Como se exprimem os comunistas contemporâneos
Flavio Gordon
Gazeta do Povo
29 Dezembro 2021
“O objetivo do socialismo não é apenas acabar com a divisão da humanidade em pequenos Estados e com o isolamento das nações sob todas as formas, não é apenas unir as nações, mas integrá-las.” (V. I. Lenin, A Revolução Socialista e o Direito das Nações à Autodeterminação, 1914)
“A transição para a Nova Ordem Social Mundial requer a integração das novas nações cativas em governos regionais.” (F. Petrenko e V. Popov, Política Externa Soviética: Objetivos e Princípios, 1985)
Publiquei recentemente na Gazeta uma série de textos intitulada “Um artigo censurado sobre Comunismo e Globalismo”. Ela complementava uma série mais antiga sobre o mesmo assunto, intitulada simplesmente “Comunismo e Globalismo”. Juntas, elas perfazem 14 artigos dedicados a explicar as transformações históricas e adaptações estratégicas por que passou o velho internacionalismo comunista para se transformar no projeto globalista contemporâneo, cuja utopia última é uma centralização total do poder político em alguma forma (mais ou menos totalitária) de governo mundial.
Mostrei nesses textos como, em fins dos anos 1980, com o processo de dissolução nominal do comunismo na URSS e no Leste Europeu, os principais ideólogos e estrategistas comunistas passaram a sofisticar seu linguajar político, adaptando-o à langue du bois das organizações internacionais e tornando-o mais abstrato e universalista. Nesse contexto, toda referência tradicional a coisas como “ditadura do proletariado”, “propriedade coletiva dos bens de produção”, “combate ao capitalismo”, “guerra ao imperialismo” e jargões militantes de mesma cepa deveria ser abandonada em favor de discursos genéricos e (ao menos na aparência) ideologicamente insípidos sobre os “valores comuns” a “toda a humanidade”.
Como escreveu Gorbachev no livro Em Busca de um Novo Começo: desenvolvendo uma nova civilização:
“O futuro da humanidade não será definido pela oposição entre capitalismo e socialismo. Foi essa dicotomia que criou a divisão da comunidade mundial e toda a série de consequências catastróficas. Devemos encontrar um paradigma que integre todas as realizações do espírito e das ações humanas, sem nos ater à ideologia ou ao movimento político no qual se originam. Esse paradigma só pode se apoiar em valores comuns que a humanidade desenvolveu ao longo dos séculos. A busca por um novo paradigma deveria ser a busca por uma síntese daquilo que é comum e une os povos, os países e as nações, e não daquilo que os divide”.
Alguns conceitos-chave começam, então, a aparecer o tempo todo na fala e nos escritos dos comunistas: interdependência, convergência, bem comum da humanidade, segurança ambiental, desarmamento etc. “Nenhum país, nenhuma nação deveria ser considerada de forma isolada das outras, muito menos oposta às outras. É o que o nosso vocabulário comunista chama de internacionalismo, o que significa o anseio em promover os valores humanos universais” – explicou ainda Gorbachev em Perestroika, o livro. Tratava-se, em suma, de uma ocultação do projeto comunista de poder sob o simbolismo pacifista do globalismo onuseiro.
Eis que, recentemente, dois líderes comunistas contemporâneos ilustraram perfeitamente essa mudança estratégica que já vem de décadas. No início do mês, o embaixador da China no Brasil, Yang Wanming, cometeu no (cada vez mais sinófilo) jornal O Globo um artigo que é uma verdadeira joia de desinformação comunista e inversão revolucionária. Intitulado“O ‘neocolonialismo’ disfarçado de democracia”, o texto ataca o pretenso neocolonialismo americano, acusando-o – pasmem! – de violar as soberanias nacionais, a democracia, a paz e os direitos humanos. Tudo isso dito assim, com tamanha desfaçatez, pelo representante de um regime que mantém minorias étnicas em campos de concentração, que censura imprensa e internet, persegue opositores, restringe a liberdade religiosa e adota uma postura cada vez mais imperialista e agressiva nas relações internacionais.
Mas, menos que o conteúdo em si do texto, que nada tem de novo para quem conhece a retórica vitimista do agitprop chinês, o que mais nos interessa aqui é a forma verbal utilizada pelo diplomata comunista, que reproduz exatamente a verborragia propositadamente vazia traçada pelos estrategistas soviéticos há mais de meio século. “Nos assuntos internacionais, a China defende a construção de uma comunidade global de futuro compartilhado, bem como os valores comuns de humanidade de paz, desenvolvimento, equidade, justiça, democracia e liberdade”, diz o embaixador da China. E continua com uma sem-cerimônia de assustar, chegando ao cúmulo de citar a pandemia – como se a mesma não fora, no mínimo, facilitada pelas mentiras e omissões do governo chinês – como pretexto para o seu belo discurso globalista.
“Numa época em que se sobrepõem mudanças sem precedentes nos últimos 100 anos e a pandemia do século, todos os povos, mais do que nunca, são interdependentes, e seus destinos estão interligados. A China está disposta a trabalhar com a comunidade internacional para resistir às práticas de falsa democracia, que abrem o caminho para o neocolonialismo, preservar os valores comuns de toda a humanidade e levar adiante o progresso humano”.
De novo: interdependência, interligação, valores comuns de toda a humanidade… É quase uma receita de bolo.
Mais recentemente ainda, em entrevista a um canal do YouTube, também o ex-presidiário Luiz Inácio Lula da Silva, fundador do Foro de São Paulo e candidato da China e dos globalistas para a próxima eleição no Brasil, não teve qualquer pejo (pois, amparado por camaradas togados, já passou dessa fase) em assumir seu papel numa eventual volta à Presidência: acabar de vez com a soberania nacional e a democracia representativa no país, submetendo o povo brasileiro aos ditames de uma elite internacional não eleita.
“Numa crise como esta, precisava ter uma governança global, que seria possível através de um Conselho de Segurança da ONU mais forte, mais participativo, com mais gente, decidindo coletivamente o que fazer”, diz. “Eu participei da criação do G-20, eu participei de muitas reuniões do G-20. Não adianta nada você tomar uma decisão coletiva com 20 presidentes se a decisão de execução é do Estado nacional e depende do Congresso de cada país. Aí as coisas não são decididas como o mundo espera. Então, nós precisamos pensar um novo modelo de governança global para que determinadas decisões sejam coletivas e implantadas por todos os países”.
O ex-presidiário afirma com todas as letras aquilo que grande parte da imprensa ainda nega existir: quer uma “governança global” – como tenho mostrado em diversos artigos, um mero eufemismo para governo mundial – que possa atropelar as decisões soberanas dos Estados nacionais e dos Legislativos eleitos de cada país. Suas eventuais decisões presidenciais, claro está, já não terão o povo brasileiro como fiador e interessado, mas uma abstração chamada “o mundo”. É preciso decidir “como o mundo espera”, diz o candidato a fantoche globalista.
Nessa fala, o ex-presidiário – que, embora tenha ressuscitado o movimento comunista na América Latina, para muitos não tem nada de comunista – está aí sendo fiel a uma tradição que remete a Lenin. Como escreveu Gorbachev:
“Sendo ele chefe do partido proletário, e justificando em nível teórico e político as pautas revolucionárias deste último, Lenin podia ver mais longe, transcender os limites de classe do partido. Mais de uma vez, ele falou da prioridade dos interesses comuns a toda a humanidade, para além dos interesses de classe. Somente hoje é que conseguimos alcançar toda a profundidade, toda a significação dessas ideias… A espinha dorsal do novo modo de pensamento é o reconhecimento da prioridade que se deve dar aos valores humanos, ou, para ser mais preciso, aos valores da sobrevivência humana”.
Problemas globais e sistêmicos que supostamente ameacem a sobrevivência da humanidade: eis o pretexto ideal defendido por comunistas contemporâneos para a concentração do poder mundial em organizações internacionais historicamente aparelhadas por seus quadros. “Ainda bem que a natureza criou esse monstro chamado coronavírus” – como admitiu o próprio ex-presidiário.
Com efeito, quando topamos com declarações sobre a pandemia como as do diplomata chinês, do ex-presidiário brasileiro ou mesmo a de um intelectual como Slavoj Zizek (“aqui não estamos falando do comunismo de outrora, naturalmente, mas de algum tipo de organização global que possa controlar e regular a economia, como também limitar a soberania dos Estados nacionais quando seja necessário”), estamos diante de uma longa tradição. Antes mesmo da Revolução Russa, em 1915, Lenin já afirmava que o internacionalismo comunista deveria assumir a forma de um “Estados Unidos do Mundo”.
Em 1936, lia-se no programa oficial da Internacional Comunista: “A ditadura só pode se estabelecer por meio de uma vitória do socialismo em diferentes países ou grupos de países, depois do que as repúblicas proletárias deverão se unir federativamente às que já existem, e esse sistema de uniões federativas vai se expandir até a formação de uma União Mundial de Repúblicas Socialistas Soviéticas”.
Pouco tempo depois da fundação da ONU, em declaração ao jornal Pravda (23 de março de 1946), ninguém menos que Josef Stalin saudava a organização nestes termos:
“Atribuo grande importância à ONU, dado que é um importante instrumento para a preservação da paz e da segurança internacional”.
Eis uma frase que qualquer um dos personagens da coluna de hoje subscreveria.