Editorial Estado de São Paulo
A longo prazo, dizia o economista John Maynard Keynes, estaremos todos mortos. A longo prazo, talvez seja o caso de parafrasear, estaremos todos menos sujeitos a morrer atingidos por armas de fogo hoje livremente negociadas nos mercados internacionais. Essa é a expectativa, entre otimista e realista, que se pode cultivar agora que a Assembleia-Geral das Nações Unidas – depois de duas décadas de pressões e sete anos.de negociações – acaba de aprovar por esmagadora maioria o primeiro tratado sobre o comércio internacional de armamentos convencionais, que movimenta cerca de US$ 70 milhões por ano.
Foram 154 votos a favor, entre os quais os do Brasil e dos EUA, 23 abstenções, como as da Rússia, China e índia, e 3 votos contrários, do Irã, Síria e Coreia do Norte. Na semana passada, o trio impediu que o documento fosse aprovado por aclamação, como se pretendia inicialmente.
O acordo regula as exportações de tanques e outros veículos de ataque, sistemas de artilharia de grosso calibre, aviões e helicópteros de combate, belonaves, mísseis e lançadores, além de armas pequenas e leves. A expressão "no mínimo", referente às classes de armas controladas, foi retirada da versão original, por insistência dos EUA. Washington também conseguiu que se abordasse com mais complacência o comércio de munições. As vendas domésticas de armas tampouco foram abrangidas.
Quando – e se – o tratado entrar em vigor e for obedecido, os países exportadores de armas, liderados de longe pelos EUA e a Rússia, deverão se abster de vendê-las a governos que violem direitos humanos, fomentem o genocídio, tenham praticado crimes de guerra, respaldem movimentos terroristas, permitam que o armamento chegue ao mercado negro ou estejam proibidos de recebê-lo.
Hoje, por exemplo, a Rússia e o Irã desafiam o embargo da União Europeia às remessas de armas para o regime pária da Síria. O texto não veda a transferência de material bélico a movimentos que combatam governos opressores nem proíbe que um país doe ou ceda armas a terceiros. O tratado só vigorará 90 dias depois de ratificado por 50 países, a contar de junho próximo.
No caso norte-americano, as perspectivas de ratificação são ínfimas. A influência do poderoso lobby da indústria de armas torna o assunto tabu no Senado, ao qual cabe avalizar, por maioria de 2/3 dos seus 100 membros, os acordos firmados pelo país. Mais de 50 senadores se comprometeram por escrito a vetar o pacto, a pretexto de que viola o direito à autodefesa e a soberania nacional.
Na esfera global, ainda que o número mínimo de ratificações seja alcançado, o dado desanimador é que o texto não prevê nem mecanismos para assegurar o seu cumprimento nem sanções para os governos que o transgredirem – o que certamente acontecerá, de maneira menos ou mais despudorada.
Já no curso das negociações, os países refratários à regulação recorreram a pretextos cínicos para não aderir ao tratado. A Rússia considerou que o texto estava pontilhado de ambiguidades, entre as quais a indefinição do termo "genocídio". As organizações humanitárias supranacionais divergem sobre o que se conquistou afinal no plenário da ONU.
A Anistia Internacional e a Cruz Vermelha saudaram a aprovação do documento como um passo sem precedentes – o que de fato é, seja qual for a sua extensão. "As vozes da razão triunfaram sobre os céticos e os mercadores de morte", declarou um porta-voz da Anistia, lembrando que a oposição do setor de armas nos EUA não impediu que o governo votasse a favor da medida.
Mas a ONG Campanha contra o Comércio de Armas, sediada em Londres, prevê que os países fabricantes de armamentos continuarão a vender livremente os seus produtos aos governos capazes de pagar por eles. O tratado, aliás, reconhece "os legítimos interesses políticos, econômicos, comerciais e de segurança" envolvidos no comércio mundial de armas.
Na realidade, o que se abriu na ONU não foi uma janela, nem sequer uma brecha para coibir o negócio do extermínio, mas uma fresta – e a esperança de que o tratado se torne um regime. A longo prazo.