impor regramento alternativo. Soma-se ao fato de que, nesses casos, quanto mais desordem inicialmente (e miséria), para eles melhor. Se há uma “cultura” e ativismo para dificultar a ação policial, por outro há espaços que tais organizações tentam ocupar (sob os aplausos de alguns do terceiro setor). Proibir roubos e furtos nas áreas de comunidades (e com isso mostrar “preocupação” com os moradores), porém ao mesmo tempo (alheio à vontade dos mesmos moradores), promover o tráfico de drogas e desordem pelos bailes funk parece, no mínimo, controverso.

Mas, para um jovem morador da comunidade, que anteriormente estava sendo roubado ou admoestado e, em um primeiro momento, vê que seus problemas diminuíram, talvez a ótica seja outra. Que fadado ao fracasso por não ter acesso a uma educação de qualidade que o habilite a ter uma boa colocação no mercado de trabalho, passa a perceber que o lugar de desordem (e pobreza) onde mora, começou a ser freqüentado por vários outros jovens (alguns abastados), que enaltecem a vida dos criminosos e adoram aquele mesmo lugar onde ele vive. Há liberdade de fazer quase tudo o que se quer (teoricamente). Que encontrará o “respeito” que nunca teve (ou em circunstâncias normais, teria), passando a integrar a OrCrim que tudo aquilo banca e é tão “admirada”, temida e respeitada por outros.

Talvez, o jovem “fracassado” passe a ser temido e admirado por agora portar um fuzil que se encontra a serviço do tráfico de drogas. Quem sabe agora, para a OrCrim (e para ele próprio), aquele jovem deixe de ser somente mais um, de vários outros condenados a uma “vida de sujeição”, para ser um “combatente” deles. Pertencimento. Sentimento de pertencimento a algo (sentimento forte, importante e que as OrCrim sabem extremamente bem fomentar). Até por isso utilizam o termo “tropa” para os grupos armados de narcotraficantes.

Em relação ao processo de “alistamento” para alguma OrCrim, citaremos o da  MS 13, que começa na infância. Seus pretensos integrantes (a maioria em condição de vulnerabilidade social) passam a conhecer, a partir dos quatro anos de idade, sinais que os identificam como membros da gangue (desde cedo, passam a ter o sentimento de pertencimento a algo maior que eles próprios). Segundo a BBC, a “MS-13 surgiu nos bairros de Los Angeles durante os anos 1980, formada por imigrantes que fugiram da longa e brutal guerra civil de El Salvador. Outros membros vieram de Honduras, Guatemala e México. MS significa ‘Mara Salvatrucha’, uma combinação das palavras Mara (gangue), Salva (Salvador) e trucha (malandros da rua). Já o número 13 representa a posição da letra M no alfabeto.” Há rituais para que sejam “iniciados” seus novos quadros, que começam com um espancamento com duração de 13 segundos, tão como a obrigação de praticar um crime violento, sendo este, normalmente, um assassinato.

Processo de recrutamento e “evolução” na MS 13. A adesão de novos integrantes começa quando estes possuem 4 ou 5 anos de idade. Aos 9 ao 10 anos passam a testemunhar assassinatos (fonte: informações e imagem –  Cel. Joed I. Carbonell-López, Doutor em Liderança Estratégica, US Air Force).

A narcocultura, apesar de início, para alguns estudiosos, tratar-se de gêneros musicais ou expressão de “arte” visual é algo bem mais amplo. Abrange, inclusive, o aspecto religioso.

Se na primeira parte do artigo foram citadas as revoltas de 1807 e 1835 em Salvador (Bahia) e, em alguns momentos, o propósito dos escravos de destruírem igrejas católicas, suas imagens e tentarem impor uma autoridade muçulmana na cidade, praticamente dois séculos depois há, com a insurgência da criminalidade, um intento similar (imposto pela força).  Assunto inclusive de livros, tão como tema abordado em diversas áreas (com, também, as mais diversas interpretações), alguns traficantes ditos “evangélicos” passaram a destruir templos religiosos (de matriz africana) no Rio de Janeiro, dentro de comunidades. Deixando bem claro: não há fusão entre a liderança de qualquer segmento evangélico e traficantes. Existe a adoção de determinada convicção por alguns criminosos e, estes, acabam impondo tal crença no local onde detenham a governança.

A BBC, por intermédio de sua seção brasileira, citou que “os traficantes que dominam as favelas de Parada de Lucas, Vigário Geral e outras três comunidades na Zona Norte do Rio de Janeiro elegeram referências bíblicas como seus principais símbolos. A facção se autodenomina ‘Tropa de Arão’ — uma figura bíblica, irmão de Moisés. A estrela de David foi espalhada em muros e bandeiras nas entradas das favelas, e está até em um neon no alto de uma caixa d’água na comunidade de Cidade Alta. O território foi batizado, segundo a polícia, de ‘Complexo de Israel’ pelo chefe da Tropa — uma referência à “terra prometida” para o ‘povo de Deus’ na Bíblia” (MORI, Letícia. ‘Narcopentecostalismo’: traficantes evangélicos usam religião na briga por territórios no Rio. BBC News Brasil, 2023).

A Fé e o Fuzil – Crime e Religião no Brasil do Século XXI (MANSO, Bruno Paes. Editora Todavia, 2023) e Traficantes Evangélicos – Quem são e a quem servem os novos bandidos de Deus (COSTA, Viviane. Editora Thomas Nelson Brasil, 2023) são duas obras recentes que abordam o tema da religião seguida por criminosos. Ressalta-se que a autora Viviane Costa, além de robusto currículo acadêmico, também é pastora pentecostal.

A National Geographic publicou (agosto de 2023) interessante reportagem a respeito de uma figura religiosa que também foi adotada pela fé de milhões de devotos (sendo que se encontra, entre estes, uma minoria de criminosos): Santa Muerte. Conhecida como Menina Bonita, Menina Branca, Madrinha, Menina Ossuda ou A Senhora, estima-se que possua 12 milhões de fiéis (a maioria no México, porém nos Estados Unidos existem diversos seguidores, havendo procissões em cidades como Nova Iorque).

Músicas, novelas, filmes, livros, vestimentas, linguajar próprio, proibição de determinas religiões em áreas com parca governança estatal, culto a valores que para alguns demonstram ousadia (e desprezo pelo regramento vigente), processo de alistamento de novos integrantes e ações que objetivam os “corações e mentes” de outros, tentando angariar simpatia e a imagem de insurgentes que enfrentam o aparato (estatal).  Com absoluta certeza a narcocultura transcende a mera expressão “cultural”. Assim sendo, é aspecto relevante da insurgência criminal.

Em relação à religiosidade, ainda, interessante notar que, em um dos portais de notícias de Sinaloa (México), local que empresta seu nome para um cartel (Cartel de SinaloaCDS) já ocorreu menção, em artigo, de uma pessoa extremamente conhecida, que nasceu também por lá: Jesús Malverde, conhecido como o “santo dos narcotraficantes mexicanos”. Para alguns, a figura de um Robin Wood mexicano (a romântica visão de roubar dos ricos e dar para os pobres). Fato que “os fiéis que confiam em seus milagres estendem-se à Califórnia e à Colômbia, onde também possui capelas para ser venerado” (Sinaloa em línea – Jesús Malverde ¿El santo de los narcos mexicanos? Aquí su historia, 2022).

Altar para Jesús Malverde, o “santo dos narcotraficantes mexicanos” (fonte da imagem: Roberto Armenta).

O CDS efetua, entre vários crimes, a fabricação e distribuição de fentanil (a droga zumbi), sendo alvo de interesse da justiça norte-americana. Da mesma forma que a MS 13, o CDS e o Cartel Jalisco Nueva Generación CJNG possuem interesse no estabelecimento de laços com organizações criminosas brasileiras:

  • “O cartel mexicano de Sinaloa (…) estaria buscando expandir sua influência para o Brasil, onde acredita-se que tenha acordos com o Primeiro Comando da Capital (PCC), segundo um relatório da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN).

    (…) os narcotraficantes mexicanos, que atualmente são os mais poderosos e violentos do mundo, vêem o Brasil (…) como um ‘importante mercado de consumo e rota de tráfico de drogas’ com destino à Europa. Além do famoso cartel de Sinaloa, o grupo Jalisco Nueva Generación também estaria interessado em estabelecer operações no Brasil.

    ‘O cartel Jalisco Nueva Generación está envolvido em crimes de extorsão, seqüestro, roubo de veículos e tráfico de armas. Eles também se especializaram em oferecer serviços de lavagem de dinheiro em paraísos fiscais para outras facções e até mesmo para grupos empresariais’, aponta o documento ao qual o portal Metrópoles teve acesso.

    A embaixada brasileira no México detectou ‘conexões concretas’ entre os cartéis de Sinaloa e Jalisco Nueva Generación com o PCC”.

    (Brasil está na mira de cartéis de drogas mexicanos, diz Abin – Notícias UOL, 2023)

É possível, pelo exposto, dimensionar o tamanho do problema que as forças de segurança, normalmente sozinhas, enfrentam? Honestamente, para uma imensa maioria NÃO. Nem o tamanho do problema e menos ainda o custo que poucos pagam para, ao menos, mitigá-lo.

Para termos uma dimensão parcial disso, é importante ressaltar a iniciativa da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro – PMERJ que, no ano de 2019, fomentou o I Simpósio Nacional de Vitimização Policial. Além da exposição de dados (que para qualquer governante deveriam ser uma fonte de enorme preocupação e vergonha), foi exibido o documentário “Heróis do Rio de Janeiro” (baseado nas pesquisas e no trabalho do Coronel PM Fabio Cajueiro).

No mês de maio de 2019, a Comissão de Análise da Vitimização Policial (Rio de Janeiro) expôs que, em “25 anos (entre 1994 e 2018), a PMERJ teve 3.508 mortos e 15.881 feridos, por causas não naturais, totalizando 19.389 baixas, considerando um efetivo de 110.000 homens que serviram na PMERJ no período”.  Ressaltaram que, no período de quatro anos que antecedeu o evento, os afastamentos psicológicos / psiquiátricos de policiais chegavam entre três a quatro por dia.

O mais irreal de tudo foi concluírem que não havia, em todo mundo, uma força policial com o qual pudessem comparar os dados de suas baixas. Assim, recorreram às forças que atuaram em guerras (Exército Brasileiro na II Guerra Mundial e as Forças Armadas dos EUA em várias guerras no século XX). Tal comparação se deu pelos dados confiáveis a respeito das baixas de militares e, também, pela conclusão de que seria algo talvez próximo do que estariam passando (atuação em área de conflito, mesmo o não declarado).

O documentário “Heróis do Rio de Janeiro” apresentou, de forma inédita, o custo para a manutenção da segurança pública, tão como a realidade apresentada quando da ausência de ações políticas eficazes e de longo prazo (fonte: Associação Beneficente Heróis do Rio de Janeiro).

A conclusão que chegaram é que foi mais seguro (muito mais seguro) integrar o contingente militar dos Estados Unidos da América, em qualquer um dos conflitos em que atuaram no século XX, do que ser policial militar no Rio de Janeiro. Idem quando comparado à Força Expedicionária Brasileira – FEB (2ª Guerra Mundial).

Outro dado que não é considerado para a maior parte dos pesquisadores e que causa preocupação: a estimativa de aproximadamente 7.000 órfãos de policiais mortos (no Rio de Janeiro) nos últimos 25 anos, dos quais a metade ainda é menor de idade. Se alguém faz jus à fama de “somos resistência”, com absoluta certeza, são os policiais do Rio de Janeiro (e do restante do Brasil).

A dissonância entre a ação daqueles que se propõe a enfrentar realmente o problema (via de regra, a polícia, com suor e o próprio sangue) e aqueles que continuam apenas nos discursos e debates, só faz aumentar o tamanho das ameaças e dos riscos para os primeiros que citados. Quanto mais se espera, mais as organizações criminosas crescem, procuram mais formas de obter lucro, se reinventam, inovam, penetram mais na máquina pública, na simpatia de alguns da sociedade (infelizmente) e na resignação de uma maioria.

Não será a polícia, sozinha, que irá resolver o problema da insurgência criminal (mas é justo falar que é a única que paga um preço altíssimo). A inércia, a omissão ou mesmo a permissividade ideológica não são opções para o enfretamento. É fato que, mesmo com recursos para a segurança, uma legislação robusta e apoio político, diversos países enfrentam problemas gravíssimos. Assim sendo, não é algo que tão somente a força policial possa resolver ou, no mínimo, mitigar. A ação, nas mais diversas áreas, se faz necessária. Necessária, simultânea, constante e por longos períodos. Dificilmente será algo a ser mitigado em um prazo inferior ao de uma geração. Muito dificilmente e isso prevendo investimentos maciços, que atinjam efetivamente a população das regiões de interesse, sem interferência ideológica e com o apoio de atores políticos. Uma política de ESTADO, não de governo.

Não se trata de uma conclusão pessoal: fatos demonstram a convicção da necessidade de uma ação integrada, em várias áreas, por um longo período.

Faço votos para que ocorra, com o tempo, ao invés do ativismo e da dissonância de propósitos, uma política de estado robusta. E que, principalmente, sempre possamos dispor de boa memória (e obter bom aprendizado a partir dela).

Uma das maiores virtudes que temos é a memória e, com ela, podermos aprender com experiências passadas para evitar problemas no futuro. Disse a historiadora e professora Emília Viotti da Costa: “Um povo sem memória é um povo sem história. E um povo sem história está fadado a cometer, no presente e no futuro, os mesmos erros do passado.”

* É colaborador do portal DefesaNet. Acadêmico (Licenciatura) em História. Bacharel em Direito. Bacharel e Mestre em Ciências de Segurança e Ordem Pública. Autor de diversos artigos a respeito de Guerra Híbrida, Vitimização Policial e Guerra Informacional.

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