José Casado
Aos 24 anos, rico e solteiro, Ali Hatem Barakat passou as últimas semanas entre praia, Copa e baladas noturnas em capitais do Nordeste, a mais de três mil quilômetros de distância dos negócios da família em Foz do Iguaçu e Cidade do Leste, na fronteira do Brasil com o Paraguai e a Argentina. As histórias dessas cidades se confundem com a dos Barakat, a saga de outros imigrantes sírio-libaneses e diáspora árabe depois da Segunda Guerra Mundial. Eles ajudaram a transformar a região da Tríplice Fronteira num mercado próspero e sempre conectado aos jogos de guerra do mundo árabe e islâmico.
Na tarde de sexta-feira 13 de junho, o jovem Barakat assistia em Salvador à goleada (5 a 1) da Holanda na Espanha, quando o governo do Paraguai anunciou a anulação de um título fundiário lavrado em seu nome. Segundo o documento, em outubro de 2012 o Estado paraguaio vendeu-lhe um "lote agrícola CH-92", do tamanho de um campo de futebol, por um punhado de dólares (US$ 1.200).
Na vida real, o clã Barakat recebeu um aeroporto em operação há cinco décadas, com pista sem asfalto e de um quilômetro de comprimento. Detalhe: situado a menos de cem metros da fronteira seca com o Brasil, e à margem da estrada Capitán Baldan-Pedro Juan Caballero, rota preferencial do comércio regular e do tráfico de drogas para o mercado brasileiro.
Se os Barakat não estivessem envolvidos, seria apenas mais uma história de esbulho agrário na fronteira com o Brasil, numa região onde o cultivo de soja e milho disputa espaço com a lavoura de maconha e as pistas clandestinas para cargas de cocaína. Afinal, a rotina de fraudes fundiárias transformou o Paraguai num país de dois andares.
O primeiro tem 406 mil quilômetros quadrados de extensão, reconhecidos pela cartografia internacional. O segundo andar é de papel, plasmado em falsas escrituras de propriedade. Elas ampliam o território paraguaio em 122 mil quilômetros quadrados – área três vezes maior que o Estado do Rio e onde caberia todo o Reino Unido.
O caso ganhou dimensão porque o líder do clã, Assad Ahmad Barakat, de 48 anos, está proscrito como um dos líderes do Hezbollah no Cone Sul. A fraude foi percebida por governos estrangeiros como concessão de um aeroporto na fonteira à organização política e paramilitar do Líbano.
Na vizinha Argentina, a Justiça do país considera demonstrada a participação de Barakat e de militantes locais do Hezbollah nos ataques terroristas contra a Embaixada de Israel (1992) e a Associação Mutual Israelita da Argentina (Amia, 1994). Acusou formalmente Sobhi Mahmoud Fayad, Farouk Abdul Omairi, Ali Khalil Merhi e Samuel Salman El Reda, entre outros parceiros de Barakat.
O Hezbollah nasceu como milícia xiita no Sul do Líbano, nos anos 80, sob patrocínio do Irã e da Síria. Floresceu como partido de ideologia islâmica na democracia multirreligiosa libanesa, sem renunciar às armas e à proposta de guerra santa contra Israel. É classificado como terrorista por Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, Austrália, Países Baixos, União Europeia, Filipinas e, naturalmente, Israel.
Cidadãos e empresas dessas regiões são formalmente proibidos de compartilhar negócios e atividades com Barakat, alguns de seus parentes, empresas e associados. As sanções se estenderam à União Europeia em julho e foram renovadas pelo governo australiano em novembro do ano passado.
Órgãos de segurança dos EUA o destacam em listas de terrorismo como "um dos mais proeminentes" integrantes da organização libanesa no continente. O Departamento do Tesouro o considera responsável pela manutenção de uma das "artérias financeiras" do grupo. Para ele, no entanto, é apenas reflexo da "grande ignorância do Ocidente sobre o mundo islâmico" – tem repetido isso desde desde 2004, quando foi condenado por evasão fiscal no Paraguai, que, como o Brasil, não tem legislação antiterror.
Os dois atentados no centro de Buenos Aires deixaram 114 mortos e mais de 600 feridos, num intervalo de 28 meses. O regime teocrático do Irã ordenou e o Hezbollah executou, de acordo com a mais recente investigação conduzida pelos procuradores argentinos Alberto Nisman e Marcelo Martínez Burgos. Eles passaram os últimos sete anos ouvindo testemunhas e reunindo informações disponíveis em Brasil, Estados Unidos, Israel, Paraguai, Chile, Colômbia, Inglaterra, França e Alemanha.
Identificaram o patrocínio do Irã na montagem de uma rede de radicais islâmicos, a partir de 1983, em Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Venezuela e Guiana. Encontraram vínculos entre personagens envolvidos tanto nos ataques na capital argentina, em 1992 e 1994, quanto no frustrado plano de 2007 para explodir o Aeroporto John F. Kennedy, em Nova York. O resultado está condensado em relatório de 502 páginas escrito por Nisman, procurador-geral de Justiça. Ele enviou cópia ao governo brasileiro no início deste ano.
Houve um roteiro comum nos ataques em Buenos Aires, na versão da procuradoria. A preparação aconteceu na Tríplice Fronteira, com apoio logístico e financeiro do núcleo local do Hezbollah e em coordenação com a Embaixada do Irã em Brasília. Na capital argentina, as ações foram executadas por outros extremistas, sob supervisão direta de agentes iranianos com cobertura diplomática. O governo do Irã refuta as evidências e desqualifica as acusações, atribuindo-as a uma "conspiração sionista" patrocinada por EUA e Israel.
Passadas duas décadas, os atentados em Buenos Aires permanecem na prateleira dos casos "em aberto" da Justiça argentina. É o resultado de uma perversa combinação, da destruição de provas até a relutância de governos da América do Sul em admitir a possibilidade de conexão regional com a novidade do terrorismo político-religioso em escala global.
Os principais suspeitos entraram na lista dos mais procurados da Interpol, mas os mandados de prisão nunca foram cumpridos. Neste ano, o governo argentino resolveu mudar de opinião. Por razões políticas, a presidente Cristina Kirchner descartou todas as investigações das últimas duas décadas – inclusive a mais recente – e anunciou um acordo com o Irã para criação de uma "Comissão da Verdade" sobre os atentados. O Judiciário invalidou o acordo. Abriu-se um conflito institucional cuja solução é improvável no curto prazo.