(RFI) A notícia de que o Brasil afundaria o porta-aviões São Paulo, depois de meses de indefinição sobre o fim do navio, gerou mobilização internacional de organizações ambientalistas e uma comoção particular na França, fabricante do mastodonte de 266 metros e 28 toneladas. Os franceses são referência mundial em desmantelamento e reciclagem de embarcações civis e militares – mas, pelo menos publicamente, silenciaram sobre o naufrágio provocado da “joia” da Marinha nacional pelo Brasil.
A falta de reação causa ainda mais estranheza depois do escândalo do fim do Clémenceau, o primeiro porta-aviões francês a vagar no mar por anos até ser finalmente desconstruído, em 2009. A novela do Clémenceau ao menos teve o mérito de levar Paris a adotar um novo protocolo para o futuro: a partir de então, as antigas embarcações da Marinha Nacional só poderiam ser demolidas em estaleiros credenciados junto à União Europeia (UE), inclusive as vendidas para outros países.
“Ao contrário da Marinha Real, do Reino Unido, e da Marinha alemã, a França, há 15 anos, destrói os seus navios, de preferência na própria França ou em países muito próximos. A Marinha Real, por exemplo, nem pensa nisso: ela envia navios militares, mesmo grandes, para serem demolidos na Turquia”, afirma Jacky Bonnemains, presidente da organização ambientalista Robin des Bois, que se especializou em acompanhar o fim da vida dos grandes navios, franceses ou não, em todo o mundo. A entidade publica um relatório trimestral do que ocorre nos mares e oceanos.
Imposto para a reciclagem
Também no transporte marítimo civil, os franceses deram passos à frente nas normas ambientais referentes à destruição dos barcos. Em 2019, o governo criou um organismo especializado na gestão “ecorresponsável” das embarcações recreativas com até 24 metros, sob a tutela do Ministério da Transição Ecológica. A França é o único país do mundo a adotar uma taxa, que vai de 0,5% a 0,8% do preço dos barcos vendidos no país, para financiar a reciclagem daqueles que chegam ao fim de vida útil.
“Essa organização específica implica na responsabilização ampliada dos produtores – algo que já existe para outros setores, em outros países. Mas para os barcos, único país que tem isso é a França”, garante Ivana Lazarevic, diretora da APER.
Em quatro anos, sete mil embarcações já foram desmontadas e recicladas, em 30 centros de tratamento e operações espalhados pelo país. “Nós estamos envolvidos em diferentes projetos para aumentar a reciclagem possível dos componentes com os quais os barcos são constituídos e poder valorizá-los – não para criar receitas, mas para que eles sejam valorizados no mercado. Estudamos várias possibilidades, como separar a resina das fibras e poder restituir as fibras e utilizá-las na produção de novos barcos”, explica.
Lucas Debievre, responsável pelo desenvolvimento da APER, acrescenta que, apesar de o serviço ser gratuito, ainda existem proprietários que decidem abandonar as embarcações nos portos e em terrenos baldios, mas também no fundo no mar.
“Era uma prática comum e estamos tentando mudar a visão sobre o assunto, já que agora os proprietários não têm mais desculpas, uma vez que o serviço é gratuito. Afundar um barco é bastante desastroso para o meio ambiente”, observa. “Nós cuidamos de pequenos barcos, não são como o enorme porta-aviões Foch, mas ainda assim é problemático para o meio ambiente afundar um barco com todo o combustível, além dos danos causados pela deterioração dos metais e plásticos nos oceanos. Essa não é uma boa solução”, salienta Debievre.
Autorização da França
No caso do Foch, rebatizado São Paulo ao ser vendido para o Brasil, Jacky Bonnemains ressalta que o contrato de exportação previa uma cláusula para impor ao Brasil a necessidade de autorização de Paris para desmantelar o São Paulo.
O estaleiro de demolições turco SÖK Denizcilik, que comprou o casco do porta-aviões, é credenciado junto à UE e a França, portanto, concordou com a transação. Mas sob a pressão dos riscos ambientais da operação, o governo da Turquia acabou se recusando a receber o navio, que foi obrigado a retornar para a costa brasileira, onde vagou por meses.
Mesmo assim, o imbróglio jurídico-ambiental em que o caso de transformou no Brasil não gerou reações de Paris – ao menos não publicamente. “Não ouvimos a Marinha francesa, não ouvimos o ministro da Defesa, tampouco o presidente Emmanuel Macron, que tentava cooperar e encontrar diálogo com o novo presidente do Brasil, Lula”, comenta Bonnemains. “A França havia dado o seu acordo para a primeira opção de desmantelamento, que se mostrou impossível. Mas para a opção de afundar o navio, não podemos dizer que a França tenha aceitado, mas também não podemos dizer que ela se opôs”, nota o ecologista.
Procurados pela RFI, os ministérios franceses da Defesa e da Transição Ecológica não quiseram comentar o assunto.
“Acho que deve estar tendo um enorme mal-estar na Marinha Nacional e no Ministério da Defesa e que, de alguma maneira, isso poderá levar a uma maior vigilância para quando o governo francês revender navios usados para outros países”, avalia o presidente da Robin des Bois.
Brasil “não tem cultura” de desmantelamento e França sabia dos riscos
O especialista espera que o caso levará a França a adotar condições mais rígidas sobre o fim da vida dos navios, nos contratos futuros. Ele afirma que uma embarcação dessa envergadura representa “uma usina química” para o oceano, com quilômetros de tubulações, ferragens e cabos elétricos repletos elementos altamente tóxicos como PCB, amianto, chumbo, cromo, arsênio ou mercúrio, que cedo ou tarde acabarão poluindo a costa brasileira – sem falar dos milhões de animais, plantas e organismos já atingidos pelo afundamento da estrutura, que agora repousa a 5 mil metros de profundidade.
Bonnemains lembra que Paris “sabia que assumia um risco” ao passar o porta-aviões para um país como Brasil – que, a exemplo dos vizinhos da América Latina, “não tem absolutamente nenhuma cultura” de demolição de navios desativados, sejam civis ou militares.
“Nós já entendemos bem rápido, e foi confirmado agora, que o Brasil não só não tem a cultura, como não tem a vontade, para dizer a verdade, de construir um setor de desmantelamento de navios. Entre 2018 e 2022, o Brasil expediu cerca de 20 petroleiros e mineraleiros para a Índia e Bangladesh”, denuncia o ambientalista.