Marcella Fernandes
Correio Braziliense
Apesar de a ditadura militar ter acabado há 30 anos, nomes icônicos que estavam no poder nesse período continuam presentes nas ruas do país. Esse cenário, contudo, tem mudado a cada dia. Com incentivo das comissões da verdade regionais, diversas cidades rebatizaram avenidas, pontes e escolas, trocando o nome de ditadores pelo de militantes (veja o quadro). A alteração é reforçada por uma recomendação do relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), apresentado em dezembro do ano passado, que inclui vias de transporte, edifícios e instituições públicas federais, estaduais ou municipais.
“O objetivo é preservar a memória dessas violações de direitos humanos, visando à prevenção de sua repetição no futuro sob o lema conhecido como ‘nunca mais”, explica André Sabóia, presidente da CNV. Das sugestões enviadas ao grupo que ainda não saíram do papel, as principais são a alteração do nome da Rodovia Presidente Castelo Branco, principal ligação da região metropolitana de São Paulo ao oeste do estado; e do Estádio Governador Magalhães Pinto, o Mineirão, em Belo Horizonte. O governante ajudou a concretizar o golpe de 1964. Outras ideias propostas são a troca de todas as ruas 31 de março para “Rua da Liberdade” e homenagens a vítimas, como o guerrilheiro Carlos Marighella, o político Rubens Paiva e o jornalista Vladimir Herzog.
De modo geral, as mudanças são feitas por meio de leis aprovadas nos legislativos municipais e distrital, no caso do Distrito Federal. A exceção são os bens públicos federais, como a ponte Rio-Niterói ou rodovias interestaduais, em que a decisão cabe ao Congresso Nacional. Por ser responsável pela preservação do patrimônio cultural no país, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) pode interferir se considerar a mudança um prejuízo histórico, o que não aconteceu até então.
No caso de colégios, alteração é feita por um processo administrativo. Em Nova Iguaçu (RJ), a Escola Estadual Presidente Costa e Silva foi rebatizada por meio de uma resolução da Secretaria de Educação do estado. Para Rosa Cardoso, presidente da Comissão da Verdade do Rio, que atuou no processo, a medida terá caráter pedagógico. “Não podemos homenagear uma pessoa responsável por crimes de lesa-humanidade em um local onde as crianças estão para refletir sobre a história geral do país”, afirma. Levantamento mais recente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), divulgado no ano passado, identificou 976 escolas públicas com nomes de presidentes do regime de exceção.
Transição necessária
Para historiadores, as mudanças nas ruas são recorrentes e representam um marco na transição de regimes políticos, como a Revolução Francesa e a Russa, o fim do nazismo na Alemanha e a transição no Brasil de império para república. “Essas mudanças são muito importantes porque contribuem no processo de construção da memória nacional, por m eio dos lugares, das praças, das ruas”, explica Dulce Pandolfi, do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas (FGV). A especialista acredita que o rebatismo tem uma relevância em um momento em que alguns grupos pedem a volta do regime de exceção. “Muitas pessoas não têm ideia da realidade da época, não sabem como foi a repressão, a tortura”, alerta.
Na avaliação do coordenador da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da Universidade de Brasília (UnB), José Otávio Guimarães, a resistência por parte da população muitas vezes acontece por desconhecimento ou por questões burocráticas, como moradores que têm de alterar o endereço para correspondência. “Tem gente que não gosta de mudança, mas tem várias pessoas que não sabiam (que o endereço se referia à ditadura) e, com a informação, passam a ter um posicionamento ideológico”, afirma.
Endereços rebatizados // Moradores de cidades diversas se mobilizam para mudar nomes de escolas, ruas e pontes
Bahia
Em dezembro de 2014, a comissão da verdade da Bahia entregou ao então governador Jaques Wagner um relatório em que propôs a renomeação de prédios e logradouros públicos que homenageiam líderes ou agentes da ditadura. A ideia era que o governo local contribuísse para o levantamento dos endereços e consultasse a população, por meio de plebiscitos, para definir novos nomes, como aconteceu com o Colégio Estadual Carlos Marighella (foto), em Salvador. Até fevereiro de 2014, a escola homenageava o ex-presidente Médici.
Distrito Federal
Antes Costa e Silva, a ponte próxima ao Pontão passou a se chamar Honestino Guimarães desde 27 de agosto, quando o governador Rodrigo Rollemberg sancionou a lei quee mudou o nome da estrutura. Projeto de Oscar Niemeyer, o local era o único monumento da capital que mantinha referência à ditadura. A mudança é reivindicação antiga de ativistas para homenagear o líder estudantil que lutou contra a opressão e consta do relatório final da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da Universidade de Brasília (UnB).
Maranhão
Foram alterados os nomes de dez escolas de nove cidades que homenageavam os presidentes Emílio Garrastazu Médici, Arthur Costa e Silva e Castelo Branco. A modificação foi publicada no Diário Oficial do Maranhão, em 31 de março, exatamente 51 anos após o golpe. Na capital São Luís, o colégio estadual Marechal Castelo Branco virou Unidade Jackson Lago. O educador Paulo Freire (foto) foi homenageado nos municípios de Loreto e Timbiras. Em Imperatriz, foi a vez do músico Vinícius de Moraes.
Minas Gerais
Desde o aniversário de 50 anos do golpe militar, o Elevado Castelo Branco, em Belo Horizonte, passou a se chamar Dona Helena Greco, primeira vereadora eleita na capital mineira, nas eleições de 1982. A militante foi uma das fundadoras, em 1977, do Movimento Feminino pela Anistia-MG e, no ano seguinte, responsável pela criação do Comitê Brasileiro de Anistia-MG. Outra modificação na capital mineira foi no Bairro das Indústrias, onde a Rua Dan Mitrione, agente da CIA, virou José Carlos da Matta Machado, dirigente de organização de esquerda preso, torturado e assassinado.
Pernambuco
A Comissão da Verdade de Pernambuco levantou alguns endereços no estado em que vai sugerir mudanças de nomes. A lista constará do relatório final da comissão, a ser finalizado até o meio do ano que vem. Por enquanto, foram identificadas dez escolas, três avenidas, três ruas, um viaduto e uma ponte em oito cidades. No Recife, devem trocar de nome a avenida e o viaduto presidente Médici e a ponte Castelo Branco. Na câmara municipal, a vereadora Marília Arraes (PSB) apresentou, no início do ano, uma proposta sobre o tema. Ela é neta do ex-governador de Pernambuco Miguel Arraes, preso pelo regime militar.
Rio de Janeiro
Em dezembro de 2013 a Escola Estadual Presidente Costa e Silva, em Nova Iguaçu, passou a se chamar Abdias Nascimento (foto), militante do movimento negro. Foi o primeiro colégio público que homenageava figuras vinculadas à violação aos direitos humanos rebatizados. A Comissão da Verdade do Rio trabalha agora para uma mudança na escola Presidente Castelo Branco, em Mesquita. Em Volta Redonda, a ponte Presidente Médici virou Dom Waldy Calheiros, figura local de destaque na luta pela redemocratização. Já a alteração do nome da ponte Rio-Niterói depende da aprovação de um projeto de lei, atualmente na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, ou do julgamento definitivo de uma ação civil pública movida pelo Ministério Público do estado.
Rio Grande do Sul
Em Porto Alegre, a câmara municipal promulgou, em outubro de 2014, uma lei que mudou o nome da Avenida Castelo Branco para Avenida da Legalidade e da Democracia, uma das principais vias da cidade. O projeto de lei foi aprovado em agosto. Uma proposta com mesmo teor foi apresentada em 2011 e rejeitada pelo Legislativo naquele ano. Está em discussão agora um projeto de lei apresentado no fim do ano passado, que obriga a troca de nomes de todos espaços públicos com referência a pessoas citadas no relatório final da Comissão Nacional da Verdade.
São Paulo
Em 13 de agosto o prefeito da cidade de São Paulo, Fernando Haddad (PT) encaminhou uma proposta para a câmara municipal, com o objetivo de alterar o nome do viaduto 31 de maço, localizado no centro da cidade. A ideia é homenagear Therezinha Zerbini (foto), que lutou pela aprovação da anistia, ao fim da ditadura. Outras mudanças também devem ser feitas. No projeto chamado Ruas de Memória, a Secretaria de Direitos Humanos identificou 22 vias que poderão sofrer alteração, além de 15 escolas e cinco ginásios esportivos. As alterações nos endereços residenciais serão feitas após consulta com moradores. Na lista, ainda em elaboração, estão o elevado Costa e Silva, que deve adotar o nome popular de Minhocão.
976
Quantidade de escolas públicas batizadas por presidentes do regime de exceção
Nota DefesaNet
O processo de alteração de nomes aparentemente inócuo e irrelevante é parte de uma sofisticada e bem elaborada estratégia de “Novilingua”. Termo do romance de 1984 de George Orwell, onde os termos e palavras mudam de significado ou são suprimidos.
Reescreve-se a história, a verdade de ontem, mentira de hoje e a supressão de amanhã.
Como estas ações passam nas Câmaras Municipais? É simples, basta meia dúzia de pessoas gritando na sessão da Câmara, que quem votar contra apoia a Ditadura, e facilmente coloca-se mais um tijolinho na implantação da “nossa” Ditadura.
O Editor