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A nova guerra do garimpo

Fabíola Perez

A figura do garimpeiro com a bateia nas mãos empenhado em encontrar metais preciosos como ouro e diamante no curso das águas de um rio foi substituída por trabalhadores equipados com potentes motobombas, escavadeiras e balsas que cruzam o leito dos rios para extrair irregularmente os minérios. Quem interrompe o ciclo de exploração é ameaçado e até atacado pelos chamados “donos dos barrancos”, pessoas que controlam os garimpos.

Na sexta-feira 27, um grupo de garimpeiros ateou fogo aos prédios e veículos do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), em Humaitá, município localizado a 700 quilômetros de Manaus, no Amazonas.

O crime traz à tona mais uma vez os perigos e mazelas sociais que o garimpo irregular impõe à população. Dessa vez, porém, o ataque representou uma ação contra o Estado brasileiro que tenta combater a exploração ilegal de minérios. “O impacto é brutal.

Há garimpos no País, como o das terras indígenas Yanomamis, que funcionam a céu aberto desde a década de 1980”, afirma Luiz Frederico Mendes dos Reis Arruda, professor do Instituto de Ciências Biológicas Universidade Federal do Amazonas.

Além da degradação ecológica, eles colaboram para o aumento da criminalidade nas regiões próximas, provocam doenças nas comunidades e contribuem para o aumento da prostituição e do tráfico de drogas nas redondezas.

400 milhões de reais é o que se arrecada, em média, por ano nos garimpos ilegais da amazônia

O confronto ocorreu após o Ibama, em conjunto com o ICMBio, deflagrar a operação Ouro Fino, que fiscaliza a extração ilegal de ouro no rio Madeira. “Autuamos e embargamos balsas sem licenciamento ambiental, mas em pouco tempo elas voltaram a funcionar”, afirmou à ISTOÉ Roberto Cabral Borges, coordenador de Operações de Fiscalização do Ibama. “Como não houve nenhum resultado, buscamos rebocadores para retirar e destruir os equipamentos irregulares.” Foram retiradas 39 balsas.

Em represália à destruição das máquinas, grupos de garimpeiros colocaram fogo nas instalações dos órgãos governamentais. Para conter a tensão e garantir a segurança dos servidores e da população local, a Força Nacional enviou soldados e a Marinha deslocou um navio patrulha e fuzileiros navais.

O superintendente do Ibama no Amazonas, José Leland Barroso, considerou o ataque um ato de barbárie contra o Estado brasileiro. “Tentaram instalar um califado dentro de Humaitá. Eles sabiam que não estavam licenciados e mesmo assim nos chamaram para a ação”, afirmou. “Desafiaram o poder do Estado e isso terá resposta, o órgão não irá recuar.”

Confrontos como esses castigam a região Norte do País desde a década de 1980. Três dos maiores garimpos do mundo se instalaram nos estados do Amazonas, Pará e Rondônia. O mais famoso deles, Serra Pelada, em Curionópolis, atraiu cerca de 120 mil pessoas para trabalhar em condições análogas à escravidão.

Já os conflitos nas terras indígenas Yanomamis tiveram início em 1986 e perduram até hoje. Cerca de 20% da população morreu em decorrência de doenças causadas pela exposição ao mercúrio. Em 1993, 16 indígenas foram assassinados no Massacre do Haximu.

Na região de Bom Futuro, em Rondônia, 700 crianças foram resgatadas do trabalho semelhante à escravidão. Apesar disso, esses garimpos continuam ativos até hoje. Nos últimos anos, houve uma intensificação dos conflitos provocados por garimpeiros, principalmente no Sul do Amazonas. “Na medida em que se abrem rodovias no meio da floresta ocorre o efeito ‘espinha de peixe’, ou seja, a abertura de ramificações para atividades ilícitas em meio à floresta a partir dessas estradas”, afirma Arruda.

Além do acesso a matas inóspitas, três fatores explicam a multiplicação da mineração ilegal. A legislação para quem é autuado extraindo minérios sem licença prévia prevê punições brandas. A pena prevista é de seis meses a um ano de reclusão. “A pessoa que é pega raramente é presa, então não se preocupa em garimpar dentro da lei”, diz Borges.

Outro motivo é a ausência de rastreabilidade do ouro. “Na hora que chega à loja, ele pode ter vindo do garimpo ilegal ou provocado a destruição da Amazônia, mas terá o mesmo valor que o ouro licenciado.” A prática de destruir equipamentos de extração, adotada pelos órgãos de fiscalização, tem transformado algumas regiões em verdadeiros barris de pólvora. “Isso tem incomodado muita gente que pratica essa atividade criminosa”, diz Borges.

A inutilização das máquinas baseia-se no artigo 111 do decreto 6.514 que permite a operação quando não há possibilidade logística de remover as máquinas ou quando a atividade expõe o meio ambiente a riscos e compromete a segurança da população. Segundo o Ibama, essas ações correspondem a 1,2% das operações de combate.

Os equipamentos utilizados nos garimpos irregulares atuais têm um poder de destruição muito superior ao de décadas atrás. Exatamente por isso submetem trabalhadores a condições altamente insalubres. As escavadeiras hidráulicas conseguem extrair em três dias o que outras técnicas levariam pelo menos dez dias.

Na Amazônia, além do garimpo de barranco, existe também o de subsolo. Motores de caminhões são colocados em balsas e um mergulhador com um cano faz uma espécie de sucção no leito do rio. “Além de ser uma atividade desumana, altera a fauna e a flora dos rios”, afirma Borges. O valor estimado de uma balsa de mergulho é de R$ 80 mil – o que significa que, segundo órgãos de fiscalização, há estruturas criminosas financiando essas atividades no País. Outro termômetro das ações é a desproporcionalidade entre a comercialização do ouro legalizado e a quantidade de balsas operando nessas regiões.

Conflitos permanentes

Toda atividade de mineração tem início com um “dono”, pessoa que não tem a posse da área, já que se trata de uma atividade ilegal. Ele é geralmente alguém com mais recursos financeiros, que têm a posse do maquinário e raramente se desloca até o local. “Em uma das operações, encontramos um caderno com anotações. Trata-se de uma ilusão porque tudo costuma ficar com o dono do barranco, limpo e distante dos buracos escavados na terra”, diz o coordenador.

Existe também a figura de um gerente que organiza as atividades como moradia e comércio nas áreas. Tudo nos garimpos é pago em ouro, o que atrai grande parte da população de cidades próximas. Os homens, que trabalhavam na agricultura ou na construção civil, chegam ansiosos para explorar a terra. Já as mulheres, parcela crescente na mineração, saem dos municípios em que viviam para cozinhar em acampamentos.

Uma pesquisa realizada pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) em garimpos irregulares na Reserva Nacional de Cobre e Associados constatou que 36% dos trabalhadores entrevistados são analfabetos e 40% tem o ensino fundamental incompleto. Eles trabalham em média 60 horas por semana e recebem entre 20% e 30% do valor da produção do ouro. A maior parte dos ganhos fica na própria região, já que os produtos têm valores elevados, uma vez que são trazidos por meio de aviões e barcos.

Ainda que algumas operações de combate ao garimpo ocorram no Sul do Amazonas, existem áreas de difícil acesso e de perigo iminente. Um estudo coordenado pela pesquisadora do Imazon, Jakeline Pereira, e por agentes da Secretaria Estadual do Meio Ambiente do Pará detectou que desde 2008 nenhum funcionário do governo entrou nas áreas protegidas da Floresta do Paru e na Reserva Biológica Maicuru.

Há quase uma década, a região não viu a presença do Estado. Desde então, a exploração se intensificou. Na época, havia cerca de mil garimpeiros nos dois locais. Hoje, a partir de estimativas feitas pela quantidade de vôos para garimpeiros que saem do município de Laranjal do Jarí, no Amapá, acredita-se que dois mil trabalhadores atuem nas áreas.

Para o professor do Instituto de Ciências Biológicas da Ufam, o Estado deveria oferecer condições de trabalho no garimpo dentro das leis. “Garimpeiros são trabalhadores que precisam sobreviver, mas se submetem a condições muito piores do que as impostas às mineradoras”, diz Arruda.

Isso porque, segundo ele, gigantes da mineração negociam autorizações e condicionantes e rapidamente conseguem a garantia de um negócio lucrativo. “Seria necessário transformar o garimpo em uma atividade sustentável do ponto de vista econômico.”

Além dos problemas sociais, a extração de minérios provoca uma série de doenças. Um estudo recente realizado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA), mostra que a contínua invasão ilegal de garimpeiros no território Yanomami tem trazido graves consequências à saúde.

Algumas aldeias chegam a ter 92% das pessoas examinadas contaminadas por mercúrio – substância utilizada na extração do ouro. “O erro que se comete é acreditar que o mercúrio polui somente o curso das águas. O metal se volatiza, sobe para a atmosfera e volta para a terra com as chuvas”, diz Arruda. “Ele se insere nas cadeias alimentares dos peixes e, consequentemente, das pessoas que consomem esses alimentos.”

Altamente tóxico, ele causa danos permanentes, como alterações no sistema nervoso central, problemas cognitivos e motores, perda de visão e doenças cardíacas. Todas essas consequências brutais ficarão ainda mais explícitas com a nova onda de conflitos protagonizada por garimpeiros irregulares. O Estado falha em não oferecer políticas públicas e fiscalização preventiva em áreas protegidas. Faltam equipes, recursos e políticas para que o garimpo irregular, tão presente em décadas passadas, não continue um problema latente no futuro.

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