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Gen Div Santos Cruz: O governo do show

Fábio Leite
Crusoé
02 Julho 2021

Dois meses após ser demitido da Secretaria de Governo pelo presidente Jair Bolsonaro, em junho de 2019, o general Carlos Alberto dos Santos Cruz decidiu abrir uma conta no Twitter para se manifestar politicamente, algo que ele não podia fazer de maneira aberta nos 47 anos em que serviu ao Exército e nos seis meses em que ficou na Esplanada dos Ministérios. A lucidez do oficial reformado o transformou em uma das principais vozes críticas ao governo entre os militares. O objetivo de Santos Cruz ao aderir às redes sociais e emitir suas opiniões sem reservas, diz ele, era alertar para o fanatismo encravado no Palácio do Planalto e para o risco do Exército ser “arrastado para a política“.

Aos 69 anos de idade, o general deve, muito em breve, se lançar de vez na política partidária. Ele tem conversas avançadas para se filiar ao Podemos e, possivelmente, disputar um cargo nas eleições do ano que vem, quando terá uma meta para perseguir: ajudar a evitar não só a reeleição de Bolsonaro como também a volta do PT ao poder. “Tem que vir alguém que represente um projeto, uma nova opção. Não tem que ter mito ou gente em missão divina“, afirma. Nesta entrevista a Crusoé, Santos Cruz fala das suspeitas de corrupção e da atuação de extremistas no governo e critica as tentativas de uso político das Forças Armadas pelo atual presidente da República.

O que explica essa sucessão de suspeitas, até na compra de vacinas, em um governo que se elegeu prometendo combater a corrupção?

O que explica é a desorganização, a falta de diretrizes claras, de capacidade de mexer na estrutura e modificar os vícios existentes. Como consequência disso, surge todo tipo de ocorrência.

Quando o sr. estava no governo, já percebia sinais de corrupção ou da falta de controle para evitar desvios?

Não. A minha participação foi apenas no início do governo. Ainda havia ali uma tentativa de modificação da estrutura. O que estamos assistindo não é só de agora. Os vícios são antigos. Para mexer em estruturas viciadas você precisa de tempo, ter planejamento, diretrizes claras, uma liderança que conduza esse processo. O governo não mostrou até agora capacidade de modificar essas estruturas problemáticas. É muita preocupação com coisas supérfluas, é uma campanha eleitoral permanente. Você não senta para trabalhar e mudar essa estrutura. A atenção fica desviada para outras questões menos importantes e daí acontecem essas coisas.

Como o sr. enxergou a decisão do comando do Exército de não punir o general Eduardo Pazuello por participar de ato político com Bolsonaro?

Normalmente, a gente não critica a decisão do comandante do Exército por uma questão cultural. A cultura da minha geração é a de não criticar o comandante por não saber a quais pressões ele está submetido. Acho que houve uma fixação muito forte à questão da punição ou da não punição. O comandante pode punir ou não. Não é todo erro que você conserta com punição, e erros acontecem. Mas o fato criado é um fato inaceitável na cultura militar. Esse não é só um caso disciplinar, é muito maior do que isso. É um fato político que tem um responsável maior no cenário, que até faz questão de dizer que é o comandante em chefe. Se ele é o comandante em chefe não pode desprestigiar, colocar em risco e desacreditar a instituição. Tem uma figura maior no cenário.

Que é o presidente Jair Bolsonaro.

Claro, o presidente da República, que atuou de forma completamente irresponsável. Ou ele não sabe nada do regulamento ou não sabe qual a postura que ele tem de ter como comandante em chefe. Comandante em chefe não deve ficar chamando militar para palanque, deve tomar decisões estratégicas. Toda vez em que faz discurso político e fica tentando envolver os militares, ele é o grande responsável. Houve uma fixação muito grande com o general que foi para o palanque, com a decisão do comandante do Exército, mas o pessoal está perdendo o foco, que é de um presidente que desde o ano passado está querendo arrastar o Exército para a política. Esse é o problema.

Por que o presidente faz isso?

Isso, para mim, é falta de noção institucional. O Exército não é a única instituição que tem sofrido com esse comportamento. Por exemplo, o Ministério da Saúde: um dia o ministro diz que tem de usar máscara e no outro dia o presidente da República sai na rua sem máscara. Ou a Anvisa, que é um órgão técnico: aprova a vacina um dia, e no dia seguinte o presidente diz que a vacina não tem amparo técnico. É um vício dele desprestigiar as instituições. São muitos os exemplos. É uma falta de noção pessoal. Todas as instituições devem ser valorizadas, não o contrário. A democracia funciona porque tem um processo permanente de aperfeiçoamento das instituições.

Nesse contexto, que recado o Exército passa à sociedade ao decidir não punir o general Pazuello?

Faz muito tempo que estou fora do Exército, na prática desde 2012, e não posso falar pelo Exército. Não sei se o comandante fez alguma recomendação interna, mas isso é uma coisa tão lógica, tão parte da cultura militar, que todos os militares sabem que não devem fazer (participar de ato político). Por não ter havido uma manifestação pública, as pessoas podem ter achado que estão mudando a cultura dentro do Exército. Não vão mudar. Isso está muito enraizado. O Exército não se envolve com política. Quando houve o incidente com os três comandantes, do Exército, da Aeronáutica e da Marinha (substituídos por Bolsonaro em março), eles saíram sem falar nada. Deve ter sido por alguma discordância. Não adianta porque não é esse tipo de investida que vai destruir a cultura militar.
 
Isso é da porta do quartel para dentro. E do quartel para fora? Ao decidir não punir Pazuello, a instituição não passa a impressão de que se curvou aos interesses políticos do presidente?

Sem dúvida nenhuma existe uma percepção na sociedade de que o Exército está participando do governo do presidente Bolsonaro. Ela começa pelo grande número de militares que exercem funções de destaque no governo. Como a representação social está desequilibrada no governo, passa essa impressão. Concordo que existe essa percepção, e ela não está errada, mas não bate exatamente com a realidade. Isso é feito de maneira proposital pelo presidente para transferir o prestígio das Forças Armadas para o governo e mostrar para a sociedade que o Exército está envolvido em assuntos de governo. E, o pior de tudo, de que está envolvido em projeto pessoal de poder. E não está, mas a impressão é a de que está. As pessoas que acompanham mais de perto o Exército, sabem que isso é um blefe. Tem várias indicações disso.

Quais indicações?

Tem várias ameaças (da parte do presidente) de que vai fazer um decreto para isso ou aquilo. Mas você percebe que aquilo não se concretiza. No geral, porém, o show acaba tendo algum efeito.

Quem deve conter esse ímpeto do presidente?

Em primeiro lugar, eu acho que esse tipo de conversa que estamos tendo faz parte de um alerta para a sociedade. O pessoal da ativa não vai fazer isso, nem pode fazer. A postura militar não permite. Se fizer, gera uma crise maior ainda. Os comandantes trabalham e ficam quietos. Veja que os três comandantes que saíram não falaram nada sobre o episódio, mostraram como é a cultura militar. Agora, quem alerta para isso? É a imprensa, são os militares que estão na reserva, como eu. E a população, sabendo disso, começa a formar a convicção dela. A grande participação da população é o momento do voto. Fora disso, você tem o Ministério Público, o Congresso Nacional, o Judiciário. Se perceberem alguma coisa fora da legislação. eles têm de atuar.

O sr. vê semelhanças entre o governo Bolsonaro e o de Nicolás Maduro?

Vejo, sem dúvida nenhuma. Particularmente, no estilo populista de transformar tudo em espetáculo, de sempre tentar arrastar as Forças Armadas para a disputa política. Chamar a instituição de “meu Exército”, esse pronome possessivo que não tem sentido nenhum porque absolutamente demagógico, é populismo. Existe um jogo político e você tem que jogá-lo, mas sem envolver as Forças Armadas. Aí vem a similaridade com Nicolás Maduro.

Acredita que Jair Bolsonaro possa ser reeleito no ano que vem?

Pode até acontecer. Se acontecer, temos que respeitar. Mas vejo hoje um quadro com duas opções que o Brasil não merece. O Brasil merece uma opção que entregue paz e união. O Brasil está desunido e não é de hoje. Por que estamos mal na condução da pandemia? Porque não tem união nacional. Se tivesse união nacional desde o início, nós passaríamos melhor por esse período. Mas não. O que temos é briga com todo mundo, com as instituições. É desrespeito pessoal, desrespeito funcional, desrespeito institucional. Não é assim que uma sociedade vive.

O fato de o presidente ser militar e de o governo ser formado por muitos militares alimenta o temor de que ele poderia promover um golpe para se manter no poder. O sr. acha isso possível?

Eu acho que se uma meia dúzia inventar de fazer tumulto vira caso de polícia e aí a polícia resolve. Não vamos considerar que haverá uma convulsão nacional se o presidente perder a eleição.
O sr. crê em uma candidatura competitiva de terceira via que possa romper a polarização entre o presidente Bolsonaro e o ex-presidente Lula?
Sem dúvida. A sociedade brasileira está se conscientizando sobre essa necessidade, tirando os extremos. Porque nos extremos há fanatismo, o que não é racional. Fanatismo se alimenta de fanatismo, anda junto com crime e sempre termina em violência. Então, tirando esses extremos, a maior parte da sociedade quer paz, harmonia, tolerância, convivência, desenvolvimento, e vai optar por uma alternativa que traga paz social e união.
Dos nomes que já estão postos, tem algum que lhe agrada mais?
Tem que ver a proposta. Alguns já são mais conhecidos, mas acho que ainda pode aparecer gente nova. Não tem que vir mais nenhum salvador da pátria. Tem que vir alguém que represente um projeto, uma nova opção. Não tem que ter mito, gente em missão divina. Tem que ter uma pessoa que seja menor do que o projeto e que cumpra o projeto.
Um novo governo do PT pode trazer esse clima de paz e união, como Lula tem pregado?
Essa é uma manobra política que é válida, de tentar transmitir essa sensação, de que a convivência política será melhor. Mas não podemos esquecer que foi o próprio PT que começou a investir na divisão social. E tem outra coisa importante: o Partido dos Trabalhadores teve oportunidade de governar por três mandatos e meio, praticamente. Teve a oportunidade dele. Realizou algumas coisas e outras não realizou, como qualquer governo. Mas terminou o ciclo muito desgastado por escândalos e demagogia. Acho que a volta do PT, sem nenhum exagero, é um retrocesso. Nós precisamos andar para a frente.
O que fez o sr. acreditar no governo Bolsonaro e ter sido ministro por seis meses?
Assim como eu, mais de 57 milhões de brasileiros também fizeram a mesma opção. Em primeiro lugar, era importante encerrar aquele ciclo de quatro mandatos em que o PT era o partido central do governo. É bom politicamente para um país ter alternância de ciclos. Em segundo lugar, tirando as coisas espetaculares que uma campanha sempre tem, essa parte mais emocional, o que foi falado durante a eleição era importante: combate à corrupção, fazer uma nova política, que não fosse toma lá dá cá. Se afastar desse modelo de tentar explorar o estado, no seu orçamento, nas emendas parlamentares, no recurso público uma forma geral. Foi isso tudo que (me) levou (a integrar o governo). Na campanha, o presidente falou tudo que a sociedade queria ouvir: que a Lava Jato iria continuar, que o ex-juiz Sergio Moro iria ser ministro da Justiça. Só que, depois, na prática, aquilo não se concretizou. Falava-se em união nacional, porque se acusava o ciclo anterior, do PT, de ter dividido o país entre nortistas e sulistas, entre pobre e rico, coxinha e mortadela. Mas não foi isso que aconteceu. Logo os extremistas passaram a ter influência do governo.
Quando o sr. se deu conta que não havia um projeto de governo?
Se você voltar lá para o início do governo, vai ver a influência de um grupo muito extremista, que não era numeroso, mas era muito atuante, radicalizando em um nível baixíssimo na internet. A gente mudou o governo para melhorar o nível do nosso relacionamento social e político, não para chegar ao nível daquela escória extremista. Não há mais discussão de ideias. Há apenas ataques pessoais, os mais baixos possíveis.
O sr. foi um dos alvos desse grupo extremista.
Particularmente não me afeta, mas é uma vergonha social. A sociedade brasileira não merece ter um grupo de influencers governamentais daquele nível, que é o mais baixo possível. Se não concordamos com as coisas, vamos mudar, fazer alguma coisa construtiva, e não fazer um show de xingamentos para todo lado. Não fui lá para isso.
Nesse grupo está o vereador Carlos Bolsonaro, filho 02 do presidente, que atacou o sr. nas redes sociais pouco antes da demissão. A quem o sr. credita a sua saída do governo?
Em primeiro lugar, alguém se torna ministro porque é convidado pelo presidente, e depois deixa de ser porque o presidente não quer. Não tem nada de errado quando o presidente decide substituir um ministro. Nenhum governo no mundo termina com a mesma equipe que começou. O que é ruim para a sociedade é ver uma grande quantidade de crimes medíocres para justificar (a demissão).
O sr. se refere ao famoso print de uma suposta troca de mensagens do sr. criticando o presidente?
Sim. Para tirar um ministro, não precisa dar show. Tem um grupo que eu considero uma escória social que tenta influir em todas as ações de governo.
Aquelas mensagens divulgadas foram montagens?
Claro. É uma coisa até burra porque fizeram a montagem no momento em que eu estava embarcado em um avião, sem internet. Foi ridículo, é medíocre.
 
Qual é sua opinião sobre o tratamento que o presidente Bolsonaro tem dispensado ao vice Hamilton Mourão, escanteado do governo?
Não quero falar da pessoa de um ou de outro, mas isso é péssimo para o país. Mostra falta de liderança, de capacidade de convivência. Tem que convidar para trabalhar alguém em quem se tenha confiança, admiração, respeito. Isso passa por uma questão pessoal, de valores. Dá para fazer desse relacionamento uma coisa extremamente construtiva, mas, infelizmente, isso não existe.
Quais foram os maiores erros do governo na condução da pandemia no Brasil?
Em primeiro lugar, a falta de liderança. Diante de uma situação complexa como essa, a autoridade maior tem de chamar a responsabilidade para ela e conduzir o processo. Outra coisa é a falta de união nacional. A autoridade maior tinha de convocar governadores, prefeitos, toda a classe política, para esquecer temporariamente os objetivos partidários e pessoais e se unir. A falta de liderança tem como consequência a falta de união nacional. E daí vem a politização do assunto e a falta de utilização da estrutura existente dentro do governo para um aconselhamento técnico. Nós tivemos politização até de medicamento. Ainda estamos discutindo se tem remédio que funciona ou não funciona. E o pior é que uma discussão que não é técnica. É mais um show no qual escutamos mais coisas absurdas.

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