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O resort usado por espiões da Mossad para resgatar judeus ‘perdidos’ no Sudão

Arous parecia ser apenas um glamouroso complexo turístico no deserto sudanês, às margens do Mar Vermelho, mas também era uma base para agentes israelenses com uma missão secreta. O caso inspirou um filme recentemente lançado pela Netflix, Missão no Mar Vermelho – e a história real é ainda mais impressionante em vários aspectos. "Arous no Mar Vermelho, um maravilhoso mundo à parte", dizia o panfleto brilhante, que descrevia o local como "o centro de mergulho e diversão no deserto do Sudão". A propaganda destacava ainda as "águas entre as melhores e mais claras do mundo".

Quando a noite cai – "depois que as cores da paisagem empalidecem" –, diz o texto, surge "uma visão de tirar o fôlego do céu, iluminado por milhões de estrelas".

Atraídos por essa visão do paraíso, turistas da Europa e de outros locais chegavam aos milhares Arous Village, com seus recifes de coral espetaculares e naufrágios. O livro de depoimentos de visitantes reunia uma série de elogios rasgados.

A Empresa Turística Internacional do Sudão também ficou satisfeita com a decisão de entregar a exploração do local a um grupo de empreendedores europeus, que prometiam trazer alguns dos primeiros turistas estrangeiros ao país.

O que turistas e autoridades não sabiam é que o resort de mergulho era uma fachada criada e mantida por mais de quatro anos no início dos anos 1980 por agentes da Mossad, a agência de inteligência de Israel.

Eles o usaram como disfarce para uma missão humanitária: "contrabandear" milhares de judeus etíopes que estavam em campos de refugiados no Sudão para Israel.

O país africano era uma nação inimiga ligada ao mundo árabe, e tudo tinha de ser feito sem que ninguém descobrisse, tanto no Sudão quanto em Israel. A operação era tão secreta que apenas aqueles diretamente envolvidos conheciam a verdade. Nem as famílias dos agentes foram informadas.

A misteriosa origem dos judeus etíopes

Os judeus etíopes pertenciam a uma comunidade chamada Beta Israel (Casa de Israel), cujas origens são um mistério. Por muitos séculos, acreditou-se na teoria de que eram descendentes dos israelitas que haviam acompanhado um filho da rainha de Sabá e do rei Salomão de volta à Etiópia por volta de 950 a.C., contrabandeando a Arca da Aliança, descrita na Bíblia como o objeto que guardava as tábuas dos Dez Mandamentos.

Também é possível que tenham fugido para lá após a guerra civil em Israel antigo, ou que tenham se exilado após a destruição do Templo Judaico em Jerusalém em 586 a.C..

No início dos anos 1970, os principais rabinos de Israel endossaram oficialmente a visão de que Beta Israel pertencia a uma das chamadas dez tribos perdidas, que desapareceram da história após uma invasão do Reino de Israel no século 8 a.C..

Os judeus etíopes aderiam à Torá, praticavam uma versão bíblica do judaísmo e oravam em edifícios semelhantes a sinagogas. Mas, isolados de outros grupos judaicos por milênios, acreditavam ser os últimos remanescentes do povo judaico no mundo.

Em 1977, um dos seus integrantes, Ferede Aklum, fugiu para o Sudão. Procurado pelas autoridades etíopes por "atividade antigovernamental" sob suspeitas de colaborar com rebeldes e de traição por incentivar judeus a emigrar para Israel, ele teria se unido a um grupo de refugiados etíopes não judeus que fugiam da guerra civil e do agravamento de uma crise alimenta

Ele enviou cartas para agências de ajuda humanitária, pedindo apoio para chegar a Israel, e uma delas chegou à Mossad. Para o então primeiro-ministro israelense, Menachem Begin (1913-1992), ele próprio um refugiado da Europa ocupada por nazistas, Israel era um porto seguro para judeus em perigo. Beta Israel não era exceção, e ele determinou que a agência de inteligência agisse.

A Mossad instruiu um de seus agentes, Dani, a localizar Ferede e encontrar formas de transportar quaisquer judeus etíopes no Sudão para Israel.

Depois de uma busca difícil – "foi como encontrar uma agulha no palheiro", segundo Dani –, o agente localizou Ferede em Cartum, capital do Sudão, e os dois homens se reuniram. Ferede enviou mensagens para sua comunidade na Etiópia, dizendo que o caminho para Jerusalém passava pelo Sudão.

Surgiu assim a tentadora oportunidade de concretizar um sonho de 2,7 mil anos. Até o fim de 1985, cerca de 14 mil beta-israelenses realizaram a arriscada viagem de 800 km a pé.

Cerca de 1,5 mil morreram na jornada, nos precários acampamentos ao redor das cidades sudanesas de Gedaref e Kassala ou acabaram sequestrados.

Como não havia judeus no Sudão, um país de maioria muçulmana, eles escondiam sua religião para se integrar à população e não serem perseguidos pela polícia secreta sudanesa. Apesar do risco, continuaram a respeitar tradições judaicas.

Missão de resgate

Quase imediatamente, as saídas clandestinas em pequena escala foram iniciadas, lideradas por Dani e Ferede. Judeus etíopes embarcavam pelo aeroporto de Cartum para a Europa com documentos falsos e seguiam para Israel. Mas, à medida que os números cresciam, foi preciso encontrar outro caminho.

"Eu pensei no mar", lembra Dani, sobre a operação. "O Sudão não era como a Etiópia [onde a guerra civil e o terreno montanhoso significavam que os judeus não podiam ser transportados por terra até a costa]. Se pudéssemos transportar pessoas do Sudão através do Mar Vermelho e ter acesso a um barco chegando, poderíamos fazer as coisas em maior escala."

Foi em uma viagem pela costa do Sudão procurando por possíveis praias de desembarque no fim de 1980 que Dani e outro agente se depararam com um balneário abandonado em Arous, cerca de 70 km ao norte da cidade de Porto Sudão. "Vimos algo que nos pareceu uma miragem. Eram edifícios com telhados vermelhos, [mas] estávamos no Sudão, não em outro lugar", diz ele.

Um zelador os informou que o local havia sido administrado por uma empresa italiana e fechara havia alguns anos. Ele os deixou entrar e o mostrou aos visitantes. "Entendemos imediatamente o que aquilo significava", diz Dani. "Com um local como aquele [como fachada], o céu seria o limite!"

 

O que acontece depois está em Missão no Mar Vermelho. Filmado na Namíbia – onde o resort foi recriado – e na África do Sul, o filme é estrelado por Chris Evans, que interpreta um personagem baseado em Dani. Os outros personagens principais foram criados a partir da equipe de Dani.

O filme deixa claro que é "inspirado" (e não baseado em) fatos reais. Algumas cenas representam vagamente o que aconteceu, mas algumas partes são Hollywood puro (por exemplo, nenhum judeu jamais foi transportado por meio do próprio resort, e os americanos não sabiam da operação e muito menos levavam os refugiados para fora do país – algo que coube à Força Aérea de Israel).

Concluído em 1974, o resort era um aglomerado de 15 bangalôs, uma cozinha e uma grande sala de jantar. Não havia infraestrutura no local nem uma estrada de acesso, mas os italianos trouxeram um gerador e conseguiram água potável em Porto Sudão.

Eles administraram o local com sucesso por cinco anos, mas, após problemas com autoridades sudanesas, deixaram o resort, que foi fechado um ano depois. "É um lugar muito difícil de se administrar, se você não tiver o Mossad por trás", diz um agente envolvido na operação que não quis ser identificado.

Posando como diretor de uma empresa de turismo com sede na Suíça (que na verdade não existia), Dani convenceu autoridades sudanesas de que poderia reativar o resort e trazer turistas novamente. Foi negociado um aluguel de US$ 250 mil em valores da época.

"Era perigoso", diz um agente, que teve sua identidade preservada. "Todos nós sabíamos que, se algum de nós fosse descoberto, acabaríamos enforcados em Cartum."

Isso quase aconteceu em março de 1982, quando, na terceira operação, o grupo foi flagrado na praia por soldados sudaneses. Possivelmente suspeitando de contrabandistas, um soldado abriu fogo, mas os botes, com os etíopes a bordo, conseguiram escapar.

Depois disso, percebeu-se que as evacuações navais geravam muita exposição, e um novo plano foi elaborado. Os agentes foram encarregados de encontrar um local de pouso adequado no deserto para que os refugiados fossem secretamente transportados em aviões.

Neste interim, a boa fama de Arous Village se espalhou. "Arous era realmente lindo", um ex-visitante americano me disse. "Eles tinham pequenas cabanas que eram uma delícia, e você saía em barcos e mergulhava. O cenário subaquático era de tirar o fôlego."

Ele se lembra de que os funcionários "europeus" pareciam jovens, saudáveis e em boa forma. "Na hora do jantar, as pessoas diziam: 'Por que diabos [construir um resort] aqui?' Claro, a resposta era que era um local lindo e intocado."

O resort contava, entre sua clientela variada, com um batalhão do Exército egípcio, integrantes da Força Aérea britânica, diplomatas estrangeiros de Cartum e autoridades sudanesas, todos alheios à verdadeira identidade de seus anfitriões.

Arous Village já faturava o suficiente para se sustentar financeiramente, para alívio dos contadores da Mossad. Algumas das receitas foram usadas para comprar ou alugar os caminhões que levaram refugiados.

Operação Moisés

Enquanto isso, tiveram início as operações de transporte aéreo. A Força Aérea israelense identificou um aeródromo abandonado da Segunda Guerra Mundial, não muito distante do litoral, e, em maio de 1982, o primeiro avião, transportando soldados israelenses, pousou ali na calada da noite.

"Muitos dos judeus etíopes nunca tinham visto um caminhão antes, então, para eles, os soldados acenando com luzes verdes pareciam alienígenas, e eles tinham medo de entrar no avião", lembra Dani.

Depois de dois transportes aéreos, a Mossad descobriu que as autoridades sudanesas planejavam uma emboscada. A equipe foi então instruída a encontrar locais de aterrissagem mais discretos.

Eles identificaram pontos muito mais perto de Gedaref, o que reduziria o tempo que os refugiados passavam na estrada. A desvantagem foi que "não havia pistas de pouso, era apenas um pedaço de deserto", disse um agente não identificado.

"Os locais de pouso eram parcamente iluminados. Os pilotos tinham que nos encontrar sem auxílio de navegação e depois de um vôo longo e tedioso, no escuro."

Apesar das complexidades e consequências potencialmente catastróficas de um fracasso, 17 vôos clandestinos foram realizados, coordenados pelos agentes do resort.

No fim de 1984, a crise de fome foi declarada no Sudão, e os israelenses redobraram o seus esforços. Graças à intervenção dos Estados Unidos e a um grande pagamento, o presidente do Sudão na época, o general Jaafar Nimeiri (1930-2009), permitiu que refugiados judeus voassem diretamente de Cartum para a Europa, sob condição de total sigilo, para evitar repercussões no mundo árabe.

Em uma série de 28 transportes aéreos, em uma aeronave emprestada pelo dono de uma companhia aérea judaica belga, 6.380 judeus etíopes foram levados para Bruxelas e, depois, para Israel. O transporte aéreo recebeu o codinome de Operação Moisés.

A história vem à tona

A operação sigilosa acabou vazando para a imprensa de Israel e, a partir daí, jornais ao redor do mundo publicaram a história em 5 de janeiro de 1985. O Sudão imediatamente parou os vôos e negou publicamente qualquer envolvimento, rejeitando alegações de que teria conspirado com Israel em um "plano sionista-etíope".

Dois meses depois, após um pedido direto do então vice-presidente americano, George H.W. Bush (1924-2018), um último transporte aéreo secreto foi autorizado por Nimeiri para retirar os 492 judeus etíopes que tinham ficado para trás após a interrupção da Operação Moisés. Embora Nimeiri insistisse que um avião os levasse para a Europa, eles voaram diretamente para Israel.

A Mossad continuou administrando o resort, mantendo-o disponível como uma fachada. Apesar de uma pausa nas operações, os agentes ainda tinham que atender ao fluxo de visitantes.

Mas a atmosfera no país estava mudando. Protestos contra Nimeiri, que começaram em março, se intensificaram e, em 6 de abril de 1985, o presidente foi deposto pelo Exército. Foi uma reviravolta que pôs em perigo os agentes israelenses.

A nova junta militar queria expulsar espiões reais e imaginários para melhorar suas credenciais no mundo árabe. O chefe da Mossad deu então a ordem para esvaziar o resort.

Apostando que seria mais seguro esperar até o fim da temporada de Páscoa, a equipe continuou no local, até que um dia disseram aos funcionários que passariam alguns dias em busca de novos locais de mergulho.

"Seis de nós saímos em dois veículos antes do amanhecer", diz um agentes, que também pediu anonimato. "Um avião pousou ao norte, em um local que nunca havíamos usado antes. Conseguimos decolar e chegar em casa", diz ele.

"Havia turistas no resort. Ao acordar, eles se viram sozinhos no deserto. A equipe local ainda estava lá, mas ninguém mais – o instrutor de mergulho, a gerente e assim por diante, todos os caucasianos haviam desaparecido."

O resort foi fechado, mas nos seis anos seguintes quase 18 mil beta-israelenses partiram para uma nova vida no Estado judeu depois de novas operações.

Ferede Aklum teve seu disfarce comprometido em 1980 e foi levado para Israel. Quando morreu em 2009, chefes e ex-chefes da Mossad, com milhares de israelenses etíopes, compareceram ao funeral. Ele foi – e continua a ser – para eles um herói nacional. "Era como um irmão para mim", diz Dani.

"Sem ele e a coragem dos judeus etíopes, nada disso teria acontecido. Foi um encontro do sonho dos judeus etíopes de voltar a Jerusalém com a disposição dos judeus israelenses de ajudá-los, essa fusão foi a força motriz desta operação. É por isso que ninguém nunca desistiu."

 

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