AlmEsq R1 Mario Cesar Flores
Vem sendo comum o emprego das Forças Armadas – principalmente do Exército e, em certas circunstâncias, dos Fuzileiros Navais – na segurança pública, com intervenções tipicamente policiais. Esse apoio federal aos Estados costuma ser ou, pelo menos, deveria ser provido inicialmente pela Força Nacional de Segurança Pública, força policial criada para essa finalidade e controlada pelo Ministério da Justiça. Como nem sempre isso é possível, suficiente ou adequado ao problema, recorre-se às Forças Armadas.
Cria-se, assim, uma corresponsabilidade militar federal numa atividade em princípio da alçada policial estadual. Corresponsabilidade que o povo, anestesiado pela farda e pelos carros do Exército nas ruas, tende a ver como a protagônica.
O artigo 142 da Constituição de 1988, de fato, admite esse tipo de atuação das Forças Armadas – “(…) destinam-se à defesa da pátria, dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer um destes, da lei e da ordem” –, mas, na realidade, a iniciativa tem sido dos governadores. O presidente da República apenas autoriza.
O que se depreende do preceito constitucional?
É evidente que ele deva abranger o emprego das Forças em situações graves e transitórias, que estejam além da capacidade policial por exigirem efetivos maiores do que os disponíveis nos sistemas policiais – no controle do Rio de Janeiro durante a Olimpíada Rio 2016 foram usados 23 mil militares federais – e/ou táticas e equipamentos só existentes nelas.
Mas abrangeria o controle policial rotineiro? O policiamento parapolicial, por longo tempo, de favelas do Rio de Janeiro, por exemplo? O secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro preconizou recentemente, em entrevista à TV, a continuidade do imenso esquema federal de segurança que o Estado teve à disposição durante a Olimpíada!
O fato é que, embora não deva ter sido esse o propósito dos constituintes de 1988, o emprego das Forças Armadas vem sendo frequente nas vicissitudes da insegurança pública. Essa prática induz dois tipos de problema.
O primeiro, o risco cultural. Povo e políticos tendem a ver as Forças (novamente, sobretudo o Exército) mais – o povo menos informado, até apenas – como instrumento da segurança pública do que da defesa nacional clássica. Essa tendência é transparente na mídia: a participação das Forças Armadas na esfera policial é objeto de referência frequente, aprovando-a ou criticando eventuais falhas.
A conveniência da participação nunca é posta em dúvida. Já os percalços do preparo para a defesa nacional raramente merecem atenção. É a mídia refletindo a preocupação do povo com o nível da insegurança pública atualmente vigente no País e sua despreocupação com a defesa.
Até mesmo nas Forças Armadas há o risco de emergir a sensação, ainda que inconsciente, de que elas se justificam no Brasil porque seriam essenciais à imposição do respeito à lei e ao controle da ordem. Realmente, justificam-se também por isso; mas em que grau, como e quando?
O segundo problema, complemento do primeiro, é a tendência à complacência com as restrições que vêm cerceando o preparo militar para a defesa nacional, obviamente a contragosto nas Forças. O preparo para a defesa é caro e a não percepção de ameaças propriamente militares (até quando isso é seguro…?) estimula a tendência, simpática a políticos e ao povo, que, alheios à complexidade do preparo militar projetado no tempo, olham a defesa clássica como tema vago e secundário – o povo até compreensivelmente, mas não o mundo político, corresponsável por ela.
E simpática à burocracia financeira da União – também compreensivelmente sob a perspectiva funcional –, que vê no sufoco orçamentário uma injunção inexorável do quadro fiscal brasileiro.
Em suma: a patrulha parapolicial típica do dia a dia da segurança pública não condiz rigorosamente com a lógica que alicerça as Forças Armadas, naturalmente direcionada para ações de combate a inimigo, e não ao controle do povo de seu próprio país.
O apoio federal na superação das deficiências estaduais, conveniente aos Estados porque estende suas responsabilidades à União e bem visto pelo povo pressionado por sua insegurança, é atuação que, levada à frequência, à intensidade (na ação) e à extensão (no tempo) excessivas, tende a “desmotivar” o preparo para a missão básica das Forças Armadas e razão de sua existência.
O assunto está a exigir cuidado. Não se trata de rejeitar o papel das Forças na segurança interna e pública. Isso seria inviável no Brasil de hoje, onde as atribuições dos sistemas policiais precisam de fato ser atendidas também pelas Forças Armadas. Repetindo: também, mas apenas em ocasiões ou episódios em que se caracterize a insuficiência ou incapacidade dos sistemas policiais e uma vez esgotado o potencial de apoio da Força Nacional de Segurança – o que inclui grandes eventos, como foi a Olimpíada Rio 2016.
Mais do que nessas atividades ao estilo policial, a contribuição militar para a segurança pública deve ocorrer, aí, sim, rotineira e intensamente, onde ela é compatível com a sua missão básica: o controle da fronteira terrestre, permeável ao fluxo de armas e drogas, que pesam forte na epopeia da insegurança pública. Pela mesma razão, também o controle da fronteira marítima, que, inexistindo guarda costeira, é encargo da Marinha.