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Coup d´Presse – Bolsonaro joga pólvora em companheiros de guerra

Leonencio Nossa
O Estado de São Paulo

12 de novembro de 2020
Portal Estadão

 

BRASÍLIA – Foi justamente sob o comando de generais dos Estados Unidos que os militares brasileiros tiveram um triunfo aplaudido no País e no exterior. Mais de 25 mil homens da Força Expedicionária Brasileira (FEB) integraram uma divisão do V Exército americano para forjar a saída dos alemães do norte da Itália na 2ª Guerra Mundial. Uma geração de pracinhas oriunda das periferias e dos cafezais enfrentou o gelo e o poder bélico dos nazistas num capítulo surpreendente da história bélica nacional.

O discurso do presidente Jair Bolsonaro de sugerir o uso da pólvora como resposta à pressão do democrata Joe Biden no problema das queimadas na Amazônia está mais para a história de crises de governo e o anedotário político. Posturas diversionistas de autoridades permeiam a trajetória do Exército brasileiro, que, desde o treinamento de um grupo de oficiais no Fort Leavenworth War School, no Kansas, em 1943, nunca deixou de pedir ajuda aos americanos para evoluir na doutrina e na tecnologia de guerra.

A aliança pioneira da turma dos generais Castelo Branco, Henrique Teixeira Lott e Zenóbio da Costa, gente que mandou no País, foi lembrada em março deste ano pelo ministro da Defesa. Fernando Azevedo comemorou, numa viagem de Bolsonaro à Flórida, um dos muitos pequenos acordos de cooperação firmados por governos brasileiros com a maior potência militar do mundo. “Temos os Estados Unidos como um parceiro importante. Estivemos juntos pela democracia e liberdade na Segunda Grande Guerra”, disse na época, um discurso padrão adotado nas últimas décadas.

O conflito mundial citado pelo ministro foi um hiato na história da caserna no Brasil. Antes e depois da presença da tropa na Europa, a cúpula militar só colecionou desgastes públicos nas suas vitórias nos territórios de países vizinhos e mesmo na repressão a populações sertanejas revoltadas.

Num museu no Forte de Copacabana, o Exército destaca os conflitos na Tríplice Fronteira (1864-1870) e em Canudos (1897) como momentos de sua história. Falta espaço para expor o uso político do emprego de tropas tanto no Império quanto na incipiente República. Essas guerras encobriram batalhas fratricidas pelo poder e crises econômicas ao custo de muito orçamento e sangue aqui e lá fora. Em Assunção, os brasileiros são acusados ainda hoje por massacres de crianças e saques – puseram nos navios até móveis de famílias paraguaias.

Já no interior baiano, a degola de sertanejos marcou a presença de oficiais na Caatinga. Essa prática seria usada também na Guerra do Contestado (1912-1916), onde os militares combateram caboclos que usavam facões esculpidos na madeira. A propósito, guerras assimétricas, em especial, costumam ser refluxos no tempo por excelência, reais ou imaginárias.

Guerra é um termo genérico, mas pode ser usado para relatar um caso recente em que os americanos jogaram militares brasileiros numa arapuca. O general da reserva Augusto Heleno Ribeiro, atual ministro do Gabinete de Segurança Institucional, conhece essa história. Em 2005, ele comandava a Missão de Paz das Nações Unidas no Haiti. No mês de julho daquele ano, cerca de 440 homens de sua tropa entraram em Cité Soleil, maior favela de Porto Príncipe, para caçar o criminoso Emmanuel Wilmer, o Dread. Heleno vivia pressionado. Os Estados Unidos criticavam uma suposta falta de agressividade no enfrentamento à violência no país caribenho.

Na operação de sete horas, cinco ou seis pessoas morreram, incluindo Dread, na estimativa do Exército Brasileiro. Entidades de direitos humanos ligadas ao ex-presidente Jean Bertrand Aristide, críticas da missão da ONU, calcularam 63 mortes. A agência Reuters estimou 70 vítimas fatais. Heleno contestou os números e reclamou de uma versão, segundo ele, política da história. De forma moderada, observadores internacionais avaliaram que um dos erros da operação foi não monitorar a favela nos dias seguintes. A falta de patrulha teria facilitado um acerto de contas local.

A guerra do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Haiti empoderou uma geração de “oficiais sem espada”. O País não conseguiu maior inserção nos fóruns internacionais, como desejava o governo. Mas os militares saíram de Porto Príncipe com a lição de que o quartel não forma dirigentes especializados em tornar competitiva a economia interna, mudar o jogo diplomático controlado por países desenvolvidos e atrair investimentos externos, preceitos para garantir a paz.

Por sua vez, Bolsonaro alimenta uma guerra permanente para encobrir questões políticas e familiares e salvar seu governo  – é o caso das rachadinhas, que envolve o filho e senador, Flávio (Republicanos-RJ).

O discurso da pólvora, uma das batalhas desse conflito travado pelo presidente, foi recebido com deboche pelo embaixador americano. Todd Chapman, nomeado por Donald Trump, divulgou vídeo do Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos para lembrar que a força está de prontidão em tempos de crise. Numa interpretação livre, evidenciou que, antes de uma suposta relação de amizade de seu chefe e Bolsonaro, existem interesses históricos. A embaixada afirmou que o vídeo estava sendo preparado havia uma semana e não tem relação com o presidente.

É, dentro desses limites, que os militares brasileiros tentam há décadas ter proveitos da parceria com Washington e expandir a indústria de defesa nacional como um aliado preferencial da OTAN, a Organização do Tratado do Atlântico Norte.

No front imaginário do presidente, a prioridade nos interesses particulares é pólvora que só chamuscou mesmo as fardas dos militares do lado de cá do campo de guerra, que chancelam o seu governo. No rastilho da semana, Bolsonaro ainda atacou a vacina da covid-19 e ironizou os brasileiros preocupados com a pandemia. Até o momento, pelo menos 163 mil pessoas morreram vítimas da doença.

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