Rodrigo Turrer
"Para descobrir o que os terroristas vão fazer é preciso ler a mente deles. Só assim será possível evitar o que aconteceu em Nice."A frase de Robert James Woolsey, ex-diretor da CIA, o serviço secreto americano, é símbolo do estágio atual em que se encontram os serviços de inteligência no mundo todo: perdidos.
Atentados como o de Nice, na quinta-feira passada, o da boate Pulse, em Orlando, no mês passado, o de Bruxelas, no começo do ano, e os de Paris, em novembro de 2015, apontam para dois fatos inequívocos. Primeiro, há um aumento no número de atentados terroristas promovidos mundo afora, com táticas cada vez mais cruéis e diversificadas. Segundo, nenhuma autoridade mundial sabe como lidar com a escalada global de atentados.
Nenhuma organização terrorista reivindicou a autoria dos atentados de Nice. Até o fechamento desta edição, na sexta-feira à noite, os serviços de inteligência francesa tampouco haviam encontrado indícios fortes de que Mohamed Lahouaiej Bouhlel, o autor do atentado que deixou 84 mortos e 202 feridos, tivesse ligações com o Estado Islâmico ou tivesse jurado fidelidade ao grupo. Ao contrário. As investigações, até à tarde da sexta-feira, mostravam que a figura de Lahouaiej Bouhlel não se encaixa no perfil de um terrorista talhado nos moldes do jihadismo extremista.
O tunisiano de 31 anos foi morto a tiros na ação tardia da polícia francesa. Ele não figurava na chamada Lista S, do Diretório-Geral de Segurança Interna, de pessoas radicalizadas que podem vir a cometer atentados. O histórico de Bouhlel assemelha-se mais ao de um criminoso comum". Ele era conhecido da polícia por casos de violência e por usar armas, mas não tinha ligação com terrorismo", disse um investigador.
Mesmo assim, há sólidos indícios de que Bouhlel seguiu os manuais de terrorismo espalhados pelo Estado Islâmico na internet. Há dois anos o porta-voz do grupo, Abou Mohamed Adnani, recomendou que seus seguidores mundo afora usassem "todos os meios disponíveis para matar infiéis". Em junho de 2014, exortou aqueles que quisessem atacar os infiéis a usar "seus veículos para atacá-los". No ano passado, em uma cartilha com um ranking de métodos para matar infiéis, o Estado Islâmico recomendava, pela ordem: "Atire neles -esfaqueie-os – exploda-os – envenene-os -atropele-os — jogue pedras neles – grite com eles".
Em 2010, na revista jihadista Impulse, disponível de graça na internet, a al Qaeda na Península Arábica, uma franquia da al Qaeda, o grupo fundado por Osama bin Laden, ensinava passo a passo a atropelar com sucesso os "inimigos de Alá". Depois do atentado, houve uma celebração nas redes sociais ligadas ao Estado Islâmico só comparável às comemorações do ataque de novembro de 2015 em Paris.
Nos últimos dois anos, o Estado Islâmico parece cada vez mais propenso a incentivar e patrocinar ataques terroristas no exterior. Há alguns meses os líderes do Estado Islâmico conclamam seus seguidores a não viajarem para ajudar nos combates na Síria ou no Iraque e, em vez disso, promoverem ataques dentro de seus países – principalmente na França. Faz sentido diante da perda de território e das seguidas derrotas que o EI tem sofrido nos últimos dois anos. Conforme perde território no campo de batalha, o Estado Islâmico se fia cada vez mais na estratégia do terrorismo global, planejando ou inspirando ataques em diferentes lugares do mundo. Segundo um relatório da consultoria IHS, que acompanha a jihad global, só em 2016 o EI perdeu 12% de seu território.
A perda territorial tem um impacto crucial na capacidade de financiamento do grupo: a renda mensal do Estado Islâmico caiu de US$ 80 milhões para US$ 56 milhões entre julho do ano passado e março deste ano, segundo a IHS. "Conforme o califado do Estado Islâmico encolhe e se torna cada vez mais claro que seu projeto de governança está fracassando, o grupo está dando nova prioridade à estratégia de insurgência. Como resultado, nós infelizmente esperamos um aumento nos ataques com vítimas em massa e a sabotagem de infraestrutura econômica no Iraque, na Síria e, até mesmo, na Europa", afirmou Columb Strack, analista sênior da IHS, na ocasião da publicação do relatório.
O encolhimento territorial parece ser inversamente proporcional à capacidade do grupo de causar estrago com relativa pouca infraestrutura em diferentes países. Isso porque o Estado Islâmico é o principal patrocinador desse novo tipo de terrorismo, que usa extremistas isolados ou em grupos pequenos para cometer atrocidades contra pequenos alvos com grande concentração de pessoas. Chamados de "lobos solitários", privilegiam ataques contra alvos civis como cafés e supermercados, comandados por grupos de no máximo cinco terroristas. São ações mais fáceis de concretizar, que aterrorizam a população, geram publicidade e são difíceis de detectar.
Além de extremamente eficaz em gerar propaganda e aterrorizar a população, o EI elevou os atos de terrorismo a uma forma de "adoração" que dispensa apoio logístico na preparação dos ataques. Ao contrário da al Qaeda e de outros grupos jihadistas, que tinham uma rígida hierarquia, o EL liberou seus seguidores mundo afora para cometer atentados. Basta jurar lealdade ao grupo antes do ataque – seja on-line, seja por telefone, seja por escrito, qualquer um pode jurar lealdade. Foi o que fez Ornar Mateen, autor do atentado em Orlando. Foi o que fez um casal terrorista que matou 14 pessoas em um centro comunitário em San Bernardino, na Califórnia, em 2015.
Por isso é estranho que, até a noite da sexta-feira, nenhum grupo tivesse assumido a autoria do atentado. Além disso, ao contrário da maioria dos jihadistas, Bouhlel não parecia compartilhar das mesmas práticas religiosas e de costumes dos radicalizados mundo afora. Gostava de bebidas alcoólicas, fumava haxixe e usava bermudas. Misantropo, fazia entregas com um pequeno caminhão, que estacionava perto de casa. "Ele me olhava estranhamente. Ele nos encarava e nos evitava", contou um vizinho.
No dia do crime, revelou a revista Express, Bouhlel, que possuía identidade francesa, discutiu com outro vizinho num bar. "Um dia, você vai ouvir falar de mim" disse Bouhlel, segundo o vizinho Wissam, que afirmou ainda ser do mesmo vilarejo do criminoso na Tunísia: Msaken. Um canal de TV francês, o iTélé, divulgou que Bouhlel foi preso em março deste ano, depois de uma batida de carro seguida por briga. Bouhlel sofreu depressão depois do divórcio, contou sua ex-mulher, com quem tem três filhos.
Ignorando todas as dúvidas e nuances, o presidente francês, François Hollande, afirmou que "de um jeito ou de outro" o assassino de Nice está ligado ao radicalismo islâmico. "Novamente o mundo tem os olhos na França, com solidariedade e afeto. O mundo está pensando na gente. E somos um país que supera tudo isso e que deu um grande exemplo ao mundo ao mostrar coesão e unidade neste momento", afirmou Hollande. E um discurso previsível e também uma saída cômoda para o presidente francês, que tenta granjear um estado de união nacional diante de uma tragédia, a fim de tirar do foco a incompetência dos serviços de segurança franceses em lidar com ataques desse tipo.
O atentado em Nice escancara para o mundo que a França é o epicentro do terrorismo na Europa, secundada pela Bélgica. O 14 de julho é a comemoração cívica mais importante da França, e Nice é a porta de entrada da Riviera Francesa. Bouhlel dirigiu um caminhão de quase 20 toneladas por 1,8 quilômetro sem nenhum tipo de barreira que impedisse o trânsito de veículos. Correu a 50 quilômetros por hora por quase 1 quilômetro depois de atropelar dez pessoas, sem reação da polícia francesa.
A França esperava por um atentado durante a Eurocopa, o torneio europeu de seleções que ocorreu no país entre 10 de junho e 10 de julho. Diante dessa ameaça, arregimentou-se um monumental aparato de segurança para impedir o terrorismo – o que até deixou espaço para a ação de hooligans durante o torneio. Mas o sucesso durante a Euro parece ter subido à cabeça de Hollande. Horas antes do atentado em Nice, ele afirmou que não prolongaria o estado de emergência colocado em prática após os ataques de militantes islâmicos em 15 de novembro de 2015, em Paris. "Não podemos estender o estado de emergência indefinidamente, não faria sentido", disse Hollande. Menos de três horas depois do atentado, Hollande se viu obrigado a voltar atrás e estender o estado de emergência por três meses.
Para os críticos de Hollande, faria todo o sentido manter o alerta máximo, devido ao sucateamento das forças de segurança e à falta de agentes e de integração entre as polícias. A França dispõe de menos de 5 mil agentes para monitorar os suspeitos de radicalização. Seriam necessários 200 mil agentes para um monitoramento integral de todos os 10 mil suspeitos que compõem unia lista de "radicalizados" da inteligência francesa. Mohamed Lahouaiej Bouhlel não estava nessa lista. O chefe da Direção-Geral da Segurança Interna (DGSI), o serviço de inteligência da França, Patrick Calvar, havia alertado em maio deste ano sobre os riscos de atentados "de massa" com o uso de veículos no país.
No mesmo depoimento, dado a uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigou os atentados de 2015 na França, Calvar afirmou que os terroristas mudariam seu modo de operação e reforçariam a escalada de violência. "Estou convencido de que eles passarão ao estágio de carros-bomba e de explosivos. Sabemos que vão recorrer a esse modo de operação: eles viram os resultados de operações de massa", afirmou aos parlamentares, acrescentando que a nova estratégia seria aumentar o grau de destruição.
Depois de seis meses de trabalhos, o relatório da CPI sobre os atentados de Paris gerou um documento de 300 páginas, com 40 recomendações sobre variados temas ligados à luta antiterrorista. A principal recomendação era a criação de uma agência nacional antiterrorista, ligada diretamente ao primeiro-ministro. A CPI também recomendou mais coordenação dos serviços antiterroristas e uma fusão entre órgãos de prevenção e luta.
Um deles, a Unidade de Coordenação da Luta Antiterrorista, é o braço civil do combate ao terrorismo e não tem autoridade sobre outros serviços comandados pelos militares. "A sensação é de trabalho desperdiçado", afirmou o ex-primeiro-ministro Alain Juppé, alinhado com a direita francesa. "Se todos os meios tivessem sido tomados, esse drama não teria acontecido."
Há tempos a França se tomou um alvo preferencial de terroristas. Há muitos motivos para isso. Os ataques ocorrem não apenas porque o país é um símbolo da civilização ocidental e tem muitas áreas repletas de turistas. Eles ocorrem também porque a França é um dos países que mais receberam ex-jihadistas que lutaram na Síria e no Iraque, por causa da grande população muçulmana pobre e sem condições de entrar no mercado de trabalho e ainda por causa de suas regras rígidas contra manifestações religiosas.
Tais regras deveriam ser uma referência democrática e republicana, a indicar que quem vive no país aceita se guiar por leis, e não por dogmas. Essas imposições, porém, dificultam que muçulmanos e filhos de imigrantes muçulmanos se integrem à sociedade francesa nos moldes em que gostariam. Agora, o país se tomou o epicentro do terrorismo na Europa. Enfrentar a situação exigirá políticas adequadas, inteligência, dinheiro, tempo, empenho, reformas, treinamento e, com urgência desesperada, novas ideias. Nada disso será resolvido com uma simples extensão do estado de emergência no país.
Com Teresa Perosa e Thais Lazzeri