Fausto Macedo
Estadão
15 de Dezembro de 2020
Em resposta enviada ao Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno, disse que é “narrativa fantasiosa”, “sem nenhum lastro de veracidade”, as acusações de que a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) elaborou orientações para auxiliar a defesa do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ).
A Agência Brasileira de Inteligência (Abin), por sua vez, disse ao Supremo que não existe “relatório produzido institucionalmente” pela agência a favor de Flávio Bolsonaro e pediu para ter acesso aos documentos mencionados nas reportagens.
‘O que existiu, e tanto a nota emitida pelo GSI quanto o Tweet do Gen. Heleno confirma, é apenas a realização de uma reunião, marcada para verificar ocorrência de eventual violação de segurança institucional, entre o Gabinete de Segurança Institucional, com participação do Diretor-Geral da Agência Brasileira de Inteligência, com a defesa de um Senador da República e filho do Presidente da República”, afirma a Abin.
Reportagem da revista Época publicada na sexta, 11, e confirmada pelo Estadão, aponta que a Abin de Ramagem produziu dois documentos em que detalha o funcionamento de suposta organização criminosa na Receita Federal que, segundo a defesa de Flávio, teria feito uma devassa nos dados fiscais do senador. Em um dos documentos, a finalidade descrita é ‘Defender FB no caso Alerj’.
“As matérias são especulativas, sem nenhum lastro de veracidade e a ação judicial que nela se ampara padece dos mesmos vícios, razão pela qual não tem como prosperar. Utilizam-se ambas, levianamente, de caros instrumentos da democracia: a liberdade de expressão e o livre acesso ao Judiciário, numa nítida tentativa de criar obstáculos à governabilidade e manipular a opinião pública”, afirmou Heleno.
“Não tenho como me manifestar sobre um documento, cuja existência e teor, desconheço.”
Entre as sugestões listadas pela agência estão a demissão de servidores do Fisco e da Controladoria-Geral da União (CGU), órgão responsável pela fiscalização da administração pública.
A Época mostrou nesta segunda, 14, que um dos servidores citados foi exonerado ‘a pedido’ há duas semanas e outras duas sugestões foram seguidas pela defesa: apresentação de um pedido de Lei de Acesso à Informação para colher provas de que o perfil de Flávio foi acessado indevidamente pela Receita e a apresentação de uma notícia-crime na Procuradoria-Geral da República.
UM GOVERNO MOBILIZADO PARA "DEFENDER FB
Guilherme Amado com Eduardo Barreto e Naomi Matsui Íntegra artigo Revista Época
A Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) produziu pelo menos dois relatórios de orientação para Flávio Bolsonaro e seus advogados sobre o que deveria ser feito para obter os documentos que permitissem embasar um pedido de anulação do caso Queiroz.
Nos dois documentos, obtidos pela coluna e cuja autenticidade e procedência foram confirmadas pela defesa do senador, a ABIN detalha o funcionamento da suposta organização criminosa em atuação na Receita Federal (RFB), que, segundo suspeita dos advogados de Flávio, teria feito um escrutínio ilegal em seus dados fiscais para fornecer o relatório que gerou o inquérito das rachadinhas.
Enviados em setembro para Flávio e repassados por ele para seus advogados, os documentos contrastam com uma versão do general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, que afirmou publicamente que não teria ocorrido atuação da Inteligência do governo após a defesa do senador levar a denúncia a Bolsonaro, a ele e a Alexandre Ramagem, diretor da ABIN, em 25 de agosto.
Um dos documentos é autoexplicativo ao definir a razão daquele trabalho. Em um campo intitulado "Finalidade", cita: "Defender FB no caso ALERJ demonstrando a nulidade processual resultante de acessos imotivados aos dados fiscais de FB". Os dois documentos foram enviados por WhatsApp para Flávio e por ele repassados para sua advogada Luciana Pires.
O primeiro contato de Alexandre Ramagem com ocaso foi numa reunião no gabinete de Bolsonaro, em 25 de agosto, quando recebeu das mãos das advogadas de Flávio uma petição, solicitando uma apuração especial para obter os documentos que embasassem a suspeita de que ele havia sido alvo da Receita. Ramagem ficou com o material, fez cópia e devolveu no dia seguinte a Luciana Pires, que voltou ao Palácio do Planalto para pegar o documento, recebendo a orientação de que o protocolasse na Receita Federal.
A participação da ABIN, a partir daí, seguiria por meio desses relatórios, enviados a Flávio Bolsonaro, com orientações sobre o que a defesa deveria fazer.
No primeiro relatório, o que especifica a finalidade de "defender FB no caso ALERJ", a ABIN classifica como uma "linha de ação" para cumprir a missão: "Obtenção, via Serpro, de 'apuração especial', demonstrando acessos imotivados anteriores (arapongagem)".
O texto discorre então sobre a dificuldade para a obtenção dos dados pedidos à Receita e, num padrão que permanece ao longo do texto, faz imputações a servidores da Receita e a exsecretários, a exemplo de Everardo Maciel.
"A dificuldade de obtenção da apuração especial (Tostes) e diretamente no Serpro é descabida porque a norma citada é interna da RFB da época do responsável pela instalação da atual estrutura criminosa – Everardo Maciel.
Existe possibilidade de que os registros sejam ou já estejam sendo adulterados, agora que os envolvidos da RFB já sabem da linha que está sendo seguida", diz o relatório, referindo-se a José Tostes Neto, chefe da Receita.
O relatório sugere a substituição dos "postos", em provável referência a servidores da Receita, e, sem dar mais detalhes, afirma que essa recomendação já havia sido feita em 2019. "Permanece o entendimento de que a melhor linha de ação para tratar o assunto FB e principalmente o interesse público é substituir os postos conforme relatório anterior. Se a sugestão de 2019 tivesse sido adotada, nada disso estaria acontecendo, todos os envolvidos teriam sido trocados com pouca repercussão em processo interno na RFB!", explica o texto.
A agência traça em seguida outra "alternativa de prosseguimento", que envolveria a Controladoria-Geral da União (CGU), o Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro) e a Advocacia-Geral da União (AGU).
"Com base na representação de FB protocolada na RFB (Tostes), CGU instaura sindicância para apurar os fatos no âmbito da Corregedoria e Inteligência da Receita Federal; Comissão de Sindicância requisita a Apuração Especial ao Serpro para instrução dos trabalhos. Em caso de recusa do Serpro (invocando sigilo profissional), CGU requisita judicialização da matéria pela AGU. ( … ) FB peticiona acesso à CGU aos autos da apuração especial, visando instruir Representação ao PGR Aras, ajuizamento de ação penal e defesa no processo que se defende no RJ'', recomenda o texto, resumindo qual é a estratégia: "Em resumo, ao invés da advogada ajuizar ação privada, será a União que assim o fará, através da AGU e CGU – ambos órgãos sob comando do Executivo".
Ainda nesse primeiro documento, outros dois servidores federais são acusados pela Abin, o corregedor-geral da União, Gilberto Waller Júnior, e o corregedor da Receita, José Barros Neto. "Existem fortes razões para crer que o atual CGU (Gilberto Waller Júnior) não executar(ia) seu dever de ofício, pois é PARTE do problema e tem laços com o Grupo, em especial os desmandos que deveria escrutinar no âmbito da Corregedoria (amizade e parceria com BARROS NETO)", disse o texto.
Um parêntese curioso. Neste trecho, já no fim do documento, a ABIN, comandada pelo delegado da PF Alexandre Ramagem, sugere que Bolsonaro demita Waller Júnior da Corregedoria-Geral e coloque no lugar dele um policial federal: "Neste caso, basta ao 01 (Bolsonaro) comandar a troca de WALLER por outro CGU isento.
Por exemplo, um ex-PF, de preferência um ex-corregedor da PF de sua confiança".
O outro documento enviado pela Abin a Flávio e repassado por ele a sua advogada traça uma "manobra tripla" para tentar conseguir os documentos que a defesa espera.
As orientações da agência aqui se tornam bem específicas "A dra. Juliet (provável referência à advogada Juliana Bierrenbach, também da defesa de Flávio) deve visitar o Tostes, tomar um cafezinho e informar que ajuizará a ação demandando o acesso agora exigido'', diz a primeira das três ações, chamadas pela ABIN de "diversionária".
Em seguida, o texto sugere que a defesa peticione ao chefe do Serpro o fornecimento de uma apuração especial sobre os dados da Receita, baseando-se na Lei de Acesso à Informação – o que de fato a defesa de Flávio Bolsonaro faria. A Abin ressalta que o pedido deve ser por escrito.
"O e-sic (sistema eletrônico da Lei de Acesso) deve ser evitado pois circula no sistema da CGU e GILBERTO WALLER integra a rede da RFB", explicou a Abin.
E, por fim, o relatório sugere "neutralização da estrutura de apoio", a demissão de "três elementos-chave dentro do grupo criminoso da RF", que "devem ser afastados in continenti". "Este afastamento se resume a uma canetada do Executivo, pois ocupam cargos DAS. Sobre estes elementos pesam condutas incompatíveis com os cargos que ocupam, sendo protagonistas de diversas fraudes fartamente documentadas", afirma o texto, sem especificar que condutas seriam essas. E cita os nomes de três servidores: novamente o corregedor José Barros Neto; o chefe do Escritório de Inteligência da Receita no Rio de Janeiro, Cléber Homem; e o chefe do Escritório da Corregedoria da Receita no Rio, Christiano Paes.
Num indicativo de que Bolsonaro talvez esteja seguindo a recomendação da Abin contra os servidores, Paes pediu exoneração do cargo na semana passada.
Procurado, o GSI negou a existência dos documentos, mesmo informado que a autenticidade de ambos havia sido confirmada pela defesa de Flávio Bolsonaro, e manteve a versão de que não se envolveu no tema. Procurada, a advogada Luciana Pires confirmou a autenticidade dos documentos e sua procedência da ABIN, mas recusou-se a comentar seu conteúdo. A ABIN não respondeu aos questionamentos sobre a origem das acusações feitas nos relatórios nem se produziu mais documentos além dos dois obtidos pela coluna.
Alexandre Ramagem, diretor da agência, atualmente voltou a ser cotado para comandar a Polícia Federal, caso Bolsonaro seja inocentado no inquérito que investiga se ele queria controlar a corporação ao nomear Ramagem, amigo de seus filhos, para a direção da PF.
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