Mais de duas semanas após um oficial das Forças Armadas ter sido detido pela Polícia Militar (PM) com manifestantes suspeitos de serem black blocs, antes de um protesto em São Paulo contra o governo do presidente Michel Temer (PMDB), o Exército brasileiro admitiu ao G1 realizar “operações de inteligência” permanentes em “manifestações de rua”.
Os ministérios públicos estadual e federal investigam se o capitão Willian Pina Botelho, de 37 anos, agia como agente infiltrado do Exército no dia 4 de setembro, quando ele e 18 ativistas foram abordados pela PM no Centro Cultural São Paulo, na Zona Sul da capital paulista. O grupo se preparava para participar do ato Fora Temer na Avenida Paulista.
O Ministério Público (MP) de São Paulo também apura a legalidade da ação policial, que liberou o militar pego junto com o grupo suspeito de portar objetos que seriam usados para depredar o patrimônio público e privado. Os manifestantes, no entanto, foram levados detidos à Polícia Civil, onde acabaram responsabilizados por associação criminosa e corrupção de menores.
Apesar de ter confirmado à reportagem que era Botelho o homem de óculos, com cabelos compridos e barbado, que aparece em vídeos e fotos da internet sendo detido pela PM junto com outros ativistas, a assessoria de imprensa do Exército em Brasília não respondeu se o capitão estava mesmo trabalhando como agente infiltrado e se estava lá com autorização judicial ou não.
Essa foi uma das 18 perguntas feitas pelo G1 ao Centro de Comunicação Social do Exército envolvendo a presença de um militar entre manifestantes que foram detidos pela PM.
“No caso específico ocorrido recentemente na cidade de São Paulo/SP, envolvendo oficial, o Exército Brasileiro aguarda a conclusão do processo administrativo, já instaurado pelo Comando Militar do Sudeste”, informa trecho da nota da assessoria do Exército da última sexta-feira (16) enviada à reportagem.
O comunicado, porém, não explica o que o oficial fazia no Centro Cultural São Paulo e se está apurando alguma irregularidade supostamente cometida por ele.
Outra questão não respondida foi: o "Exército e a polícia de São Paulo estavam agindo em parceria para identificar e prender manifestantes que planejavam depredar o patrimônio público?"
Por meio de nota encaminhada à reportagem, o Exército justificou a legalidade e emprego "permanente da inteligência" para benefício da população, sem, no entanto, esclarecer se isso significa que vêm usando militares infiltrados em protestos populares.
“A atividade de inteligência tem respaldo legal. O Exército tem sido empregado frequentemente nas operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). A utilização permanente da inteligência tem assegurado a eficácia nas operações, o emprego proporcional da Força e minimizado os efeitos colaterais na população”, alega as Forças Armadas.
“O acompanhamento de manifestações de rua em nosso país está inserido no contexto das Operações de Inteligência”, continua o comunicado da assessoria do Exército.
Infiltrado não precisa de autorização judicial
A pedido do G1, especialistas em segurança pública analisaram a nota do Exército e disseram que "operações de inteligência" em "manifestações" pressupõem, entre outras coisas, o emprego de agentes infiltrados.
Segundo os entrevistados, a prática é legal, mas desde que se obedeçam critérios pré-estabelecidos. Um deles é "identificar ameaças, riscos e oportunidades ao país e à sua população", informa um dos trechos da Política Nacional de Inteligência (PNI), que está em vigor desde 29 de junho deste ano após decreto de número 8.793, assinado pelo então presidente em exercício Michel Temer.
A PNI "estabelece objetivos, limites, pressupostos e instrumentos para a atuação da inteligência federal, desenvolvida pela Abin [Agência Brasileira de Inteligência] e por todos os órgãos integrantes do Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin)."
Entre as ameaças estão: "espionagem, sabotagem, interferência externa, ações contrárias à soberania nacional, ataques cibernéticos, terrorismo, atividades ilegais envolvendo bens de uso dual e tecnologias sensíveis, armas de destruição em massa, criminalidade organizada e corrupção".
Para o secretário nacional de segurança em 2002 e coronel da reserva da PM José Vicente da Silva, por exemplo, "está claro que o capitão [Willian Pina Botelho] é um agente infiltrado do Exército, que, provavelmente, está usando outros infiltrados em grupos que organizam as manifestações".
Segundo ele, a prática de infiltrar agentes em grupos ou protestos sempre existiu e é recorrente, tendo sido usada durante a Copa do Mundo de 2014 e a Olimpíada deste ano, ambas no Brasil.
Os ativistas acusam Botelho de ter se infiltrado no grupo com nomes falsos. Ele se identificava como "Baltazar Nunes" e "Balta" nas redes sociais Facebook e Tinder -um aplicativo de paquera. Desde abril de 2015 ele vinha se apresentando em movimentos populares como uma pessoa descontente com a situação política do país.
"A lei diz que o infiltrado pode usar disfarces, nomes falsos etc", justificou Vicente da Silva.
Para os manifestantes, no entanto, Willian os atraiu para uma emboscada para serem presos com provas plantadas de que iriam cometer depredações, como uma barra de ferro que teria sido colocada por um policial na mochila de um ativista.
"O infiltrado não pode induzir o grupo ao crime. Sua missão é observar e passar informações a seus superiores", pontuou o ex-secretário nacional de segurança.
Por meio de nota, a PM alegou que liberou o capitão Botelho porque "não foram encontrados indícios de seu envolvimento em ações ilícitas". Segundo policiais ouvidos pela reportagem, ele não foi levado a nenhuma delegacia, e seu nome e identidade sequer foram anotados ou pedidos pela Polícia Militar.
Ainda de acordo com o especialista, não há a necessidade de se pedir autorização judicial para se infiltrar em grupos como os adeptos da tática de protesto black bloc que depreda bens materiais que simbolizam o capitalismo, como agências bancárias e prédios governamentais.
"Só é preciso ter respaldo da Justiça se for para usar agentes infiltrados em organizações criminosas, como facções que atuam dentro e fora dos presídios paulistas", disse Vicente da Silva. "O black bloc não é organização criminosa, é um movimento".
Infiltrado precisa de autorização judicial
O jurista e professor Walter Maierovitch, que foi desembargador do Tribunal de Justiça (TJ) e secretário nacional antidrogas de 1998 a 2000, tem opinião diferente sobre os critérios para se usar infiltrados em determinados grupos.
"O black bloc é facil de enquadramento como milícia porque comete crimes contra a paz pública", alega Maierovitch. "Nesse caso, meu entendimento é de que precisa de conhecimento do Ministério Público e autorização judicial para se infiltrar nos black blocs".
O Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), que enquadrou os manifestantes como organização criminosa, apreendeu, além de uma barra de ferro, máscaras contra gás, sprays, vinagre, pedras, lenços e estilingue apresentados pela PM como sendo dos suspeitos.
O nome de Botelho sequer aparece no boletim de ocorrência do caso feito no Deic. Segundo o documento, a PM alegou que recebeu uma denúncia anônima levou os policiais até o Centro Cultural São Paulo onde black blocs estariam se reunindo e se preparando para depredar o patrimônio público e privado. Para os ativistas detidos, esse denunciante seria 'Balta', ou capitão Botelho.
Indagado a respeito da presença do oficial do Exército com o grupo de manifestantes, o jurista falou que as perguntas que têm de ser feitas às autoridades e respondidas por elas são "se o militar foi infiltrado, se a infiltração teve respaldo da Justiça e se ela foi legal ou ilegal". Segundo Maierovitch, os infiltrados também são conhecidos como "arapongas".
Foi a Justiça que liberou todos os detidos por considerar as prisões para averiguação irregulares. Para um advogado que defendeu parte dos manifestantes, as detenções foram "políticas".
Manifestante e professor
"A gente foi enviado direto para o Deic e, nesse momento que a gente entrou no camburão para ir, o Balta já não foi junto. E aí no chat que a gente tinha no WhatsApp, ele conversando, falou que estavam mandando ele para outro DP [Distrito Policial] porque ele estava com documento falso. E aí meio que morreu o contato. Ele insistiu um pouco na ideia e a gente achou meio suspeito. Como assim só ele vai para outro DP?", indagou o jovem preso em entrevista à TV Globo.
O G1 não conseguiu localizar o capitão Botelho para comentar o assunto.
Em uma conversa com o professor da USP Pablo Ortellado por meio de uma rede social após a detenção dos jovens, Botelho escreveu que não estava 'infiltrado' e se disse abalado com as notícias, “andando pela cidade o tempo todo com medo da polícia e deles estarem me seguindo”.
Também afirmou que pretendia “dar um tempo para cuidar da família”, alegou ter ido ao médico e "avaliado por estresse". Revelou estar "esquecendo as coisas". Em nenhum momento, ele confirmou ser capitão do Exército.
SSP, PM e Deic
Em comunicados anteriores à imprensa, a Secretaria de Segurança Pública (SSP) informou desconhecer qualquer ação de inteligência que tenha sido feita entre a Polícia Militar e o Exército para deter os suspeitos de serem black blocs no dia 4 de setembro.
"A instituição também não conhece o homem apontado pela reportagem como um suposto oficial das Forças Armadas", alegou a pasta numa de suas notas sobre o capitão Botelho.
Em outro comunicado, a SSP informou que "o Deic desconhece a existência de um oficial infiltrado e garante que todos os detidos apresentados no departamento foram qualificados no boletim de ocorrência".
MP e Condepe
Segundo a promotora de Justiça Luciana Frugiuele, integrante do Grupo de Ação Especial para o Controle Externo da Atividade Policial (Gecep) do MP, os manifestantes detidos no dia 4 de setembro serão chamados para depor, e o capitão do exército também pode ser ouvido.
"Vamos questionar a todos os manifestantes a eventual presença de um oficial infiltrado. Se isso ocorreu, se havia autorização para ele estar infiltrado, se ele agiu sozinho, tudo isso será apurado", disse a promotora à TV Globo.
O líder do PSOL na Câmara, deputado Ivan Valente (PSOL), pediu oficialmente ao ministro da Defesa, Raul Jungmann, esclarecimentos sobre o caso.
O Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe) protocolou, no dia 14 de setembro, pedidos de apuração de ilegalidades cometidas durante a prisão de ativistas antes do protesto. Os documentos foram enviados para Marlon Alberto Weichert, procurador da República em São Paulo; Gianpaolo Poggio Smanio, procurador-geral de Justiça de São Paulo; e Mágino Barbosa Filho, secretário da Segurança Pública.
Segundo Ariel de Castro Alves, conselheiro do Condepe, é preciso apurar o envolvimento do Willian, que usou codinome de “Balta” para conversar com manifestantes por meio de redes sociais. “Precisamos saber se ele agiu como um possível agente provocador, gerando indícios de flagrantes preparados com o apoio do citado agente de inteligência do Exército."
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