Congresso Nacional retoma suas atividades nesta semana com uma pauta carregada de temas polêmicos. Na Câmara dos Deputados, o projeto de lei que tipifica o crime de terrorismo é prioridade na pauta. Está para ser votado em regime de urgência. Os deputados deverão decidir se o projeto que saiu do Senado será aprovado e remetido para a sanção da presidente Dilma Rousseff.
Ou se manterão um texto aprovado anteriormente pela Câmara com base no projeto original do Executivo. A diferença fundamental entre os dois textos se refere a uma cláusula.
O texto aprovado inicialmente pela Câmara excluía expressamente "a conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria e profissional" de enquadramento na lei.
O artigo foi retirado no Senado, que o considerou redundante e um subterfúgio que poderia enfraquecer a aplicação da lei. Nas páginas seguintes, o senador Aloysio Nunes (PSDB-SP) e o deputado Paulo Pimenta (PT-RS) expõem suas divergências sobre o projeto.
SIM – A lei antiterrorismo é desnecessária e abre brechas para a criminalização antidemocrática da liberdade de expressão.
Projeto de Lei nu 2016/2015, que cria o crime de terrorismo no Brasil, está trancando a pauta da Câmara dos Deputados. E o quarto item de prioridade na agenda legislativa. A justificativa mais mencionada nos debates é que a suposta necessidade da matéria seria decorrente de um tratado internacional. Trata-se, porém, de um mito.
Esse tratado não existe. Há, sim, recomendações do Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI) e do Conselho de Segurança da ONU para que os países criem mecanismos que coíbam o financiamento de organizações terroristas – o que é bem diferente de estabelecer um crime específico definindo terrorismo. O Brasil já possui a legislação necessária. Somos signatários da Convenção Internacional para a Supressão do Financiamento do Terrorismo, incorporada pelo Decreto 5.640/2005.
Além do decreto, a Lei 12.850/2013 – a Lei das Organizações Criminosas – já se aplica às organizações terroristas internacionais cujos atos de suporte ao terrorismo ocorram em território brasileiro (Artigo lº, § 2°, II). Ou seja, os mecanismos usados em famosas operações como a Zelotes e a Lava Jato podem ser aplicados às organizações terroristas: colaboração premiada; afastamento dos sigilos financeiro, bancário e fiscal; infiltração, por policiais, em atividade de investigação; cooperação entre instituições na busca de provas etc. Todos esses instrumentos são disponíveis para investigar e punir as organizações terroristas internacionais e o respectivo financiamento.
Se o Brasil já tem essa normativa, de onde vem o mito da necessidade da nova lei? Provavelmente por conta de uma das 40 recomendações, a Recomendação VIII, que segundo o GAFI é cumprida apenas por Bélgica, Egito, Itália, Tunísia e Estados Unidos – apenas cinco dentre 159 países avaliados.
O texto diz que as organizações sem fins lucrativos são particularmente vulneráveis a ser usadas para o financiamento do terrorismo e que devem ser alvo da atenção estatal. O cumprimento integral dessa recomendação levou aqueles cinco Estados a adotar mecanismos que restringem a ação de movimentos sociais e a livre manifestação.
E o que diz o Statewatch, organização civil formada por advogados, acadêmicos e jornalistas de 18 países. E esse cerceamento do exercício dos direitos constitucionais à liberdade de expressão e de participação política que queremos estabelecer em nossa legislação?
Mesmo com a imensa maioria dos governos não atendendo à Recomendação VIII, o Gafi não puniu nenhum entre as dezenas de membros nessa situação. A Alemanha, por exemplo, não criou o crime de terrorismo nem foi sancionada em decorrência disso. Tampouco algum país foi rebaixado por agência de risco por não ter tipificado o terrorismo.
O PL 2016/2015 é desnecessário não só pela inexistência de tratado internacional que peça a tipificação do terrorismo. A proposta também não contribui com mecanismos novos a fim de coibir o suporte a esse tipo de organização. O que o PL faz é definir como crime condutas que já são punidas pela legislação brasileira.
Por exemplo: uso, posse e transporte de explosivos (Artigo 16, III, IV, V e VI da Lei 10.826/2003), incêndio (Artigo 250 do Código Penal) e atentado contra a vida (Artigo 121, § 2°, III, do Código Penal}. Assim, se uma pessoa entra no Brasil com artefatos explosivos a fim de cometer um ataque, a polícia tem todos os instrumentos de investigação e de colaboração disponíveis para investigar e reprimir esse ato.
À criação de um tipo penal de terrorismo não faz a menor diferença nesse sentido. O projeto é desnecessário também porque a legislação antiterror não é capaz de inibir os atentados. Aprova disso é o lamentável exemplo da França, que desde 2006 possui previsões penais do crime de terrorismo e que nem por isso pôde evitar os episódios contra os cartunistas da revista Charlie Hebdo e os frequentadores da casa noturna Bataclan.
Tipificar o terrorismo não é só desnecessário; é também perigoso. A definição de um crime precisa ser muito precisa e objetiva; precisa prever condutas claramente identificáveis, e não é esse o caso.
As expressões usadas para definir terrorismo estão relacionadas a sua motivação (como religiosa, racial ou política) e a sua finalidade (causar pânico ou terror). Ou seja, usam-se intenções subjetivas, o que abre um espaço imenso para toda sorte de interpretação por parte dos agentes policiais e do sistema de justiça.
Hoje são duas as versões do projeto, uma da Câmara e outra do Senado. A Câmara, agora, dará a palavra final sobre qual dos textos deve prevalecer. O texto do Senado é pior no sentido de que ele inclui "extremismo político" como um dos elementos a caracterizar o ato terrorista – o que pode significar uma janela direta para a criminalização antidemocrática da liberdade de expressão.
Por outro lado, a proposta da Câmara expressamente prevê que ações reivindicatórias não podem ser consideradas crime. Isso, entretanto, não garante como a lei será interpretada. Não poderia um delegado interpretar – ainda que erroneamente – que a lei antíterrorismo abriga as ações incisivas, porém legítimas e compatíveis com o estado democrático de direito, do Movimento Passe Livre ou de professores em greve? Como a presidente Dilma salientou quando ocorreram os últimos atentados em Paris, as redes terroristas não operam no Brasil.
Assim, aqui a legislação fatalmente será usada de modo a inibir direitos civis e políticos, e isso não é um problema apenas nacional. A Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Estado chileno por uso abusivo de sua lei de terrorismo, calcada em estereótipos e preconceitos.
Por todas essas razões, organizações e intelectuais se manifestaram contra a proposta. Noventa entidades da sociedade civil apresentaram manifesto contra a tipificação do terrorismo. O Conselho Nacional de Direitos Humanos aprovou resolução sobre o tema, pedindo que o projeto fosse arquivado. Quatro relatores especiais da ONU também expressaram preocupação quanto ao projeto de lei brasileiro.
O terrorismo deve ser combatido, mas a criação de um crime específico para isso não é o caminho. Tanto que, dos 193 países da ONU, apenas 18 definiram o terrorismo como um crime específico – todos vítimas de algum ataque de caráter internacional.
Se aprovarmos essa lei, seremos o primeiro país que não sofreu um atentado com essas características a ter criado esse crime esdrúxulo. Se a lei for aprovada, o Brasil não estará mais protegido com a criação dessa lei; os movimentos sociais, entretanto, estarão mais vulneráveis perante ela, diante da possibilidade de criminalização de lutas sociais legítimas.
Em tempos de uso frequente do sistema penal como instrumento de persecução política, não podemos abrir uma janela legislativa para mais arbitrariedades. Temos ainda muito que caminhar na efetivação dos direitos fundamentais no Brasil; precisamos avançar, e não retroceder nesse desafio.
NÃO – A proposta de lei antiterrorismo jamais teve qualquer abertura para o entendimento de que manifestação social seja ato terrorista.
Sempre que se discute a criação de uma lei de combate ao terrorismo, surge um estrondoso ruído que impede a clareza do raciocínio e a lucidez do debate e acaba por lançar sombra sobre uma equivocada e covarde omissão do Estado brasileiro.
Apesar do compromisso soberano lançado na Constituinte e dos inúmeros tratados internacionais firmados, até hoje não se criminalizou o terrorismo nem se instrumentalizaram as forças policiais com um sistema penal de repressão e investigação de atos terroristas.
Um dos mais recentes tratados assinados pelo Brasil, inclusive, foi objeto de decreto em setembro de 2015. Dispunha de resolução da Organização das Nações Unidas (ONU) que obriga os Estados-membros a coibir o terrorismo.
No cerne dessa questão está a falácia da criminalização dos movimentos sociais. A luta contra o terrorismo é uma luta transnacional, que mobiliza todo o sistema de inteligência do Brasil.
Esse tipo de crime pode ter praticantes no país, mas não em qualquer manifestação. Embora haja evidentes excessos de vandalismo em protestos, como os registrados em São Paulo, no início de janeiro deste ano, não se podem banalizar atos terroristas.
Nos dias 9, 12 e 14 de janeiro, black blocs enfrentaram a polícia e depredaram estações de metrô durante manifestações contra o reajuste da tarifa de ônibus, trens e metrô na capital paulista, Isso é terrorismo? Não. Já existe lei para esse tipo de excesso em protestos. Deveriam ser mais rigorosas? Sim, penas poderiam ser agravadas, mas não é correto caracterizar vandalismo ou depredação como terrorismo.
O PT queria que houvesse na definição do crime de terrorismo uma exceção a quem cometesse ato terrorista com razão altruísta. Que esse criminoso não estivesse sujeito à sanção da lei. Uma espécie de terrorismo do bem, ou seja, pode jogar uma bomba, causar pânico, desde que tenha um objetivo maior.
O que é um absurdo. Por essa razão, excluí essa benesse petista do projeto do qual fui relator, aprovado no Senado Federal, em outubro passado, e enviado à Câmara dos Deputados.
Aliás, a proposta de lei antiterrorismo jamais teve qualquer abertura para o entendimento de que manifestação social seja ato terrorista. Quando se define uma conduta penal, se diz quais são os elementos dessa ação que o Estado punirá caso o cidadão a pratique.
É a chamada criminalização da ação. E assim foi feito. Houve o cuidado de prever não somente um elemento, mas quatro — e todos concomitantes. Ou seja, na ausência de um deles, a ação pode até ser entendida como uma violência, talvez mesmo algum tipo já previsto na lei penal, mas não será processada como crime de terrorismo.
São eles: atentar contra pessoa, mediante violência ou grave ameaça, motivado por extremismo político, intolerância religiosa ou preconceito racial, étnico, de gênero ou xenófobo e com objetivo de provocar pânico generalizado.
O projeto de lei, inclusive, incluiu uma definição específica para "extremismo político": atentar gravemente contra a estabilidade do Estado democrático, com o fim de subverter o funcionamento das instituições. Nesse particular, a lei proposta, ao definir o "extremismo político", determina espécie de excludente, pois expurga do tipo toda ação radical por motivo político que não esteja relacionada ao fim de atentar à democracia.
Por fim, não bastam o ataque violento e a motivação antidemocrática, intolerante ou preconceituosa para configurar o crime de terrorismo. É preciso a finalidade material e objetiva de provocar o "pânico generalizado", ou seja, contra número indeterminado de pessoas.
Então, adota-se o método de tipificação de terrorismo de acordo com o ditado pela Constituição Federal e pela perspectiva dos direitos humanos, unindo para a descrição o ato concreto, o meio violento, a motivação subjetiva e a finalidade objetiva que atentam à dignidade humana e à democracia.
Portanto, do crime de terrorismo, e do pânico generalizado por ele causado, excluído está o distúrbio ou tensão decorrente de manifestação pública que vise defender direitos, garantias e liberdades constitucionais, sem prejuízo de outra tipificação penal contida em lei. O que é óbvio: essa situação decorre de reivindicação democrática, e não de atentado às instituições democráticas.
Uma das máximas do roteiro legislativo está fundada na ideia de que a lei não contém palavras inúteis. Com efeito, no intrincado jogo de palavras dos códigos penais, cada vírgula, cada letra e cada acento fazem diferença tendo em vista o princípio constitucional da reserva legal. E por uma razão muito simples: as leis penais lidam com o que o ser humano tem de mais precioso: sua liberdade.
Por isso, não cabem interpretações extensivas de normas penais e analogias prejudiciais ao réu. Por outro lado, mudanças legislativas posteriores que agravam crimes ou penas não alcançam réus de processos em curso, mas, quando benéficas, aplicam-se mesmo na execução da pena.
Ora, o sistema penal não é esse livro de colorir que muitos propagam para desconstruir trabalhos sérios, que são feitos às claras e democraticamente. Há princípios, regras, normas bem concatenadas, que pautam a atuação do juiz, do promotor, delegado, defensor público e advogados.
Mas não é isso o que estão a dizer por ai. Quando não escondidos pelo anonimato de blogs e sites ideologicamente comprometidos, passam a ostensivamente propagar desinformação, confundindo a população. Nada disso contribui para o debate.
Ainda assim, o Senado teve a coragem de enfrentar a questão. Cumpriu seu papel. Foi um debate célere, mas não se sonegou nenhum aspecto dessa discussão. Se, por um lado, na ausência de qualquer dos quatro elementos do tipo penal previsto na lei de terrorismo, o cidadão não poderá ser processado como terrorista, por outro lado, na presença concomitante dos quatro elementos, nem mesmo uma pretensiosa alegação de protesto político ou por movimento de causas sociais o livrará da lei antiterrorista.
Isso porque não se pode admitir que esses dois valores— de um lado, o horror, de outro lado, a reivindicação social ou política – possam sequer ser filosoficamente comparados, quiçá juridicamente. Na verdade, é absolutamente inaceitável que alguém possa minimamente conceber que possa haver movimentos sociais reivindicatórios com ares de atentado, terror, pânico generalizado.
Nossa Constituição Federal funda-se na ordem e na paz social. E se, de fato, não há movimentos sociais praticantes de atos terroristas, o que temem afinal os opositores a uma lei antiterrorismo? Esses manifestantes jamais poderão ser processados por crimes de terrorismo, porque assim diz a proposta de lei. Nada impede, porém, que respondam por outros atos e prejuízos que causarem.
É preciso deixar claro de vez por todas: nossa sociedade é pacífica e assumimos um compromisso internacional de não apenas convivermos em harmonia com outras nações, mas ajudarmos no combate ao terror.