Reflexões Teóricas Sobre Conflitos Assimétricos:
Parte VI – O Papel dos demais Ramos Operativos
e Conclusões Finais
Prof. Rogério Atem de Carvalho, D.Sc
Instituto Federal Fluminense
Prof. Eduardo Atem de Carvalho, Ph.D
Universidade Estadual do Norte Fluminense
Introdução
Esta série de artigos se ateve a discutir brevemente as características dos conflitos assimétricos contemporâneos e apresentar as modificações ocorridas no nível tático nas Armas de Infantaria, Engenharia, Artilharia e Cavalaria e sua profunda influência no planejamento dos conflitos por parte dos Estados Maiores dos Exércitos. Neste último artigo da série será visto o papel dos demais ramos operativos de um exército no cenário aqui abordado, onde ficará clara a influência de tecnologias e métodos desenvolvidos no meio civil, na modernização das Comunicações, Intendência e Material Bélico. Ao final do artigo conclusões serão apresentadas desta forma dando fechamento à série.
O Papel dos Demais Ramos
A Arma de Comunicações, o Serviço de Intendência e o Quadro de Material Bélico, usando as denominações do Exército Brasileiro, não ficariam de fora das transformações provocadas pela compressão do tempo nos conflitos assimétricos, bem como pelas outras características destas, como a não existência de uma frente de batalha clara e a predominância de combates de baixa intensidade. As Armas se transformaram, incorporando novos elementos tecnológicos e doutrinários e os demais elementos dos exércitos precisam também se adaptar.
Arma de Comunicações
Talvez a mais óbvia em termos de transformações seja Comunicações. Porém, além da incorporação e do suporte às novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) no dia a dia, outras atividades são intensificadas ou incorporadas:
– Capacitação: com a incorporação das TIC às operações ordinárias das Armas, é necessário um programa de treinamento muito mais intenso, não apenas na operação propriamente dita, mas no apoio ao incremento da capacidade combativa. Já é sabido no meio civil que mesmo possuindo a mesma tecnologia que um competidor (adversário, inimigo), é possível a uma organização gerar diferencial competitivo pelo seu correto emprego e exploração. Isso não é diferente no meio militar. Em outras palavras, não basta possuir uma tecnologia, o que vai trazer resultados positivos no campo de batalha é o bom uso, por pessoal capacitado.
– Manutenção da infraestrutura básica (backbone) de TIC, este deve ser capaz de operar em modo 24x7x365, já que o conflito não se dá apenas no terreno e nem avisa quando vai começar ou parar – de fato, início e fim nem são muito claros. As comunicações devem estar preparadas para prover infraestrutura robusta, integrada e segura a qualquer momento para as Armas. A questão da segurança é vital, posto que a infraestrutura no terreno se conecta à da retaguarda e esta às estruturas nacionais, ou seja, uma falha de segurança no terreno pode levar a uma invasão na rede nacional e vice-versa. Cabe lembrar, como bem ressalta Dinis [1], que a guerra de informação não pára em momento algum, portanto a infraestrutura deve ser defendida continuamente.
– Operações ofensivas, realizando ataques digitais, através de invasão e incapacitação das redes inimigas ou mesmo “analógicos”, através da clássica interferência de sinais. Some-se os sofisticados Ataques Semânticos, onde os sistemas de informação inimigos são sutilmente invadidos visando a criação de cenários falsos e a consequente tomada de decisão errônea. Ainda mais, existem os ataques às infraestruturas críticas baseadas em supervisórios [2] (SCADA), possíveis inclusive durante períodos de não-guerra e empregados como fator de desestabilização econômica e psicológica do adversário.
– Inteligência: com o crescente uso de tecnologia pelas forças tanto amigas quanto adversárias, à Inteligência de Sinais se soma a Inteligência de Dados [3]. Enquanto que o trabalho de análise deve ser compartilhado por pessoal de diferentes especialidades, a infraestrutura deve ser fornecida pelas Comunicações, até porque este serviço proverá a infraestrutura de TIC necessária. A Inteligência obtida sobre a análise de dados extraídos de sensores e fontes públicas é vital em um ambiente onde os combates são mais Atena (sabedoria) e menos Marte (força) [4]. Adicionalmente, a descoberta de posições inimigas, através da inteligência de sinais, seja por meios digitais, seja por triangulação física, fornece coordenadas precisas para ataques da Artilharia de Precisão ou de Forças Especiais ou mesmo Policiais, dependendo do escopo do conflito.
Um soldado do 319th Airborne Field Artillery Regiment do U. S. Army dá manutenção em um componente de uma ARP. O Material Bélico será demandado cada vez mais pela Manutenção Eletrônica, enquanto que mantém todas suas funções anteriores Fonte: SFC John Laughter
Serviço de Intendência
Em um cenário que se descortina onde a Infantaria, a Cavalaria e a Engenharia tendem a se mesclar ainda mais em forças tarefas ou mesmo unidades mistas similares aos RCBs do Exército Brasileiro, atuando em linhas pouco definidas e extremamente dinâmicas, faz com que a Intendência se aproxime dos serviços do tipo “courrier”, entregando quantidades menores, de material mais diversificado e em mais pontos.
Em um ambiente onde a Infantaria opera com maior poder de fogo e a Engenharia de maneira orgânica das Forças Tarefa, associada a quantidade de componentes eletrônicos embarcados e vestidos pelo combatente, o número de itens a repor cresce vertiginosamente. Com a frente indefinida, as FT terão que enfrentar um número maior de grupos menores do adversário, criando dois efeitos: os “pontos de entrega” se multiplicam e a atividade de intendência se torna ainda mais arriscada, estando os comboios logísticos vulneráveis a IED, atiradores e emboscadas.
Uma solução que pode diminuir os riscos e aumentar velocidades é o Vertical Replenishment (Vertrep) por helicópteros, tipicamente operando em modo de voo Alto-Baixo-Alto (Hi-Low-Hi), de maneira a se manter longe de MANPADS e armamento individual inimigos o maior tempo possível. Problemas do Vertrep são os custos associados e a inevitável exposição ao fogo inimigo durante a entrega do material (fase baixa do perfil de voo).
Cabe aqui uma observação histórica: a disciplina de Logística nasceu durante a II Guerra Mundial como consequência dos esforços norte-americanos para enviar munição, peças de reposição e combustível para o “front” do Pacífico. Era baseada na lógica de determinação de um número mínimo de rotas e Lotes Econômicos de Aquisição e Transporte. Este conhecimento foi transposto para o meio acadêmico, que acompanhou as transformações econômico-sociais ao longo das décadas, em especial o advento do comércio eletrônico, que por sua vez determinou um grande fracionamento dos lotes e das rotas, criando os serviços dos modernos courriers.
É sobre este conhecimento que os autores sugerem que a Intendência Militar deva se debruçar para desenvolver novos métodos de distribuição de material para unidades atuando em conflitos assimétricos, compreendendo que o desafio será duplo: não apenas o maior fracionamento e multiplicação de itens, mas também a exposição ao fogo inimigo será muito maior, como já se tem visto nos conflitos recentes do Afeganistão e Iraque.
Quadro de Material Bélico
O Material Bélico, que tradicionalmente se envolveu prioritariamente com Manutenção Mecânica e Elétrica, agora tem um volume crescente de atividades de Manutenção Eletrônica. Neste cenário, uma série de lições do meio civil podem ser incorporadas:
– Tipicamente a eletrônica digital possui fácil diagnóstico, muitas vezes na forma de auto-diagnóstico, o que facilita a rápida manutenção. Provida uma rede segura e robusta (pelas Comunicações), o equipamento pode se diagnosticar, emitir alerta de falha para o operador e para o MatBel na retaguarda. Um Sistema Integrado de Gestão (Enterprise Resourse Planning – ERP) pode ainda acionar a Intendência para trazer o componente que deve ser trocado – nota-se aí a observação feita anteriormente em relação à diversidade de itens e o fracionamento de lotes e rotas a serem enfrentados pela Intendência.
– Geralmente a manutenção é feita por substituição do componente, o que aumenta a disponibilidade do equipamento, mas aumenta os custos com componentes e estoques. Ou seja, diminui-se os custos de operação (pela necessidade de um menor número de elementos principais, como CCs, veículos e armamentos em geral) e aumenta-se os custos de material, porém, considerando-se o princípio da necessidade de manutenção da velocidade alta para lidar com a compressão dos tempos, os custos finais são menores. Assim, considera-se que uma maior disponibilidade implica em menor número de equipamentos, algo já sabido há muito tempo na aviação civil e militar.
– Deve ser considerado o mecanismo de Contract Logistics Support (CLS) para os eletrônicos, ou seja, a terceirização dos serviços de manutenção. Tal tipo de contrato, largamente empregado para o segmento de aviônicos militares, inclusive pela FAB, embora possa trazer reduções consideráveis de custos e rápida incorporação de tecnologias, tem também suas desvantagens. A primeira relaciona-se à dependência da Força em relação ao conhecimento retido por empresas, que podem ter outras prioridades no longo prazo além de manter a capacidade de combate de um exército. Outro ponto é a presença de civis em áreas conflagradas, fonte de incidentes diversos, como sequestros, como ocorreu com certa frequência durante o conflito do Iraque.
Conclusões Finais
O tema Guerra Assimétrica é extremamente vasto, as campanhas diferem em vários pontos e a compressão do tempo causa uma velocidade de mudanças que atinge também a própria forma dos próprios conflitos, ou seja, eles mudam rapidamente também.
Alguns ensinamentos estratégicos podem ser retirados:
– Tal qual as sapatilhas mágicas de Tchaikovisky, que calçadas pela bailarina fazem com que esta não controlem mais sua dança, a tecnologia “não nos deixa alternativas a não ser dançar de acordo com o ritmo por ela estabelecido” [5].
– Como ressaltado em [4] e [5], estamos diante da necessidade de formação de um novo tipo de militar, que deverá possuir as características dos atuais, como rusticidade e agressividade controlada, e ainda ampliar aquelas associadas ao domínio da tecnologia e da do uso das informações.
– A Guerra acontece onde está o Homem: no Mar, na Terra e no Ar & Espaco. A inteligência humana criou um quarto locus, assim, num futuro não muito distante, existirá uma quarta Força Armada: a Força Cibernética. Nascerá da integração dos esforços na área das outras três, sua operação será naturalmente furtiva, operará tanto sozinha quanto conjuntamente, bem como balizará os esforços e capacitará as outras na área. Assim como foi quando o Homem se libertou da Gravidade e, como uma das consequências, criou a Força Aérea. Embora esta possa parecer uma proposta radical, o perfil muito diferente do combatente cibernético, bem como a necessidade de decisões muito rápidas e portanto, de uma consequente autonomia, indicam que este caminho pode ser tomado num futuro não muito distante.
Helicóptero CH-53D Sea Stallion dos U. S. Marines realizando lançamento de carga em um exercício. O lançamento a baixa altura, quando possível, é uma boa alternativa para reduzir a exposição da aeronave ao fogo inimigo, bem como a revelação da posição amiga em um frente difusa.
Fonte: Aviation Espectator
No campo doutrinário, pode-se concluir:
– Segundo o Chefe do Estado Maior das Forças Armadas de Israel, Benny Gantz, em declaração após a operação “Protective Edge”, “os elementos de manobra deram apoio aos elementos de fogo” [6]. Esta é a maior evidência da compressão do tempo e de sua supremacia sobre o domínio do terreno como objetivo primordial. A Artilharia e a Aviação passam a ser os elementos incumbidos de derrotar o inimigo, cabendo ao elementos de manobra (Cavalaria, Infantaria e agora Engenharia) trabalhar para sua fixação e exposição ao fogo.
– Na Força Tarefa existe agora uma comunicação e apoio constante até o nível viatura. O CBTP passa a manobrar junto com o GC, oferecendo apoio de fogo, uso de sensores de localização, transporte de suprimentos, retiradas de feridos, posto de comando etc. Os CC, tendo localização imediata de todos os componentes da FT (uma espécie de “Waze” militar) se torna o senhor da patrulha, incorporando viaturas especializadas como o Gepard Antiaéreo, capaz de engajar alvos no topo de prédios, sem causar destruição excessiva.
– Surge a necessidade de CBTPs com a mesma capacidade de proteção de um CC moderno, incluindo a capacidade de resistir a impactos de munição cinética no arco frontal. Todos os CBTPs que não foram projetados assim fracassaram no ambiente da guerra assimétrica. Dos CCs, somente o Challenger 2 se mostrou de fato “indestrutivel” ao fogo de armas anti-carro disponíveis neste ambiente de conflito.
– A Engenharia de Combate, além de todas as suas funções doutrinárias tradicionais, recebeu mais uma: abrir caminho com explosivos, para que a tropa avance de forma segura em áreas densamente povoadas, sem sofrer baixas desnecessárias.
– A Artilharia se torna a arma precisa durante a fase assimétrica do conflito, disparando relativamente poucas vezes, porém com extrema precisão. Cabe a ela também interditar o livre movimento da retaguarda do inimigo.
Com esta série, os autores esperam ter contribuído para a discussão sobre os conflitos contemporâneos, trazendo propostas teóricas embasadas nas mais recentes experiências de forças estrangeiras nesse tipo de conflito.
Referências Bibliográficas
[1] Dinis, J. A. H. Guerra de Informação – Perspectivas de Segurança e Competitividade, 2005.
[2] Ehrenreich, D. Attacking SCADA Systems of Critical Infrastructure, Israel Defense, No. 28, October-November 2015.
[3] Rapaport, A. Quite a few terrorists lost their lives owing to Big Data, Israel Defense, No. 23, November 2014.
[4] Arquilla, J e Ronfeldt, D. The Advent of NetWar, RAND Corporation, Santa Monica, 1996.
[5] Liang, Q. e Xiangsui, W. A Guerra Além dos Limites – Conjecturas Sobre a Guerra e a Tática na Era da Globalização, PLA Literature and Arts Literature Publishing House, Pequim, 1999.
[6] Rapaport, A., “Network-Based Fire is Changing the Battlefield”, Israel Defense, p 24, no. 28, sept-oct 2015.