Chico Otavio e Cleide Carvalho
No Brasil, a única autoridade capaz de impor limites ao uso de armas de baixa letalidade pelas forças de segurança é o comandante da tropa. Não há normas que disciplinem os disparos de balas de borracha, bombas de gás lacrimogêneo ou spray de pimenta contra alvos civis. Em São Paulo, imagens dos protestos de quinta-feira mostram que os policiais apertaram o gatilho a menos de cinco metros dos manifestantes, mirando partes mais vulneráveis do corpo. Porém, a Condor Tecnologias Não-Letais, fornecedora de munições para polícias militares, incluindo a de São Paulo, adverte, nos manuais das balas de borracha, que o disparo deve ser feito apontando-se a arma para as pernas dos "infratores da lei", a distâncias acima de 20 metros, e jamais contra a cabeça, o baixo ventre e o pescoço.
O procurador federal dos Direitos do Cidadão, Aurélio Rios, lamentou que as normas existentes limitem-se a disciplinar as importações de equipamentos e munição, deixando a tropa livre para atirar. Ele rejeita o termo "arma não letal" para definir as balas atiradas contra manifestantes e jornalistas em São Paulo:
– São armas capazes de matar, não inofensivas. E, pelo que estamos vendo nas ruas do país, não estão sendo usadas de forma correta.
O Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana pretende pôr um freio no problema. Por iniciativa de Aurélio Rios, que integra o órgão, criou no mês passado um grupo de trabalho destinado a propor a regulamentação do uso. O tema estará em pauta na próxima reunião do conselho, no dia 18, em Brasília.
O Brasil dispõe, desde dezembro de 2010, de uma portaria interministerial, a nº 4.226, estabelecendo diretrizes sobre o uso da força por agentes de segurança pública. Ela exige que os agentes, depois de usar armas de baixa letalidade "ocasionando lesões ou mortes", preencham um relatório a uma comissão interna explicando as circunstâncias que os levaram aos disparos. Não há, porém, restrições ao uso.
– Esse tipo de arma precisa ser utilizado com prudência, em casos muito específicos, e não contra manifestações pacíficas. Parece que está havendo uma banalização – disse Rios.
Em tese, o uso de armas classificadas como de menor potencial ofensivo é uma tentativa de colocar à disposição das polícias mecanismos de uso gradual de força, evitando que a arma de fogo seja a primeira a ser apontada. No caso de aglomerações classificadas como perturbadoras da ordem, a primeira deve ser a bomba de efeito moral. Atirada no meio da multidão, mina o efeito de unidade do grupo e faz com que ele se espalhe, graças aos gases tóxicos liberados. O spray de pimenta ou lacrimogêneo é disparado contra um alvo específico e próximo ao policial. Deve ser usado, por exemplo, contra uma pessoa apontada como organizador do tumulto, que precisa ser individualmente contida.
A bala de borracha é um terceiro passo: deve ser disparada diante de um risco de agressão direta aos policiais, ameaçados com pedaços de pau ou pedras, por exemplo.
– A ideia é a de uso progressivo de força, evitando ao máximo o uso da arma de fogo, que é letal. Mas seu uso deve ser responsável e o policial, se imprudente, pode ser responsabilizado e responder por lesão corporal culposa ou dolosa, quando há intenção de ferir – explica Jeferson Botelho Pereira, superintendente de Investigações e Polícia Judiciária de Minas Gerais e professor de Direito Penal.
ARMAS COM PODER DE MATAR
Pereira explica que as armas de menor potencial ofensivo devem ser usadas no policiamento ostensivo e preventivo de grandes eventos, como shows e campeonatos de futebol:
– Todas elas têm poder de matar, como uma bala de borracha disparada contra alguns lugares do corpo. No olho, pode cegar. Por isso, a recomendação é que o tiro seja direcionado sempre aos membros inferiores, para imobilizar.
O especialista ressalta, no entanto, que o entendimento da Justiça e das sindicâncias internas pode beneficiar os policiais, concluindo que eles agiram em legítima defesa ou no estrito cumprimento de seu dever legal.
Na Argentina, desde que os Kirchner chegaram ao poder, nos últimos dez anos, a política da Casa Rosada é proibir, seja qual for a dimensão dos protestos, qualquer tipo de ação policial violenta destinada a impedir piquetes ou passeatas, no estilo dos já tradicionais "panelaços".
O governo Kirchner permitiu até mesmo o bloqueio durante mais de dois anos da ponte que une as cidades de Gualegaychú, na Argentina, e Fray Bentos, no Uruguay, ocupada por argentinos que estavam protestando pela construção de uma fábrica de celulose no país vizinho. O bloqueio afetou fortemente o turismo entre os dois países, mas o Executivo se manteve firme em sua decisão de não reprimir.
Na Espanha, embora a discussão sobre o uso das balas de borracha não seja nova, o assunto está na ordem do dia. Ontem, 14 agentes da polícia catalã (Mossos d"Escuadra) prestaram depoimento, como indiciados, já que, na ação contra distúrbios na greve geral do dia 29 de março, um manifestante perdeu um olho, atingido por uma bala de borracha. Não foi o primeiro: pelo menos sete catalães sofreram lesões oculares permanentes nos últimos três anos.
– As balas de borracha são usadas em toda a Espanha, onde há casos de morte e cegueira, mas na Catalunha a situação é mais alarmante porque nossa polícia regional, os Mossos d"Escuadra, é extremamente violenta – explica Mar Rubiralta, porta-voz da associação Stop Balas de Goma.
Existe um protocolo para o uso dessas balas pelos Mossos, que não costuma ser cumprido – segundo um informe de Stop Balas de Goma, recentemente divulgado. A norma só permite a arma em casos extremos, sempre avisando antes por megafone e disparando, como primeira tentativa, sem balas, para que o barulho funcione como elemento dispersor. As balas não devem ser disparadas a menos de 50 metros e seu impacto nunca deve ser direto. No entanto, seu uso é indiscriminado e, por conta disso, 21 prefeituras catalãs assinaram uma moção de censura e se declararam "Municípios livres de balas de borracha", reivindicando sua abolição em toda a Catalunha.
ATOS RECENTES REABREM DEBATE NA FRANÇA
Na França, recentes manifestações de rua na capital francesa reabriram o debate sobre o controle da ordem pública durante protestos e eventos festivos em Paris.
As passeatas contra a aprovação do casamento homossexual levaram centenas de milhares de pessoas às ruas e exigiram uma atenção especial dos serviços de polícia, principalmente do CRS (Companhia Republicana de Segurança), corpo nacional responsável pela manutenção da ordem durante as manifestações e também pela proteção civil.