Gabriel Sestrem
Gazeta do Povo
27 Novembro 2022
Decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) que restringiram operações das forças de segurança nas favelas do Rio de Janeiro não apenas têm contribuído para o fortalecimento e a expansão dos territórios dominados por facções criminosas no estado, principalmente pela instalação de centenas de novas barricadas para impedir o avanço de viaturas, mas também aumentado a frequência dos treinamentos com táticas de guerrilha feitos pelos traficantes.
Fontes das polícias estaduais e especialistas em segurança pública ouvidos pela reportagem apontam que quase dois anos e meio após as medidas entrarem em vigor, tais exercícios, em geral conduzidos por ex-militares que vendem conhecimento ao crime organizado e, ocasionalmente, por ex-guerrilheiros que moram nas comunidades, têm sido uma realidade ainda mais frequente.
A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, chamada “ADPF das Favelas”, foi ajuizada no STF em novembro de 2019 pelo PSB. Desde junho de 2020, medidas restritivas às ações policiais passaram a ser estabelecidas pelos ministros sob provocação de partidos de esquerda e ONGs ligadas a direitos humanos. Ao menos uma dessas ONGs, aliás, tem ligações estreitas com lideranças do crime organizado.
Como já mostrado pela Gazeta do Povo, desde que as restrições passaram a valer, lideranças do narcotráfico no estado têm encontrado mais facilidade para fortalecer e ampliar suas posições; aumentar seus arsenais de guerra e até mesmo receber traficantes de outros estados, que agora percebem os morros fluminenses como locais seguros para permanecerem impunes enquanto comandam o crime em seus estados de origem.
Exercícios militares como os executados no vídeo abaixo, registrado em abril deste ano na avela da Maré, não são algo novo. Desde o final da década de 1990, ex-guerrilheiros que fugiram da Guerra Civil Angolana, ocorrida entre 1975 e 2002, passaram a ser identificados pelas forças policiais atuando em combates junto às facções que dominam os morros fluminenses.
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Os veteranos de guerra, treinados por Rússia e Cuba, possuíam experiência em operações especiais, comandos, táticas de guerrilha, guerra na selva, operações em montanhas, tiro de precisão, bombas e demais artefatos explosivos. Além disso, o idioma padrão de Angola é o português, o que facilitava a comunicação com os traficantes.
Em 2006, o delegado Delcir Teixeira, na época superintendente da Polícia Federal (PF) no Rio de Janeiro, declarou que investigações haviam concluído que “um grupo de angolanos, refugiados de guerra, estava adestrando traficantes da Maré em táticas de guerrilha” desde o final da década de 90. Essa integração entre ex-guerrilheiros e traficantes fluminenses foi uma virada de chave para a forma como o crime organizado passou a combater forças policiais e facções rivais.
Como explica o coronel da Polícia Militar do Rio de Janeiro (PMERJ) Fábio Cajueiro, que é ex-comandante de operações especiais, até hoje centenas de veteranos de guerra angolanos permanecem nessas comunidades, mas grande parte dos treinamentos é ministrada, atualmente, por ex-militares, dispensados do serviço, sem remuneração, que são recrutados pelas facções para oferecer conhecimento e treinamentos.
“A ADPF 635, ao dificultar a ação das forças da lei e da ordem, torna mais fácil o treinamento da narcoguerrilha e também o fortalecimento das facções em termos de equipamentos, construções e barricadas”, explica o coronel.
“Devido ao aumento do poder de fogo, precisão e treinamento dos traficantes, as forças policiais operam com mais dificuldade e com progressão mais lenta e segura no terreno, via de regra evitando operações noturnas e confrontos sem veículos blindados e helicópteros”. A restrição a operações noturnas e ao uso de helicópteros nas incursões fazem parte das medidas determinadas pelo STF.
Alessandro Visacro, analista de segurança e defesa e autor do livro Guerra irregular: Terrorismo, guerrilha e movimentos de resistência ao longo da história, explica que não apenas o conjunto de táticas, técnicas e procedimentos de combate tem evoluído nos últimos anos, mas também o arsenal e os sistemas e mecanismos de defesa que os criminosos usam para defender seus territórios contra as forças de segurança e outras facções.
Para ele, as medidas impostas pelo STF têm impacto bastante negativo na segurança pública do estado, já que permitem que as facções que dominam as comunidades avancem na edificação de espaços segregados, isto é, áreas não governadas pelo Estado.
“A partir daí vão sendo instituídos verdadeiros enclaves de 'microssoberania', protetorados urbanos sem lei, espaços anárquicos, áreas não governadas no interior do estado. Isso adquire características típicas de guerrilha. E quando observamos esses treinamentos, é uma demonstração clara da capacidade que esses atores têm para perseguir seus objetivos estratégicos”, explica o especialista.
“Quando se cria essa série de restrições para o ingresso do poder coercitivo do Estado dentro das comunidades, isso só ajuda na construção desses enclaves de 'microssoberania'. O Estado não consegue impor seu sistema normativo, o que fortalece o poder dos criminosos dentro desses enclaves. Isso não vai parar, vai continuar evoluindo”, alerta Visacro.
Mudança na política de combate ao crime no RJ é improvável no curto prazo
Diante do fortalecimento do crime organizado no Rio de Janeiro, na avaliação das fontes ouvidas pela Gazeta do Povo, é necessária a revisão de políticas de tolerância à criminalidade, a mudança de postura do Judiciário e o fortalecimento das instituições policiais para fazer frente aos avanços do crime organizado nos últimos anos.
“O que deve ser feito é modificar a legislação, tornando-a mais dura, moderna e não permissiva e reduzir o garantismo jurídico e o laxismo penal”, aponta o coronel da PMERJ. A respeito de melhor estruturação às instituições policiais, Cajueiro cita a necessidade de investir em meios de deslocamento modernos, suficientes e adequados; implementar seleção e treinamento com parâmetros altos; ajustar escalas de serviço; proporcionar boa remuneração e oferecer carga de trabalho humanizada.
Apesar da mencionada necessidade de mudanças de postura quanto ao combate à criminalidade no estado, ministros do STF não dão sinais de reversão das medidas implementadas, e parte deles, como o relator Edson Fachin, costuma manifestar simpatia ao fim das operações policiais em declarações públicas.
No poder Executivo, a plataforma política do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), segue a mesma linha. O próprio Partido dos Trabalhadores (PT) figura como amicus curiae (amigo da Corte) na ADPF 635 e endossou o pedido de diversas restrições a operações policiais em comunidades no Rio de Janeiro.
Durante o Encontro Nacional de Direitos Humanos do partido, realizado em dezembro de 2021, o setorial aprovou diversas sugestões para serem aplicadas caso Lula vencesse as eleições. Dentre as propostas, validadas na reunião do Coletivo Nacional em fevereiro deste ano, consta, por exemplo, desmilitarização das polícias, descriminalização das drogas e fim da “guerra às drogas” – termo comumente usado por políticos e partidos de esquerda para defender a redução de operações policiais de enfrentamento ao narcotráfico.
No plano parcial de governo divulgado pela campanha de Lula há menção à substituição do “atual modelo bélico de combate ao tráfico” por “estratégias de enfrentamento e desarticulação das organizações criminosas e fortalecimento da investigação e da inteligência”. Vale reforçar que toda operação policial é indissociável do aparato de inteligência.
Apesar disso, no atual cenário do estado – com 1,4 mil comunidades dominadas pelo crime organizado e 56,6 mil criminosos em liberdade portando armas de fogo de grosso calibre segundo dados de 2020 da Polícia Civil –, inevitavelmente, o combate bélico é uma realidade nas operações em que há resistência armada.
O governador reeleito do Rio de Janeiro, Cláudio Castro (PL), é favorável ao retorno das operações no estado. Em março deste ano, Castro chegou a dizer que, em decorrência das medidas implementadas pelo STF, a região dos complexos havia se tornado “hotel de luxo” para chefes de facções criminosas de outros estados brasileiros. Apesar disso, frente às restrições determinadas pelo Judiciário que, na prática, configuram a imposição de uma política externa de segurança pública imposta ao estado, o governo estadual pouco tem a fazer frente ao dramático avanço do crime organizado.