Raquel Lopes
Folha de São Paulo
20 Fevereiro 2021
A revogação de três portarias há dez meses pelo Exército impede o Brasil de aprimorar as regras de rastreamento e identificação de armas de fogo e munições. Sem as normas, o país tem lacunas no controle de artigos bélicos.
As Portarias 46, 60 e 61 foram editadas pelo Comando Logístico da corporação em março de 2020. No entanto, os textos foram revogados em abril pela Portaria 62, do mesmo órgão.
Na época, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) anunciou em redes sociais que havia ordenado a anulação das normas. O presidente afirmou que elas não se adequavam a "diretrizes definidas em decretos" sobre armamento.
Tiro ao alvo
Uma das portarias criava o Sisnar —um sistema de rastreamento de produtos controlados pelo Exército. A segunda determinava que a arma precisa conter, por exemplo, nome do fabricante, calibre e número de série. A outra estabelecia o controle de marcação de embalagens e cartuchos de munição.
Segundo especialistas, as portarias seriam fundamentais para o esclarecimento de crimes no país. Com essas regras, seria possível fazer o rastreamento mais minucioso e auxiliar em investigações em andamento.
Desde a decisão do Exército e de Bolsonaro, MPF (Ministério Público Federal) e TCU (Tribunal de Contas da União) investigam a revogação das normas. O tribunal de fiscalização já cobrou a publicação de novas regras.
Após o pedido feito pelo TCU, o Exército enviou uma manifestação no dia 31 de julho de 2020 com o compromisso de editar novas portarias.
"As propostas serão levadas para autoridade competente para edição do ato normativo, o que deverá acontecer, provavelmente até o mês de novembro de 2020", afirmou no documento o comandante logístico do Exército, general Laerte de Souza Santos.
O prazo não foi cumprido até hoje, e está em atraso há três meses.
Também em julho do ano passado, o Exército requisitou ao ministro-relator da representação no TCU, André Luis de Carvalho, a suspensão do processo até a publicação dos novos textos. O pedido foi negado e o processo continua aberto.
Nessa ação, o Comando do Exército apresentou justificativas ao TCU para a revogação das portarias.
Na época, o órgão disse que poderia haver incompatibilidade entre o Sisnar e o Sinesp (Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública), do Ministério da Justiça. Segundo o Comando, caberia ao Sinesp cuidar da rastreabilidade de armas.
Antes disso, o Exército já havia encaminhado três outras justificativas diferentes para a revogação das portarias ao MPF e ao STF (Supremo Tribunal Federal).
O Exército, em nota, afirmou que em função da publicação de quatro decretos no dia 12 de fevereiro deste ano, as portarias passarão por revisão para só depois serem editadas. Os atos de Bolsonaro facilitam a aquisição de armas e munições.
De acordo com a Força, a edição "deverá ocorrer no mais curto prazo possível".
"Cabe destacar, ainda, que quaisquer esclarecimentos solicitados pelo TCU serão prestados exclusivamente àquele órgão. Esse é o procedimento que tem pautado a relação de respeito do Exército brasileiro com as demais instituições da República", afirmou.
Enquanto isso, o Brasil perde a oportunidade de melhorar o controle das armas, dizem especialistas.
"Quando abre mão dessas regras, acaba promovendo um descontrole no ciclo de vida dessas munições, favorece o crime organizado, o desvio de lotes do mercado ilegal, dificulta a capacidade de investigação criminal", disse Ivan Marques, advogado, analista de segurança pública e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Uma das portarias estabelecia que um lote de munição poderia ter no máximo 10 mil unidades para cada código de rastrabealidade. Além disso, era permitido fracionar em lotes menores, com código de rastreabilidade para cada mil unidades.
Com menos munições por lote, mais fácil para a polícia rastreá-las e desvendar crimes.
"O Exército prometeu que substituiria as portarias dentro daquele prazo e mais uma vez descumpre esse acordo. Está abrindo mão de sua autonomia, de colaborar com as polícias, por pressão política", disse Felippe Angeli, gerente de advocacy do Instituto Sou da Paz.
Desde o início do governo Bolsonaro, no entanto, já foram publicados 30 atos normativos para flexibilizar o acesso a armas e munições e reduzir mecanismos de controle. Isso corresponde a média de uma regra por mês.
"Acredito ser de interesse do governo que se tenha um caos normativo, isso dificulta a compreensão do cidadão, da imprensa, a fiscalização pelos órgãos com competência de fiscalização. O que está ocorrendo é um ataque à política nacional de controle de arma", disse Angeli.
Melina Risso, diretora de programas do Instituto Igarapé, afirmou que os decretos e portarias publicados causam ainda insegurança jurídica. "Hoje existe uma fragilidade imensa no processo de monitoramento, rastreamento, isso coloca em risco a sociedade", afirmou.
De acordo com Angeli, as três portarias não são as únicas revogadas que trariam mais controle de armas e munições no país.
Em 13 de julho de 2020, o Comando Logístico do Exército havia publicado a Portaria 389, que também trazia aprimoramentos quanto à marcação e rastreamento de armas da Força Nacional de Segurança Pública. "Ocorre que o Ministério da Justiça publicou uma portaria que torna sem efeito aquelas melhorias", explicou.
Nos decretos do dia 12 deste mês, a nova leva de flexibilizações, publicada às vésperas do feriado de Carnaval, atualiza a lista de PCE (Produtos Controlados pelo Exército). Um dos atos estabelece, por exemplo, que deixam de fazer parte dessa categoria os projéteis de munição para armas até o calibre 12,7 mm, além de armas anteriores a 1900 e acessórios como miras telescópicas, entre outros.
Além de facilitar trâmites para a aquisição, os decretos aumentam de quatro para seis o limite de armas de fogo de uso permitido que um cidadão pode comprar.
Nos casos de determinadas categorias, como policiais, magistrados, membros do MP e agentes prisionais, há ainda a autorização para a compra de duas armas de uso restrito.
Atos normativos sobre armas e munições no governo Bolsonaro
14 Decretos presidenciais publicados
Situação
4 em vigor, mas três tiveram parte do texto alterado por novos decretos
4 entrarão em vigor em abril
6 revogados por novos decretos
15 Portarias publicadas pelo Exército, Polícia Federal, Ministério da Justiça e Segurança Pública e Ministério da Defesa
Situação
10 ?em vigor, mas 1 teve parte do texto alterado por novas portarias
4 revogadas por novas portarias
1 suspensa por liminar
1 Resolução publicada pela Câmara de Comércio Exterior, do Ministério da Economia
Situação Suspensa por liminar
2 Projetos de Lei de autoria do Executivo
Situação
PL 3723/2019 – Aprovado pela Câmara em novembro de 2019, aguarda apreciação pelo Senado Federal
PL 6438/2019 – Está na Câmara e aguarda a designação de relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania e na Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado; Aguardando parecer do relator na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional
Pontos abordados nos atos normativos
Decretos
– estendem as categorias que podem ter porte e posse de armas e aumentam o número de armas e munições compradas, inclusive para CAC (colecionador, atirador e caçador)
– aumentam a validade do porte de arma de cinco para dez anos
– regulam a fiscalização de produtos controlados pelo Exército
Portarias
– ampliam o número de munições compradas por quem tem posse e porte de armas;
– foram criadas portarias e revogadas sobre rastreamento, identificação e marcação de armas e munições;
– autorizam e regulamentam uso de arma de fogo para policiais federais aposentados
– abordam o rastreamento e marcação de armas da Força Nacional
– definem as armas de uso restrito e permitido
Resolução
Zera imposto de importação de revólveres e pistolas
Projetos de Lei
Tratam de posse, porte e comercialização de arma de fogo por civis