Eugênio Moretzsohn
Especialista em Inteligência e Segurança
coronelmoretzsohn@gmail.com
As manifestações populares pelas ruas do Brasil deveriam produzir efeito imediato em governantes e autoridades públicas, tal o grito de insatisfação das pessoas indignadas com a evidente falência dos “múltiplos órgãos estatais e morais” que vem progressivamente assolando o país, notadamente nos últimos 10 anos.
Concordemos ou não, é inegável que uma grande virtude da democracia é possibilitar demonstrações de descontentamento, apesar dos transtornos advindos das grandes concentrações de manifestantes, das paralisações dos serviços e da circulação viária nos horários de maior visibilidade (rush).
O problema piora muito quando, a reboque da cidadania, surgem os terroristas urbanos, depredando os patrimônios público e privado, agredindo passantes e reagindo à ação policial repressora.
Cobrindo os rostos com balaclavas e capacetes de motociclistas para impedir sua assinalação por câmaras de segurança, os facínoras agem sempre em bandos, empregando violência máxima contra vitrines de lojas, estabelecimentos bancários, equipamentos urbanos, automóveis e utilitários diversos, prédios públicos e até igrejas. Em poucos minutos de fúria, dispersam-se na multidão com a qual se confundem, negando-se, obviamente, ao confronto com os policiais.
Existem maneiras de combater esse tipo de ação criminosa, típica da guerrilha urbana, e uma delas é contratar seguranças armados que aguardem, de tocaia, do lado de dentro das lojas e bancos, esperando que as vidraças sejam arruinadas para, in extremis, abater a tiros os manifestantes que ingressem nas dependências. Radical? Podem anotar: quando as companhias de seguro não cobrirem mais os prejuízos, quando a polícia não mais se impuser como fiadora da ordem, os interesses econômicos terminarão por prevalecer sobre a já combalida tolerância, os prejudicados se organizarão movidos pela ausência de autoridade e falará mais alto a “lei de Colt” (Abraham Lincoln fez os homens livres, mas Samuel Colt tornou-os iguais).
Outra maneira de agir, mais republicana, reconheça-se, é colorindo com tintas reflexivas os baderneiros, permitindo sua localização posterior. Existem tintas com compostos em nanotecnologia que não descolorem antes de decorridas semanas, são atóxicas e grudam nos cabelos, pele, roupas e até nas vias áreas superiores (quando inaladas).
Os pintados podem ser encontrados por visão noturna e outros sinais localizadores, como os odores exalados. Até mesmo suas roupas nos varais podem ser detectadas em sobrevoo por helicópteros dotados de sensores calibrados. Existem outras opções desprovidas de pudores ocidentais, como as usadas pelas tropas de contrainsurgência do MVD, da ex-URSS, que provocam coceira alérgica tão forte que os atingidos teriam de procurar socorro hospitalar, momento em que seriam identificados. A dificuldade operacional evidente é dispersar o composto sobre as pessoas certas.
A maneira mais indicada de tratar esse problema seria por meio da indignação dos próprios manifestantes ordeiros que, literalmente, sufocariam com sua esmagadora maioria os bandidos quando estes começarem a mostrar as unhas. O problema prático é que as pessoas não querem o confronto, inevitável em atitudes assim. Há também aspectos legais – atos criminosos devem ser reprimidos pela polícia, não pela população.
O fato é que cabe ao Estado engaiolar esses abutres urbanos, e uma maneira eficaz de fazê-lo são as operações de inteligência. Elas compreendemo emprego de ações especializadas, executada de forma planejada e sigilosa, para a captura de informações não disponíveis e na consecução de resultados especiais, todos de elevado interesse do Estado. Para tal, utilizam-se algumas técnicas operacionais bem conhecidas das unidades secretas: a infiltração tática, a vigilância, a fotografia velada e a estória-cobertura.
Comecemos pela estória-cobertura (EC): ela existe para criar uma justificativa para o agente assemelhar-se ao marginal em gestos, comportamentos, vocabulário, atitudes e aparência, atributos imprescindíveis para sua segurança e para o sucesso da missão. Criada com imaginação, verossimilhança e flexibilidade, permite a permanência do infiltrado em momentos e locais onde sua presença fardada seria inadmissível.
Os agentes são treinados por atores contratados e passam a vivenciar o mundo de seus personagens: nomes e vidas fictícias, biografia resistente a investigações, documentos criados para dar sustentação a essa estória de proteção. Com a EC, será possível permanecer e relacionar-se com os meliantes até um momento propício à abordagem e à detenção, possivelmente depois da dispersão dos manifestantes.
A fotografia velada será essencial para registrar indícios e tentar materializá-los em provas. Atualmente, existem incontáveis opções de microcâmaras disfarçadas em canetas, óculos, botões de jaqueta, fivelas, chaveiros, relógios de pulso e colares. Mesmo em condições de pouca luminosidade, algumas armazenam até 3 horas de filmagem em 8 gigabytes de capacidade. Imagens nítidas e com bom áudio, comprometedoras até a medula, fazem a delícia de delegados e promotores. Imagens capturadas em locais públicos não necessitam de prévia permissão judicial, apenas da necessária certificação de autenticidade por perícia posterior.
A vigilância é a técnica que permitirá seguir e acompanhar os meliantes durante suas ações e até o momento certo para sua captura. Agentes treinados são tão invisíveis quais “chicletes secos no asfalto”, pois se disfarçam de baderneiros falsamente enfurecidos e operam apoiados por outros agentes caracterizados de moto-boys, mendigos, catadores de latinhas, transeuntes e garis, sendo capazes de seguir e acompanhar seu(s) alvo(s) sem ser percebidos. Quando o momento propício se avizinha, retiram-se tão discretamente como permaneceram.
Se necessário para conferir credibilidade, terminam sendo detidos junto com a massa e chegam a “tocar o piano” na delegacia para disfarce de intenção. A tecnologia favorece a moderna vigilância: inserir sorrateiramente um dispositivo na mochila de um baderneiro, espetando uma geringonça menor que uma pen-drive, poderá levar as autoridades diretamente à área onde se reúnem, acompanhando tudo a distância numa solução eficiente que usa o Google Maps.
A infiltração é a cereja do bolo das técnicas operacionais. É, sem dúvida, a de maior desafio e riscos. É amparada nas leis 9.034, de 3 de maio de 1995, e 10.217, de 11 de abril de 2001, as quais, embora pouco ambiciosas, enxutas e visivelmente desconfortáveis, procuraram dar sustentação jurídica a uma técnica usada por forças legais de democracias muito mais antigas e consolidadas que a nossa.
A omissão do legislador brasileiro terminou criando um arremedo de solução que não ajuda muito a aplicação do instituto da infiltração policial. Digna amostra da qualidade de nossos legisladores, os quais, como sabemos, são os parlamentares eleitos com o nosso voto.
Alguns trechos dessas leis permito-me comentar, rogando pela compreensão dos caros leitores do Defesanet por me faltar a erudição dos bacharéis em Direito:
–…infiltração por agentes de polícia ou de inteligência, em tarefas de investigação, constituída pelos órgãos especializados pertinentes, mediante circunstanciada autorização judicial.
Ao limitar a ação aos órgãos especializados, o legislador certamente procurou assegurar-se que a infiltração é uma operação complexa e que comporta riscos de morte para o infiltrado; portanto, precisa ser levada a cabo por pessoal muito qualificado. De fato, não é trabalho para amadores.
Didaticamente, as infiltrações podem ser divididas em 2 categorias: as light cover e as deep cover. Na primeira, o infiltrado não passa a habitar o meio criminoso, mas somente mantém contatos esporádicos com os meliantes. As habilidades que ele deve possuir em conquistar e manter relacionamentos em ambiente hostil são importantes para a produção de resultados.
Os perigos existem, pois, justamente pelo fato de não estar profundamente infiltrado o policial pode cometer erros e colocar em risco sua segurança e a de seus familiares. Uma foto fardada na Internet pode redundar num desastre, no caso de um meliante reconhecer nela o agente.
As deep cover exigem imersão no seio do inimigo, abandono das origens familiares e empregatícias e perda de contato total com a superfície. Somente o controlador e a equipe de apoio têm ciência da poucas e seguras formas de contatar o infiltrado, mediante códigos, datas e sinais pré-convencionados. Por estar intestinamente colocado no organismo, o agente tem, necessariamente, de se comportar de forma convincente e esta é a forma mais efetiva de levantar as entranhas dessas estruturas e sabotá-las de forma terminal.
Voltemos às leis:
..define e regula meios de prova e procedimentos investigatórios que versem sobre ilícitos decorrentes de ações praticadas por quadrilha ou bando ou organizações ou associações criminosas de qualquer tipo.
Portanto, estão perfeitamente enquadrados como alvos passíveis de operações de infiltração os bandos de baderneiros que vilipendiam a cidadania durante as manifestações pacíficas.
A lei também trata do sigilo imperioso que envolve tal operação:
Parágrafo único. A autorização judicial será estritamente sigilosa e permanecerá nesta condição enquanto perdurar a infiltração.
Neste trecho, percebe-se a preocupação com o controle e o coloca em mãos exteriores à organização policial (promotor ou juiz):
…ação controlada, que consiste em retardar a interdição policial………..desde que mantida sob observação e acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento mais eficaz do ponto de vista da formação de provas e fornecimento de informações;
A lei é omissa ao não estabelecer o amparo ao agente público que, no exercício do cargo e no fragor da atividade, seja compelido a cometer ato criminoso para justificar sua estória de proteção; porém, ao submeter tal operação ao controle de um promotor ou magistrado, os parâmetros de atuação (escopo da missão) do agente terão de ficar claros, a fim de que ele não seja, posteriormente, enquadrado como transgressor. Sobre esse sensível detalhe, tomo a liberdade de sugerir aos leitores consultar o esclarecedor artigo do Dr Marcelo Batlouni Mendroni, intitulado “Agentes Infiltrados x Ação Criminosa”, disponível no www.ambito-juridico.com.br.
Agentes que atuam a favor da sociedade em risco quase permanente de ser desmascarados e, talvez, torturados e mortos, precisam da total proteção dos organismos onde estão lotados (ainda que a distância nos casos de infiltrações profundas), e também dos meios de comunicação, evitando a exposição de seus rostos e outras formas de identificação. Importante revista semanal cometeu um equívoco ao publicitar uma foto que retrataria um agente do serviço reservado da Polícia Militar do Rio de Janeiro (PM-2), que atuava sigilosamente no meio dos baderneiros que tentavam criar um clima de terror durante a visita do Papa Francisco.
Ainda que as redes sociais tenham fartamente divulgado a mesma foto, inclusive revelando que uma prosaica pulseirinha de couro no pulso direito era o sinal de reconhecimento que identificaria o agente perante os demais policiais, muitas pessoas acabaram tomando conhecimento de detalhes lendo a revista.
Não custava ter rasurado a face do militar, preservando-o, no mínimo, de constrangimentos e até de ameaças. Nos EUA, a maior democracia do mundo, personalidades influentes foram processadas por divulgar a identidade de Valerie Plame, então agente da CIA, no episódio que passou a ser conhecido como “Plamegate”. O Brasil ainda engatinha no amadurecimento de suas instituições. Temos, mesmo, muito a aprender se quisermos deixar de ser o eterno país do amanhã.