A partir da invasão russa na Ucrânia, a regra geral que diferencia as nações ganhadoras das perdedoras no campo econômico é o quão dependentes estavam de energia, alimentos e minérios fornecidos pelos dois países em guerra. As ganhadoras são aquelas que podem ganhar mercado ao substituírem o fornecimento dessas matérias primas que Rússia e Ucrânia deixaram de prover, quer seja por bloqueio quer seja por sanções econômicas.
No campo geopolítico, surgem alguns inesperados ganhadores e uma certeza: os novos investimentos vão procurar democracias com qualidade institucional, em detrimento das autocracias nas quais um líder decide o destino do país, como na Rússia de Vladimir Putin.
A quase totalidade dos países perde a batalha da inflação e, na luta com alta dos juros, correm o risco de transformar o menor crescimento econômico mundial em recessão.
"O impacto econômico deixado pela pandemia e as alterações geopolíticas geradas pela invasão russa na Ucrânia terão fortes consequências durante a próxima década e abrem uma janela de oportunidades para países produtores de alimentos, energia e minerais. Nesse sentido, a América Latina tem uma grande oportunidade de garantir a segurança mundial nesses três setores", indica à RFI Dante Sica, ex-ministro da Produção e do Trabalho da Argentina (2018-2019) e sócio fundador da consultora Abeceb, especializada em comércio e investimento na região.
Enquanto a América Central é importadora de matérias primas, a América do Sul, produtora e exportadora de commodities agrícolas, energéticas e minerais, é uma clara ganhadora com a guerra na Ucrânia. Países como Venezuela, Colômbia, Equador e Bolívia são fortes produtores de petróleo e gás. O México, na América do Norte, soma-se a esse grupo. O Chile e o Peru são grandes produtores de minérios. Uruguai e Paraguai, de alimentos.
A Argentina é uma das maiores exportadoras de produtos agrícolas, especialmente aqueles com os quais a Ucrânia e a Rússia mais abasteciam o mundo: trigo e milho. O país possui a segunda maior reserva do mundo de petróleo e gás de xisto (shale oil). Poderia ser auto-suficiente e ainda abastecer a Europa, mas faltam investimentos para retirar, transportar e exportar o gás.
"Os países do Mercosul e a União Europeia têm agora uma grande oportunidade de ratificar o acordo de livre comércio. Isso tornaria o Mercosul um fornecedor privilegiado da Europa e a Europa garantiria o abastecimento do qual requer", observa Dante Sica, quem, em 2019, foi um dos negociadores e artífices do acordo, ainda pendente de ratificação.
Brasil, na melhor posição da região
O grande ganhador na América Latina é o Brasil: exporta alimentos, energia e minérios."O Brasil é o maior ganhador de todos na América Latina. Tem uma economia sólida, tem grandes empresas de nível global e está mais globalizado do que os vizinhos. Por isso, o real foi a moeda que mais se valorizou neste ano", compara à RFI o consultor de negócios e analista internacional, Marcelo Elizondo.
"Mas toda a América Latina está diante de um desafio para aproveitar essa oportunidade: terá de melhorar a sua capacidade logística, aumentar a taxa de investimento e a qualidade institucional", adverte.
O pódio árabe
No mundo, o pódio dos maiores ganhadores fica com Catar, Arábia Saudita, Kuwait e Emirados Árabes Unidos, todos exportadores de petróleo e gás. Esses países, ao mesmo tempo, mantêm uma taxa de inflação baixa em comparação com o resto do mundo. Embora sejam importadores de commodities agrícolas, o valor da energia subiu mais do que o dos alimentos.
"Os países do Golfo não tiveram políticas monetárias expansivas durante a pandemia, têm economias mais abertas e mantêm muito subsídio ao consumidor. Isso lhes permite conter a inflação", indica Marcelo Elizondo.
Inesperados ganhadores
Um inesperado ganhador é Taiwan cuja vulnerabilidade ficou em evidência depois da comparação com a Ucrânia.
"Taiwan ganha porque, depois da invasão russa, ficou mais difícil que a China avance sobre Taiwan. Se para a China o custo de invadir Taiwan era alto, agora é muito maior. O mundo deixou claro que não vai tolerar que uma potência avance sobre países vulneráveis", explica à RFI o analista em geopolítica Patricio Navia, da chilena Universidade de Diego Portales e da norte-americana New York University.
"O mundo agora olha com lupa para os movimentos expansionistas da China. Ficou incômodo para a China avançar sobre Hong Kong e Taiwan", concorda Marcelo Elizondo.
Dois outros inesperados ganhadores reaparecem no tabuleiro: a Venezuela e a Arábia Saudita.
Os dois países, acusados de violações dos direitos humanos e considerados párias internacionais pelos Estados Unidos e pelas democracias liberais, ganharam projeção geopolítica, graças à necessidade de petróleo.
No caso da Venezuela, os Estados Unidos retiraram sanções e fizeram uma aproximação pragmática. E, no mês que vem, o presidente Joe Biden vai ao Oriente Médio, incluindo uma visita à Arábia Saudita.
"A Venezuela teve a sorte de os Estados Unidos precisarem urgentemente de mais petróleo. De inimiga e pária internacional, de repente, a Venezuela transforma-se num bem do qual os Estados Unidos precisam para controlar a inflação e o descontentamento da sua população", aponta o analista internacional Patricio Navia.
"A Venezuela pode aparecer ganhando no curto prazo com uma aproximação pragmática dos Estados Unidos, mas o regime de Nicolás Maduro pode perder, considerando que os investimentos vão procurar democracias consolidadas e qualidade institucional. Pode ser que no curto prazo haja um lucro, mas no médio prazo, ninguém hoje investiria na Venezuela nem na Nicarágua nem em Cuba", garante Dante Sica.
"A Venezuela está produzindo 20% do que produzia. Para se recuperar, precisa de investimentos. O regime de Nicolás Maduro pode não ser confiável, depois do exemplo de Vladimir Putin. Os investimentos vão querer garantias", afirma Elizondo.
Liderança mundial
Um dos maiores ganhadores é mesmo os Estados Unidos. Assumiram o papel de verdadeiro adversário da Rússia e enfileiraram as grandes democracias.
"Os ganhadores são os potenciais adversários da Rússia. Nesse sentido, os Estados Unidos têm sido, até agora, ganhadores, mas a guerra tem custos para todos. Quanto mais a guerra durar, o custo para os Estados Unidos pode aumentar. As empresas norte-americanas podem começar a questionar o motivo pelo qual se gasta tanto dinheiro numa guerra se há problemas internos mais urgentes", avalia Patricio Navia.
"No campo da geopolítica, os Estados Unidos conseguiram unir todos os países da Europa atrás da OTAN que aparece agora fortalecida. Sem que o presidente Joe Biden tenha exercido uma grande liderança, a invasão da Rússia na Ucrânia uniu as democracias liberais do mundo. Esta guerra é, em última instância, entre a Rússia e os Estados Unidos", afirma o especialista.
Os países perdedores
Os que mais perderam nestes quatro meses de guerra foram os países altamente dependentes dos produtos agrícolas da Rússia e da Ucrânia como o Líbano e a maior parte dos países africanos. Nesses países existe o risco de fome. Essa, aliás, é a maior preocupação do mundo: a falta de segurança alimentar.
Em média, a África depende 44% do trigo da Rússia e da Ucrânia. Moçambique, Togo e Quênia dependem em cerca de 40% do trigo dos países em guerra. Outros como Tanzânia, Madagascar e Senegal, dependem em 60%. No Egito, essa dependência sobe a 80%. A Somália e o Benin dependem da Ucrânia e da Rússia em 100% de seus suprimentos de trigo.
O Leste Europeu, altamente dependente do gás russo, é outro grande perdedor, com destaque para a Polônia e para a Bulgária.
Na Ásia, a Índia fica no terreno perdedor por ser importadora de alimentos.
China indefinida
Os analistas têm dificuldade para classificar a China. Veem o país numa posição opaca sem pagar os custos de uma guerra, mas sem colher os benefícios de uma liderança global. Deixa a Rússia e os Estados Unidos se desgastarem, mas a atitude de mera observadora pode ter um custo na reputação.
"A China mantém boas relações com a Rússia e pensa que o fato de o seu inimigo potencial, os Estados Unidos, estarem envolvido nessa guerra lhe dá certas vantagens. Mas a China também perdeu a oportunidade de demonstrar liderança mundial. Nesse conflito mundial, está apenas como observadora enquanto muitos países apostaram num papel mais forte de apresentar uma solução ao conflito", reflete Patricio Navia
Se a China não participa nem paga os custos econômicos da guerra, a sua política interna de covid zero impõe estritos confinamentos, afetando o seu crescimento e acentuando na vizinhança o risco de recessão.
"A China não está no cenário internacional como estava há quatro meses. Não é um perdedor, mas claramente não é um ganhador. Está numa situação incômoda na qual não se quer meter", completa Marcelo Elizondo.
Europa paga o preço da dependência e da proximidade
Como região, a Europa é a grande perdedora. Alguns países são mais perdedores do que outros. A Alemanha e a Itália, mais dependentes do gás russo, perdem mais. A França, menos dependente, perde menos.
A Ucrânia destruída pela Rússia é a mais dolorosa perdedora. Porém, a Rússia é vista como a nação mais perdedora no futuro por mais que, eventualmente, ganhe a guerra. O país deve ser tratado como um pária internacional enquanto Vladimir Putin exercer o poder.
"Mesmo que a Rússia anexe a Ucrânia, a economia russa estará destruída e custará se recuperar antes que Vladimir Putin deixe o poder. Putin já é um perdedor mesmo que a Rússia ganhe a guerra. A Ucrânia será sempre uma zona de resistência", prevê Patricio Navia.
Ganhadores em regiões perdedoras
A Rússia produz 43% do paládio mundial, usado nos catalisadores dos automóveis. A África do Sul é o segundo maior produtor e pode ser beneficiada. O país africano ferro e ouro. A África do Sul é uma ganhadora num continente perdedor.
A Rússia é o terceiro maior produtor de níquel, usado nas baterias de íons de lítio para veículos elétricos. A Indonésia é o primeiro produtor mundial.
A Europa é uma clara perdedora, mas a Noruega é um dos países mais ganhadores porque exporta gás e petróleo. Noruega, Catar e Estados Unidos são os países que mais têm substituído o gás russo na Europa. A Noruega é o terceiro maior produtor de gás do mundo, depois da Rússia e do Catar.
A Europa é perdedora, mas, curiosamente, a União Europeia é ganhadora. Do ponto de vista geopolítico, a guerra fortaleceu o projeto de integração europeu.
"A invasão de Vladimir Putin levou todos a verem que, mesmo com os problemas, a integração em torno dos mesmos valores é muito melhor. A União Europeia unifica-se mais e fortalece o seu vínculo com os Estados Unidos", sublinha Navia.
Democracia, a maior vitoriosa
A partir de agora, os investimentos tendem a procurar garantias e segurança jurídica. Antes da guerra, os investimentos lidavam com regimes autoritários, mas, depois de se queimarem com Vladimir Putin, o fortalecimento das democracias pode ser uma das maiores "vitórias" da guerra.
"O mundo, em matéria econômica, vai começar a olhar para a qualidade institucional. Perderão investimentos as autocracias; ganharão as democracias. Os investimentos vão procurar maior compromisso democrático. As empresas estrangeiras vão exigir garantias que só as democracias podem dar", frisa Marcelo Elizondo. "É isso o que fará dos países provedores estáveis e confiáveis", define.
"O investimento vai procurar lugares de paz e, por zona de paz, entende-se também qualidade democrática. Isso se torna agora um ativo do ponto de vista econômico. A agenda dos investimentos incluirá questões ambientais, de sustentabilidade social e de boa governança. O ambiente democrático será uma das variáveis para a decisão de investimento", reforça Dante Sica.
De dois aspectos, quase nenhum país escapa no mundo: o forte aumento da inflação e o encolhimento do mercado consumidor a partir de um mundo que crescerá menos economicamente, inclusive com risco de recessão.
"No curto prazo vamos ao mundo de maior inflação e de menor crescimento econômico e isso gera mais riscos. Reconfiguram-se alianças, prioridades e investimentos", conclui Dante Sica.