Paulo Delgado
Sociólogo
“Esta senhora tem garras afiadas”, dizia Kafka sobre a cidade de Praga, sua terra natal. Todos os países têm a mesma sensação kafkiana contra algum vizinho ou região. O Oriente Médio e os EUA parecem ter, um do outro, a mesma sensação. Não conseguem sair dali inteiros e convictos. Extraem da região seu poder e esgotam nela sua força.
Num plano mais amplo, atracam-se à eterna recorrência dessa guerra nada santa entre as duas fés que nasceram na casa de Abraão, e os conflitos que se espalharam dentro das duas linhagens. Dizer-se sunita ou xiita tem definido questões de vida e morte, assim como a distinção entre católicos e protestantes o fez durante outra, passada, era de horror. O curioso é que, talvez, ambos os períodos estejam atrelados a um aumento vertiginoso da informação que bombardeia mentes incapazes para construir do conhecimento do mal a possibilidade do bem.
As guerras europeias entre cristãos ocorreram com na época do advento da imprensa. A primeira grande democratizadora e divulgadora da informação, certa e errada. Hoje, radicais islâmicos se reúnem no FaceBook, sustentam suas ideias em mídias obscuras e saem a matar, como se fizessem um rolezinho pelo mundo. As narrativas são diferentes, pois a educação e o contexto mais amplo mudaram, mas há um espírito do tempo que une essas massas em busca de expressão. De São Paulo a Hong Kong, passando por Nova York e Londres, as tribos se organizam em torno da comida envenenada que é a falta de esperança.
O caos que se ameaça parece distante pela variedade das opiniões da sociedade moderna centrada no egoísmo do indivíduo. As massas buscam as grandes narrativas de bem contra o mal, de nós contra eles, de fúria temporal canalizada em delírios religiosos.
O terrorismo islâmico decepa cabeças, viola a honra de crianças, escraviza, tortura, como qualquer movimento expansionista que opera dentro das cortinas do horror que sobra da terra arrasada por instituições em frangalhos. Lembra o sistema carcerário mal-assombrado que não nos assusta mais.
Obama foi eleito para tirar o país dali. Reorientá-lo em direção ao Pacífico naquilo que realmente importa a longo prazo. Para aprofundar uma solidariedade camarada com a Europa, se apresentar suave à cata de aliados e parceiros comerciais em áreas do mundo deixadas de escanteio pelo pessoal fanático do Departamento de Estado. Tudo desandou na esteira de sinais trocados, da falta de casamento entre a narrativa e o estratagema que a sustenta. Acima de tudo, por conta do caldeirão de incertezas que cozinha o futuro e que não é mensurável em uma escala de risco.
Assim, desde o mês passado, o presidente Obama tem admitido o que todos previam: o exército iraquiano formado pelos EUA não é capaz de defender suas fronteiras. E também que não podia mais evitar de se imiscuir na situação síria. E foi-se lá novamente os EUA, caminhando uma rota conhecida em direção ao mundo parado no tempo.
“É sempre o caso. A América lidera. Nós somos a nação indispensável. Quando problemas aparecem em qualquer lugar do mundo, não ligam para Pequim, não ligam para Moscou, ligam para a gente”, esquivou-se, entre a grandiloquência e o aprisionamento, dias atrás em entrevista, um Obama tendo que se mostrar eleitoreiramente orgulhoso de voltar à guerra no Oriente Médio, assim como mostrava-se orgulhoso de tirar seus soldados de lá tempos atrás. A ampla coalizão, com os EUA mais uma vez preponderantes, opera uma guerra sem fronteiras e, outra vez, imprevisível.
O desenrolar histórico ali levou a esse estado, onde instituições ruins foram substituídas por fragilidades que deram vazão à barbárie.
Quebras institucionais podem trazer novidades bem-vindas. Há equilíbrios que não evoluirão para algo melhor. E, uma vez quebrados, possibilitam rearranjos mais positivos. Por outro lado, não há essa garantia. Mesmo assim, apostar em evoluções institucionais – em vez de revoluções –, embora traga uma noção de administração morosa demais da realidade, é melhor do que executar preso amarrado, fuzilar estrangeiro ajoelhado.
Quando há instituições modernas sólidas o suficiente, é possível pensar em ser revolucionário. Por outro lado, os horrores múltiplos da sociedade global se liberam em caos nos países em que as instituições vêm abaixo. Cacos de sentimentos, mal educados, mal tratados, em busca de uma narrativa. No entanto, achar que a violência redime ou se justifica por ideologia, mística ou não, é que traz essa narrativa para cada vez mais perto de nós.
Se as crenças tivessem compromisso com o progresso e algum líder mundial se dispusesse a retirar da paixão o interesse, talvez fosse possível vencer o fanatismo sem precisar triunfar sobre ele.