Adivo Paim Filho
paimf2001@yahoo.com.br
Consultor em análise de cenários estratégicos
Três meses depois do incêndio da boate “Kiss”, em Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil, em 27 de janeiro passado, é possível ter uma visão de conjunto da tragédia que levou à morte, de forma direta, 241 pessoas, sendo que quatro vítimas ainda estão hospitalizadas neste 3/5. O evento em si teve começo, meio e fim.
Ele inscreve-se, todavia, num contexto temporal em que vários outros fatos se articularam, sem que houvesse uma deliberação macabra da parte de quem quer que fosse. Mais remotamente, uma greve universitária de 111 dias (professores, funcionários e estudantes) levou a uma alteração do calendário acadêmico, de forma a que o verão santa-mariense estivesse repleto de jovens universitários à procura de recuperar o tempo perdido, no que correspondia ao segundo semestre de 2012.
De outra parte, cidade de face jovem para o observador externo, Santa Maria – no centro geográfico do Rio Grande do Sul e a 400 km do litoral mais próximo, ostenta uma noite alegre e descontraída, em especial desde a criação da UFSM em dezembro de 1960, principalmente nos fins de semana, com milhares de estudantes nos barzinhos e boates, despreocupados com a segurança dos locais, buscando apenas vencer o stress de estudos, provas, estágios, trabalhos de conclusão de curso, dissertações, teses, pesquisas e artigos científicos.
Uma tragédia desse tipo sempre esteve com alto risco de acontecer e na própria “Kiss” – já poderia ter acontecido ou vir a acontecer em ocasião futura. Nela ou, praticamente, em qualquer outro dos locais buscados pelos jovens estudantes em busca de alegria, bebida, som alto e horas de despreocupação. De fato, uma semana antes fora fechada, por falta de condições de segurança e funcionamento, a boate do DCE – Diretório Central de Estudantes da UFSM, que funcionava em prédio do governo federal, no centro histórico da cidade, há pelo menos 30 anos.
Mais que um mero incêndio, um evento de impacto psicossocial numa cidade brasileira de porte médio, um dos 66 pólos regionais de segundo nível que “comandam” as redes de cidades que dão face real ao ‘Brasil-de-cidades’, de 1970 para cá. Ainda uma peculiaridade: trata-se da cidade onde está sediada a segunda maior guarnição militar terrestre do país, com jurisdição sobre mais de 300 municípios (dos mais de 400 no Estado), bem como as fronteiras com Argentina e Uruguai. A cidade abriga, também, uma base aérea e um contingente apreciável da polícia militar estadual. Um “case” nacional por mais de um título.
Estrategicamente, sobre a linha do Tempo, aflora o impacto psicossocial como o mais importante, difícil e pesado. Estudiosos das grandes calamidades que têm acometido a humanidade são unânimes: não são “vítimas”, propriamente, apenas os por elas atingidos. Nunca uma tragédia de proporções reduz-se à aritmética de mortos e sobreviventes, com ou sem seqüelas. É muito difícil fazer o cálculo exato e isto se aplica à Tragédia do 27 de janeiro. Basta ter acompanhado as “Marchas pela Paz” que reuniram em silêncio e consternação dezenas de milhares de pessoas em várias cidades do Rio Grande do Sul para saber que a Tragédia não se circunscreveu aos estritos limites municipais ou ao respectivo perímetro urbano. De outra parte, a dor paralisou Santa Maria, por todo o mês de fevereiro, é lentíssima a recuperação da comunidade e tudo ainda repercute na imprensa local, estadual, nacional e internacional.
Especialistas, à época, alertaram que para 65% dos santa-marienses demoraria um ano pelo menos para um retorno a um estágio mínimo de normalidade de reações diante da realidade cotidiana. Para 25%, porém, seria necessário um acompanhamento especializado, que poderia durar todo o resto de suas vidas. Ora, estes 25% dos santa-marienses não vivem isolados dos demais, não estão confinados espacialmente a nenhum lugar, portanto “contaminam” com sua angústia todos os demais com quem se relacionam na escola, no trabalho, no lazer. Todos os santa-marienses, pois, ainda que em diferentes graus, são vítimas da Tragédia do 27 de janeiro e suas conseqüências.
Em 24 de fevereiro, o “Estadão”, recorrendo a cálculos técnicos sérios, quando o número total de vítimas fatais da Tragédia não era conhecido, chegou à noção de que o total de anos potenciais perdidos, com aquelas mortes, atingia 12.412 anos. Um alcance inimaginável no Tempo. É apenas a ponta do iceberg das conseqüências de tudo. Diante disto, haverá monitoramento e cuidado aos sobreviventes, em termos de atenção psicossocial, por cinco anos, sendo que até o dia 5 de maio havia 856 pessoas cadastradas, das que tiveram contato direto com a tragédia. No Hospital Universitário da UFSM, por sua vez, foi criado o CIAVA – Centro Integrado de Assistência às Vítimas de Acidentes. Nova legislação, preventiva, está a caminho, em nível federal, estadual e municipal.
Mas, enfim, a cidade ainda ressente-se gravemente do episódio e isto impacta os outros 54 municípios que compõem a sua Região Funcional Urbana, correspondente a 23% do território gaúcho. Santa Maria está à espera de um Novo Horizonte, ainda invisível.