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A Guerra por trás das grades

Mateus Coutinho

A tarde começou agitada no primeiro dia do ano na Colônia Agroindustrial de Aparecida de Goiânia, em Goiás, onde ficam os presos que cumprem pena no regime semiaberto no estado. Situada no centro do complexo, a ala C, dominada pela facção paulista Primeiro Comando da Capital (PCC), começava a se movimentar.

Nela amontoavam-se 388 detentos em 12 celas. É a maior ala do presídio. A insatisfação dos detentos após quatro dias sem água serviu de estopim para que as duas maiores organizações do país, PCC e a carioca Comando Vermelho (CV), protagonizassem mais um capítulo da sangrenta briga por território que se estende há mais de ano na esteira da omissão dos governos.

Por volta das 14h30, sob o efeito de drogas e portando facas e armas de fogo, os detentos da ala, dominada pelo PCC, se reuniram e rumaram para a ala B, mais identificada com o Comando Vermelho, onde ficavam 180 detentos.

O atalho para chegar à ala vizinha, separada por um muro e um portão de grade, foi um buraco aberto na parede da cela de um dos detentos, cavado há dias. A cena foi seguida por tiros, ataques e agressões que tinham alvos definidos: os membros do Comando Vermelho nas alas A e B.

As cenas de brutalidade que se seguiram foram gravadas por celulares dos próprios detentos em vídeos que remontam às rebeliões ocorridas antes em Roraima, Amazonas e Rio Grande do Norte.

Detentos protagonizavam ataques brutais de facas e até machado, queimavam colchões e depredavam geral, tudo com as saudações ao PCC. Em outros, celebravam decapitações, em meio a vísceras esparramadas pelo local e até dependuradas na cerca do presídio.

Por volta das 16 horas o Grupo de Operações Penitenciárias Especiais (GOPE), uma espécie de tropa de choque da segurança penitenciária no estado, com apoio do Batalhão de Choque da Polícia Militar, conseguiu retomar o presídio, e os bombeiros controlaram as chamas.

O estrago feito: dois decapitados, sete mortos no incêndio (todos do Comando Vermelho) e 14 feridos, além de três armas de fogo apreendidas (um revólver 38 e duas pistolas 9 mm), 15 facas e 200 gramas de cocaína.

A tragédia na Colônia Agrícola de Aparecida de Goiânia, com base em relatos de agentes, detentos, familiares e investigadores, era mais que esperada e consequência de uma briga por território entre os dois grupos criminosos que controlam o tráfico.

Desde outubro de 2016, o CV se uniu a organizações criminosas locais – como Família do Norte, no Amazonas, e Sindicato do Crime, no Rio Grande do Norte (ver o mapa) – para enfrentar o PCC. A reportagem teve acesso a um mapeamento dos órgãos estaduais que mostra que, de janeiro a dezembro de 2017, o número de detentos ligados ao PCC no estado disparou de 40 para 700.A facção está presente em cerca de 80% dos 137 presídios de Goiás e chega até a fazer conferências semanais por telefone com todos eles. O estado é estratégico para o tráfico por uma questão logística: além de estar literalmente no centro do país, facilitando a distribuição para qualquer região, fica próximo de Brasília, um importante mercado para o tráfico devido à alta renda de seus moradores, além de ser utilizado também na rota internacional, distribuindo drogas que vêm de países vizinhos como o Paraguai. A articulação da quadrilha contrasta com a desorganização e má gestão do sistema penal abarrotado em Goiás, não muito diferente do resto do país.

Na hora do massacre em Aparecida de Goiânia, havia apenas cinco agentes penitenciários no local para cuidar dos 721 detentos que estavam lá – 388 da ala C, dominada pelo PCC. Diante da proporção, muito abaixo da recomendação internacional de um agente para cada cinco detentos, os próprios funcionários sugeriram aos presos que não estavam envolvidos no conflito que deixassem a prisão, rodeada por um matagal e próxima a uma região industrial do município.

Segundo relatório da Secretaria de Segurança Pública de Goiás, 207 detentos seguiram a recomendação dos agentes e fugiram para o entorno do local, mas retornaram tão logo a tropa de choque da Polícia Militar retomou o controle, por volta das 16 horas do dia da rebelião.

Outros 106 presos, porém, aproveitaram a oportunidade para fugir. Nesse grupo estava o filho da aposentada Sônia, de 55 anos (ela não quis se identificar com o sobrenome), que foi recapturado no mesmo dia, assim como outros 28 detentos.

Na última vez que Sônia visitara o filho, em 31 de dezembro, o rapaz adiantou para a mãe o que estava por vir: “Mãe, vai ter invasão aqui, a turma da ala C vai invadir nós (sic)”, relatou. Sônia era uma das dezenas de familiares que passaram os primeiros dias do ano sem saber se seu parente preso estava vivo, ferido ou foragido.

Dois dias após o motim que chocou o país, uma mulher loira era uma das cinco pessoas atrás de informações sobre detentos no balcão de entrada da Colônia Agroindustrial. Abalada após ouvir dos agentes do presídio que seu marido não estava lá, ela começou a caminhar de um lado para o outro.

Foi para um canto, em uma parede na lateral da recepção, para falar ao telefone. “Meu marido é esperto, ele não ia se machucar”, afirmava aos prantos. Abordada pela reportagem, que presenciou a cena, ela não quis dar entrevista.

Ricardo Cristiano Lima, de 29 anos, foi um dos detentos que retornaram espontaneamente à prisão. Por volta das 16 horas da quarta-feira, o detento chegou à Colônia Agrícola para se entregar. Ferimentos em seu corpo, provocados por pedradas, exibiam nele a marca da ação do PCC.

Ricardo ficava na ala A e fugiu no dia do motim. Correu pelo vasto matagal que circunda a penitenciária até chegar a uma favela próxima. “Me escondi em uma casa e fiquei esperando”, contou. Retornou à prisão com sua advogada e só se apresentou após ter a garantia de que seria transferido para a Penitenciária Coronel Odenir Guimarães (POG ), para onde foram mandados os presos sem relação com a briga.

A origem da rebelião remonta a fevereiro do ano passado, quando um dos maiores traficantes do estado morreu em uma briga de gangues na POG. Thiago César de Souza, então com 32 anos, era ligado ao PCC. Sua morte desencadeou uma reação do grupo criminoso, que passou a se expandir e ocupar o espaço que era do Comando Vermelho, acirrando o clima nos presídios.

Segundo investigadores, as práticas adotadas pelas lideranças do grupo nos presídios têm sido a extorsão e a ameaça, com a promessa de garantir proteção ao preso e a seus familiares, moeda de troca irrecusável para os detentos. Ainda assim, o Comando Vermelho também tem mostrado sua força.

Cinco dias antes do episódio em Aparecida, membros do CV decapitaram um integrante do PCC no presídio do município de Jaraguá, no interior do estado. O caso ainda está sob investigação da Polícia Civil. O Comando Vermelho tem mantido força nas cidades localizadas nas fronteiras do entorno do estado, enquanto o PCC se concentra na região central, mais próxima do Distrito Federal.

Somente na noite de quarta-feira o governo do estado admitiu que a rebelião em Aparecida foi devido ao confronto das duas facções. Ainda assim, até a noite de quinta-feira, as autoridades não puniram e nem retiraram da Colônia os detentos da ala C.

Foram transferidos apenas os das alas A e B. Para tentar apaziguar os ânimos, a Justiça ainda autorizou temporariamente os detentos que trabalham durante o dia a não retornar à noite para dormir – mesmo sem tornozeleiras eletrônicas.

A situação em todo o estado, porém, continua prestes a explodir. Na noite da quinta-feira, dia 4, houve uma nova tentativa de rebelião dos detentos da ala C. Na madrugada da sexta-feira, dia 5, foi a vez de a POG registrar um princípio de motim.

A maior preocupação das autoridades agora são os presídios do interior, que não contam com a estrutura do choque e das tropas especiais da PM para agir rapidamente e controlar motins. O secretário de Segurança Pública de Goiás, Ricardo Balestreri, afirmou na sexta-feira que mapeou articulações de aproximadamente 20 rebeliões no estado. Nenhuma se concretizou.

O diretor-geral de administração penitenciária, Edson Costa, afirmou que vai transferir presos para tentar desarticular as rebeliões. Uma inspeção dias antes, por determinação da presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Cármen Lúcia, havia constatado que os agentes não controlam a situação do presídio de Aparecida.

A disputa sangrenta em Goiás é apenas mais um capítulo no previsível avanço do crime organizado nas cadeias e fora delas. As duas grandes facções passam por um processo de consolidação do poder no Brasil todo, à sombra da omissão das autoridades que não assumem um plano estratégico de âmbito nacional. Enquanto cada estado tenta conter a ameaça sozinho, o Brasil se vê cada vez mais refém de grupos bem estruturados e sem escrúpulos.

A improvisação não derrota o crime¹

No filme O feitiço do tempo, de 1993, um dos clássicos do cinema do século XX, o protagonista, vivido pelo ator americano Bill Murray, é um repórter de TV, especializado em cobertura de meteorologia, que revive o mesmo dia várias e várias vezes, como se estivesse aprisionado pelo tempo.

Quando se trata da crise da segurança pública, os brasileiros têm a mesma sensação de estar encapsulados num tempo que nunca avança para o amanhã. Este 2018 começou como 2017, com massacres em presídios decorrentes da disputa entre facções criminosas que, dentro das penitenciárias, brigam pelo controle de lucrativas rotas de tráfico.

Em 2017, nos primeiros 14 dias do ano, os massacres em presídios deixaram 123 mortes em estados do Norte e do Nordeste do país. Em 2018, a escala da matança tem sido, até aqui, menor – nove mortes e 14 feridos num presídio de Goiás. Mas a repetição das cenas bárbaras de detentos celebrando decapitações de rivais é a confirmação de que os mesmos problemas se repetem ano a ano sem que se vislumbrem soluções para eles.

Um dos massacres de 2017 aconteceu na penitenciária de Alcaçuz, no Rio Grande do Norte, que terminou com 26 mortos. A guerra entre as facções criminosas dentro do presídio transbordou para as ruas de Natal, com ataques a ônibus e veículos oficiais.

Um quadro semelhante de anomia se verificou nos últimos dias do ano, depois que os policiais militares e civis entraram em greve por falta de pagamento de salários pelo governo estadual. Em seguida à paralisação, houve uma explosão de mortes violentas no estado – muitas delas, com características de execuções encomendadas.

Uma situação parecida foi vivida pelos habitantes do Espírito Santo, em fevereiro, depois de uma greve policial por questões salariais. Tanto no caso capixaba como no potiguar, a solução emergencial foi a convocação das Forças Armadas para suprir a ausência das forças policiais nas ruas.

Foi a terceira vez, em menos de dois anos, que o Rio Grande do Norte recorre às tropas federais para manter a ordem pública. Como em outros estados para onde houve envio de tropas federais, o socorro de Exército, Marinha e Aeronáutica forneceu um alívio temporário.

Tal paliativo está longe de representar uma solução duradoura para a falência do sistema de segurança pública. Os militares não têm vocação nem treinamento para combater a delinquência. Expô-los ao confronto com os bandidos traz o risco da contaminação das Forças Armadas com os mesmos males da corrupção e da infiltração criminosa que acometem muitas polícias estaduais.

Para evitar a sensação de que estamos vivendo a mesma cena, repetida ano a ano, é preciso investir em ações estruturantes de longo prazo, que exigem planejamento e perseverança em sua execução. Isso vale para o Rio Grande do Norte, que sintetiza muitos dos problemas nacionais, para os outros estados e para a União. Sem a liderança do governo federal, na coordenação de esforços integrados das diferentes instâncias do poder público, continuaremos a patinar.

Uma visão estratégica para a segurança pública existe hoje apenas nos discursos das autoridades. Em janeiro do ano passado, logo após a crise dos presídios, o Ministério da Justiça, então sob o comando de Alexandre de Moraes, lançou, às pressas, um ambicioso plano com novas diretrizes federais. Foi a quarta versão, desde 2001, de uma política nacional para a área. No mês seguinte, Moraes deixou o ministério rumo ao Supremo Tribunal Federal.

Foi substituído por Osmar Serraglio, que ficou apenas dois meses no cargo. Hoje, o titular da Justiça é Torquato Jardim, e o destino do plano tem sido, até aqui, o mesmo de seus anteriores: a gaveta. Uma das metas do plano é a redução de 7,5% no número de homicídios dolosos no país.

Ele previa um programa-piloto em Natal, que seria expandido para as outras capitais. O piloto foi implantado, mas, como se viu nos últimos dias no Rio Grande do Norte, não alcançou resultado algum. Sobrou improvisação, faltou planejamento, na repetição de um velho enredo que castiga o país.

¹por Diego Escosteguy

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