Fereira Gullar
Cada dia que passa me convenço mais de que, sobretudo quando se trata de política, as pessoas, em geral, têm dificuldade de aceitar a realidade se ela contraria suas convicções.
Recentemente, durante um almoço, ouvi, perplexo, afirmações destituídas de qualquer vínculo efetivo com a realidade dos fatos. Minha perplexidade foi crescendo tanto que, após tentar mostrar o despropósito do que afirmavam, fingi que necessitava ir ao banheiro e não voltei mais ao tal papo furado.
Não resta dúvida de que, até certo ponto, essa dificuldade de aceitar a realidade decorre do momento que estamos vivendo, tanto no Brasil como no mundo em geral.
Tem-se a impressão de que atravessamos um período de mudanças radicais quando os valores, sejam ideológicos, econômicos ou éticos, entram em crise.
Isso parece ter a ver tanto com as utopias quanto com a implantação de novos meios de comunicação. Estes tornaram o mundo menor ou, dizendo de outro modo, é como se todos os povos, nos diversos pontos do planeta, vivessem uma mesma atualidade. Sabemos, a todo instante, de tudo o que ocorre em qualquer região, em qualquer país, em qualquer cidade do planeta.
No caso de nós, brasileiros, acresce o fato de que chegamos ao fim de uma fase que culminou no afastamento da presidente da República e na implantação de um governo interino, agora permanente. Acresce o fato de que o governo que findou era a expressão de um regime populista, caracterizado por um ideologismo demagógico, apoiado no setor pobre e carente da população. Na verdade, versão primária de um regime dito de esquerda em aliança com o capitalismo corrupto, que ele fingia combater.
Pois bem: que o povão desinformado se deixe levar pelas benesses recebidas é compreensível. Difícil de explicar, porém, é a atitude de intelectuais de esquerda que aceitam a burla como verdade.
E era isso que transparecia na tal conversa do encontro a que me referi no começo desta crônica. Uma das pessoas presentes, dizendo-se contra Dilma Rousseff, tampouco admitia o governo Michel Temer. Quando a lembrei que o governo de Temer tinha apenas um mês de existência e que herdara do anterior uma situação crítica com mais de 11 milhões de desempregados, ela respondeu: "Na cidadezinha onde moro não há desemprego. Duvido muito desses números".
Lembrei-a que aqueles eram dados do IBGE, divulgados havia três meses, quando ainda era Dilma quem presidia o país, ela respondeu: "E o IBGE não podia estar infiltrado por adversários do governo?"
É que essa senhora se diz de esquerda e, embora não possa negar o estado crítico a que o PT conduziu o país, usa de argumentos infundados para colocar em dúvida o fracasso petista. Já observaram que os que defendem esse populismo nunca tocam nos escândalos revelados pela Lava Jato, no assalto à Petrobras, nas propinas dadas a funcionários e políticos inclusive do PT? É que têm dificuldade de aceitar a realidade dos fatos e admitir que estão errados. E se alguém faz referência a tais escândalos, gritam: "Mas isso é mentira!" Ou seja, para quem não suporta a realidade, só é verdade o que lhe convém.
Saí dessa roda e fui me sentar com outro grupo, que falava de futebol, particularmente do Vasco, meu time do coração, que anda mal das pernas, pois acabara de ser desclassificado, ainda na primeira rodada da Copa do Brasil. Mas eis que chega um velho companheiro, simpatizante do PC do B, do finado PCB e muda o assunto da conversa, de futebol para a polícia. Foi então que um dos presentes afirmou que o comunismo já acabara, uma vez que a própria China era hoje a segunda maior potência capitalista do mundo.
– Isso não, contestou o velho comuna. O comunismo está mais vivo do que nunca. A China encarna a nova forma que o regime socialista ganhou.
– Sim –brinquei eu–, é o comunismo capitalista! Todos riram, menos o autor daquela tese surrealista.