José Dirceu – É hora de rever o papel das Forças Armadas

O colunista alerta que convém deixar claro: rediscutir o papel das Forças Armadas e superar sua politização é, acima de tudo, defendê-las

José Dirceu
Metrópoles
24 Março 2025
Este texto representa as opiniões e ideias do autor
Negritos DefesaNet.

Um espectro ainda ronda a democracia brasileira: a politização das forças de segurança e, em especial, das Forças Armadas. Reconhecer esse problema e trabalhar para reestruturar o papel dos militares é o primeiro (e duplo) passo para que o Brasil não assista novamente a episódios como a tentativa de golpe de Estado sob inspiração e direção de Jair Bolsonaro e os atos dos vândalos golpistas de 8 de Janeiro de 2023 – dois momentos em que buscaram impedir, desestabilizar, inviabilizar e derrubar o governo legitimamente eleito de Luiz Inácio Lula da Silva.

É condição também fundamental para que o país consiga frear em definitivo as intervenções indevidas na política, expressas no crescente número de candidatos originados das Polícias Militares e demais forças de segurança, na ideia de tutela militar que sugere certa interpretação o artigo 142 da Constituição Federal, no militarismo da extrema-direita e no inconveniente e histórico sentimento de desconfiança de militares em relação à esquerda.

Antes que as cassandras habituais se queixem, convém deixar claro: rediscutir o papel das Forças Armadas e superar sua politização é, acima de tudo, defendê-las. Significa repensar sua atuação à luz não de sua presença em estruturas do governo federal, como a ABIN (Agência Brasileira de Inteligência) e o GSI (Gabinete de Segurança Institucional), e sim nos desafios da Defesa Nacional, do papel do Brasil no mundo e da soberania do país no contexto da nova realidade internacional.

Afinal, o país precisa ter uma Força Armada para o mundo tecnológico de hoje, com modernização da Força Aérea, dos blindados e de uma Marinha que há muito tempo se restringe à função de guarda costeira. O Brasil precisa das Forças Armadas. E precisa também se orgulhar delas.

O Plano Plurianual (PPA) das Forças Armadas, apresentado em setembro de 2022, aponta alguns caminhos, ao consolidar o Programa Defesa Nacional. Destaca, por exemplo, que o principal problema a ser enfrentado pelo programa “é a possibilidade de ameaças externas e internas, potenciais ou manifestas, que atentem contra a defesa da pátria, a garantia dos poderes constituídos e da lei e da ordem”, e lista quatro grandes resultados esperados:

  • manter as fronteiras terrestres e das águas jurisdicionais do País, do espaço cibernético e aeroespacial protegidas;
  • assegurar a capacidade de pronta resposta e dissuasão;
  • equipar as Forças Armadas com equipamentos e tecnologias adequadas e atualizadas;
  • e desenvolver a Base Industrial de Defesa.

Colégios militares

Para que tenhamos Forças Armadas fortalecidas, modernizadas e despolitizadas, não basta que os militares voltem aos quartéis e saiam da política. Isso é fundamental, mas insuficiente, já que essa volta aos quartéis também ocorreu em 1988, com a promulgação da nossa atual Constituição, e eles retornaram no mandato de Jair Bolsonaro, quando a maioria do Estado-Maior do Exército ocupou espaço no governo.

É preciso mais. Além do imprescindível afastamento da política e das funções públicas – sem quarentena e ida para a reserva como acontece hoje –, é hora de revisitar também os conteúdos, os currículos e a cultura dos colégios militares.

Muitos companheiros da esquerda são filhos ou netos de militares e sabem bem o quanto o ensino militar ainda é contaminada por visões ultrapassadas. A referência nas escolas continua a ser Carlos de Meira Mattos, o general que comandou as tropas brasileiras que apoiaram a invasão norte-americana da República Dominicana para derrotar uma revolta popular contra um golpe de Estado, e foi um dos mais ativos na conspiração que levou ao golpe militar de 1964. É uma formação ainda ancorada no espírito da Guerra Fria e na Doutrina de Segurança Nacional, que só enxerga inimigo interno e o mundo bipolar.

Não há fundamento para tanto na Constituição, nem seus objetivos fundamentais incluem a Guerra Fria, o inimigo interno ou mesmo a opção pelo Ocidente ou pelo bloco liderado pelos Estados Unidos. Como já pude dizer publicamente, as Forças Armadas do século XXI precisam, antes de tudo, de autonomia e soberania científica e tecnológica, de uma indústria nacional desenvolvida e de uma indústria de Defesa Nacional, capaz de desenvolver a guerra cibernética e fazer a defesa de nossas fronteiras com um escudo de mísseis.

Revisão dos currículos

O padrão antigo de Defesa, apoiada na infantaria distribuída por todo o país, já não faz sentido algum. A revisão dos currículos precisa superar essa visão, passando a ter o caráter científico, pluralista, democrático e laico do ensino público, sem discriminação ou preconceitos. Um ensino que seja capaz de formar os futuros integrantes das Forças Armadas com o espírito de defesa da nossa soberania, de consolidação da democracia e de construção de um Brasil com justiça social.

Com uma lenta e difícil constituição do seu corpo de funcionários civis, o Ministério da Defesa foi militarizado, sem nunca de fato ter sido implantado como deveria. Se a pasta tivesse um caráter civil, como pensado originalmente, o GSI – cuja atuação ao lado do batalhão da guarda presidencial foi mais do que suspeita no 8 de Janeiro – se tornaria desnecessário.

É preciso também fazer o valer o papel de comandante-em-chefe do presidente da República dentro da lei de promoções dos oficiais da ativa das Forças Armadas, submetendo os militares, sem deixar margem para dúvidas, aos poderes constituídos oriundos da soberania popular. Pela forma com que acontecem hoje as promoções, na prática o presidente da República não exerce poder algum sobre as Forças Armadas, transformadas num Estado dentro do Estado. A única porta de entrada é a escola Agulhas Negras. Um cabo, um sargento, quando a capitão não pode mais ascender.

Artigo 142

E falando em margem de dúvidas, é hora de mudar o artigo 142 da Constituição. Ainda que o Supremo Tribunal Federal tenha, acertadamente, deixado claro que ele não se presta à ideia de que as Forças Armadas podem atuar como um Poder Moderador em situações de crise, somente uma mudança em sua redação pode eliminar mais este entulho autoritário como um fantasma que nos cerca e mostrar, em definitivo, que as Forças Armadas estão, ao contrário, submetidas ao poder civil constitucional. Getúlio Vargas comandou uma ditadura fascista de sete anos associado ao Estado-Maior do Exército.

O Brasil enfrentou 21 anos de uma ditadura militar que torturou, matou e suprimiu direitos e liberdades. A transição para a democracia anistiou militares e seus crimes mais do que comprovados, da mesma forma que ocorreu no Estado Novo.

A presença militar na política se manifestou também no Golpe de 2016. Militares importantes como o general Sergio Etchegoyen nunca esconderam que, entre as razões para o golpe contra a presidente Dilma Rousseff, estavam três decisões de competência constitucional da presidente e do Congresso Nacional:

  • a Comissão da Verdade,
  • as promoções, e,
  • a educação nas escolas militares.

Essa mesma presença se mostrou presente no julgamento do habeas corpus de Lula no STF, na ocupação do governo Bolsonaro e sua política de armar suas bases militantes, na politização das PMs (e com sua histórica e crescente visão autoritária, baseada na violência, especialmente contra os mais vulneráveis), e na anuência e convivência com as milícias. E agora se manifestam na tendência recente de criação e ampliação das chamadas escolas cívico-militares, iniciativa do governo Bolsonaro que governadores como Tarcísio de Freitas disciplinadamente adotaram.

Mundo próprio

E o mais grave de tudo, cuja superação é ainda mais complexa: a cultura militar que cria para si um mundo próprio. Não seria exagero dizer que metade dos integrantes das Forças Armadas de hoje é formada por filhos e netos de militares. E, geração após geração, mergulham numa redoma, fechada, pouco transparente e nada aberta à vida dos civis.

Militares têm educação e saúde próprias, como também têm academias, clubes, inteligência, Justiça e Previdência próprias. Tudo isso forma um ciclo vicioso se torna quase uma segregação social que agrava o espírito militarista e de superioridade moral e cívica dos militares vis à vis os civis, ou seja, a nação e o povo.

Esse é um esforço a ser posto em prática com diálogo, diplomacia e cuidado, mas sem tergiversações. Com respeito às Forças Armadas e aos militares, sem criminalizá-los mas também submeter a eles o interesse do país. Sem radicalismos, mas sem adiamentos protegidos pela fachada da conciliação. Essa é uma mudança para logo, sem o quê militares continuarão colocando uma espécie de Dâmocles sobre a cabeça da democracia. Não há e não haverá democracia assim.

Guerra Híbrida STF – NYT – O Supremo está salvando ou ameaçando a democracia?

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