Uma semana depois de o líder da oposição na Venezuela, Juan Guaidó, declarar que possuía apoio do Exército para tirar Nicolás Maduro do poder, o governo permanece nas mãos do herdeiro de Hugo Chávez e militares de alta patente não parecem ter, de fato, mudado de lado.
Manifestações e confrontos nas ruas entre opositores do governo e forças de segurança deixaram, desde o dia 30 de abril, mais de 250 feridos e cinco mortos. Para comprovar que mantém o apoio de lideranças do Exército, Maduro visitou, no domingo (5), uma base de treinamento das forças armadas com cerca de 5 mil soldados.
Enquanto isso, Guaidó diz que não vai desistir e garante que há uma parcela cada vez maior de militares entre os que se opõem ao governo. Mas, na visão do general da reserva Antonio Carlos Barboteu Pinto, que foi adido militar do Brasil na Venezuela por dois anos, os integrantes das Forças Armadas venezuelanas só vão aderir ao movimento de Guaidó se tiverem certeza de que a oposição tem força suficiente para derrubar o governo Maduro.
"Até que se tenha uma visão clara de qual rumo vai ser tomado, o pessoal vai se manter onde está. A definição vai ocorrer quando um dos dois grupos se fortalecer de fato. Por enquanto, está todo mundo inseguro com as opções que estão fazendo", disse. "Ele (Guaidó) pode ter o apoio de uma parcela das Forças Armadas, mas dificilmente terá de todos ou da maioria."
Em entrevista à BBC News Brasil, o general de brigada explicou que ainda no governo Hugo Chávez foi criado um amplo serviço de inteligência e monitoramento nos quartéis e escolas do Exército para vigiar os militares e identificar possíveis divisões. Desertores são punidos com processos militares, prisões ou expulsão das Forças Armadas.
Barboteu foi adido de Defesa na Venezuela entre 2010 e 2012 – nome dado ao oficial mais graduado entre os adidos militares que atuam nas embaixadas brasileiras no exterior.
Entre as prerrogativas do adido de Defesa na Venezuela, função que também foi exercida pelo vice-presidente Hamilton Mourão entre 2002 e 2004, está coordenar a interlocução entre as Forças Armadas brasileiras e as Forças Armadas venezuelanas, e repassar informações estratégicas ao governo brasileiro.
Segundo o general da reserva, é arriscado para um militar deixar Maduro por Guaidó sem ter certeza de que a oposição está fortalecida. "Quando eu estava lá na Venezuela, no governo Chávez, já existia uma ênfase muito grande na área de inteligência. Você tinha uma corregedoria muito atenta, inclusive com mecanismos de observação nas escolas, nos quartéis", afirma.
"Algumas pessoas são colocadas ali para poder monitorar mudanças de posicionamento. Se isso acontecia num governo estável, na situação atual, a ênfase é maior. Parcela dos militares pode ter um posicionamento (contrário a Maduro), mas têm receio das consequências que podem sofrer com um posicionamento mais aberto."
Desconfiança
Barboteu avalia que, além do temor de ser pego durante a articulação para desertar, há desconfiança por parte dos militares de alta patente sobre o próprio futuro num novo governo.
Nesta segunda, em entrevista à BBC News, Guaidó fez um apelo para que as Forças Armadas abandonem Maduro. "Não estamos buscando segmentar ou dividir as Forças Armadas, pelo contrário, (queremos) uni-las em torno da nossa Constituição, essa é a primeira coisa", disse o líder da oposição e presidente autoproclamado da Venezuela.
Mas, para o general brasileiro, é possível e "natural" que, se alcançar o poder, Guaidó afaste do governo ou até das Forças Armadas os generais que deram sustentação ao regime de Maduro, ainda que eles decidam "mudar de lado" agora.
"Você está falando de um grupo que tem a posse das armas e que pode, num momento, estar concordando com certas coisas, mas essa posição pode ser fugaz, pode pender para outro lado depois. Não sei se Guaidó está disposto a fazer concessões a esses militares, se ele alcançar o poder", disse.
Barboteu ressalta que na história venezuelana não há grandes exemplos de anistias e concessões a grupos dissidentes nas Forças Armadas.
"Essa não é uma prática comum lá. Se você der uma olhada, quando Chávez sofreu aquela tentativa de golpe (em 2002), ele pegou todos os militares contrários a ele e (os) sentenciou, muitos saíram fugidos da Venezuela", lembra.
"Acho que, se assumisse o poder, Guaidó seguiria o que acontece historicamente na Venezuela: afastaria esse pessoal. Não acredito que esses líderes militares seriam mantidos no governo e nem nas Forças Armadas. Essas manifestações abertas de apoio incondicional (ao atual governo) vão ter um reflexo caso Maduro caia."
Para o general, quem se estabelecer no governo, Maduro ou Guaidó, terá que fazer "algum tipo de limpeza" dos militares que apoiaram o adversário. "Estamos falando de Forças Armadas, então não pode ter alguém ali esperando a chance de se rebelar novamente."
|
Política de recompensa pela lealdade
Mas de onde vem o apoio significativo do Exército a Maduro?
Segundo o general Barboteu, a adesão das Forças Armadas ao regime de Maduro é decorrência de um misto de "identidade ideológica", temor e interesses.
Além de manter a lealdade dos militares à base de um rígido monitoramento para identificar grupos dissidentes nos quartéis, os governos Chávez (1999-2013) e Maduro empreenderam um sistema de "premiação" por lealdade, baseado em promoções e distribuição de cargos no governo, diz Barboteu.
"Existe sim uma ideologia presente, de identidade com os ideais bolivarianos, embora não seja unanimidade. E há interesses", diz.
"São concedidas recompensas àqueles que apoiam o regime. Na época que eu estava na Venezuela, o país já tinha mais generais que o Brasil, embora tivesse um Exército menor que o nosso."
A Força Armada Nacional Bolivariana tem entre 95 mil e 150 mil integrantes. As Forças Armadas brasileiras têm 444 mil, segundo dados do Ministério da Defesa.
"Não havia cargo para esse pessoal todo, então os generais atuavam como assessores diretos de um setor das Forças Armadas, mas eles não tinham uma tropa para comandar", lembra Barboteu, destacando também que muitos generais da ativa comandam ministérios, secretarias e empresas estatais na Venezuela.
O general lembra que, no governo de Hugo Chávez, por causa do apoio popular que ele tinha, eram raras as manifestações abertas de discordância ao regime por parte de militares.
"Maduro não tem, e lá isso é muito importante, o mesmo carisma que Chávez tinha para manter as pessoas agrupadas a seu redor. E houve uma disputa muito grande por ocasião da sucessão do Chávez, na época em que ele estava doente, em 2013", lembra.
"Quando Chávez fez a opção por Maduro, os potenciais candidatos que não foram agraciados com o apoio de Chávez já começaram a exercer uma certa resistência, porque Maduro não era unanimidade."
Mas, embora, o apoio militar a Maduro tenha sofrido desfalques, a grande maioria dos líderes das Forças Armadas parece permanecer leal ao atual governo.
"A ideia que eu tenho é que a situação de apoio ao Maduro é uma mistura de dois fatores: alinhamento ideológico e a expectativa de ser beneficiado num futuro próximo se o governo se estabilizar", avalia Barboteu.
|
Participação do Brasil na crise venezuelana
A reação do governo brasileiro diante da escalada da crise na Venezuela, por enquanto, tem sido de cautela. A ala militar é a maior defensora de que seja descartada a possibilidade de uma intervenção armada com participação de tropas brasileiras.
Para o general Barboteu, a decisão de não intervir é "acertada", porque uma ação militar por parte do Brasil poderia gerar instabilidade na região e ressentimentos entre os países da América da Sul.
O maior conflito armado da América do Sul foi a Guerra do Paraguai, quando Brasil, Argentina e Uruguai formaram a Tríplice Aliança contra o Paraguai. O conflito durou de 1864 a 1870 e resultou na morte de mais de dois terços da população masculina paraguaia. A memória desse conflito continua viva entre os paraguaios.
"A gente não pode esquecer que as políticas mudam, mas os Estados permanecem. O Brasil tem um pacto de não intervenção", afirma o general brasileiro.
"Claro que temos preocupação com nossas fronteiras, mas a gente precisa ter cuidado, não se precipitar, porque as sequelas podem ficar, havendo um ressentimento em decorrência de uma intervenção. A postura de aguardar, proteger nossas fronteiras e acolher os que estão fugindo de lá é a mais adequada."
Na visão de Barboteu, uma eventual intervenção americana também pode abrir um "precedente perigoso" para ações militares estrangeiras em outros países da América do Sul, no futuro.
O governo Donald Trump tem reiterado que não descarta a possibilidade de uma ação militar na Venezuela, embora destaque que prefira uma solução pacífica e diplomática.
"Toda intervenção militar externa tem que ser muito bem sopesada para não ficar caracterizado um neocolonialismo, para as populações não se sentirem reféns de uma nação mais poderosa", diz o general Barboteu.
"Ainda que a gente entenda as dificuldades pelas quais o povo venezuelano está passando, esse é um caminho que foi consequência das escolhas que esse próprio povo fez ao longo da sua história. Esse povo tem que se coordenar para mudar isso. Quando essa indicação vem de fora, você vai estar sempre naquela linha tênue entre estar prestando uma ajuda para evitar um massacre civil e estar promovendo uma intervenção indevida."
Risco de guerra civil
O anúncio de Guaidó, no dia 30 de abril, de que teria apoio militar, gerou dúvidas sobre se uma divisão entre militares de alta patente poderia acabar evoluindo para uma guerra civil.
No final das contas, as manifestações de rua convocadas pelo líder da oposição, apesar de resultarem em confrontos violentos, não chegaram a desembocar num confronto armado de maiores proporções.
No entanto, para o general Barboteu, a possibilidade de uma guerra civil ainda existe. O risco maior de violência interna viria de grupos paramilitares formados pelo governo venezuelano para propagar os "ideais da revolução bolivariana" e combater o crime nas cidades.
Ainda que Maduro deixasse o poder pacificamente, esses grupos poderiam se insurgir.
"Imaginei que as primeiras manifestações já pudessem adquirir caráter mais grave. Para minha grata surpresa, isso não aconteceu. Mas você vê que há violência nos protestos, uma quantidade muito grande de gente e algumas vítimas fatais. O risco existe, ainda mais nessa nova onda de insatisfação popular", diz o militar brasileiro.
Ele avalia que para o Brasil, a maior dificuldade em caso de conflito armado no país vizinho, será gerenciar a chegada em massa de migrantes. Os venezuelanos já são, atualmente, a segunda população com mais refugiados no mundo, atrás apenas da Síria, segundo a Organização dos Estados Americanos (OEA).
A grande maioria tem se deslocado para a Colômbia (cerca de 1,2 milhão) e outros países de língua espanhola da América do Sul, como Peru (700 mil) e Chile (265,8 mil). Mas um contingente cada vez maior de pessoas chega a cada dia ao Brasil via Pacaraima, em Roraima.
"A fome e a doença desconhecem fronteiras. Na hora que a coisa aperta, não tem jeito. O pessoal tenta sair pra se proteger. É uma massa grande de gente que passa por necessidades. Então, temos que nos precaver em relação a isso", diz o general Barboteu.