A Capitão de Corveta (T) Luciana Mendes é a atual Consultora Jurídica da CTF-151, com atuação em área de conflito no Oriente Médio
Por Segundo-Tenente (RM2-T) João Stilben – Brasília, DF
Há algumas décadas, o ingresso na Marinha do Brasil (MB) não é algo exclusivo aos homens. Neste ano, inclusive, a Marinha tornou-se a primeira Força a permitir mulheres em todos os Corpos e Quadros, após o concurso para Soldado Fuzileiro Naval, realizado em 2023. Mais de 7 mil mulheres se inscreveram, e as 120 aprovadas começaram o curso em fevereiro.
Desde o ingresso pioneiro das primeiras mulheres no Corpo Auxiliar Feminino da Reserva da Marinha, em 1981, dezenas de milhares de militares do sexo feminino comprovaram, a cada concurso, formatura e promoção, que elas também podem ocupar cargos e funções de destaque.
Esse é o caso da Capitão de Corveta (Quadro Técnico) Luciana Carvalho Mendes, a primeira Oficial do sexo feminino a integrar o Estado-Maior da Combined Task Force 151 (CTF-151). Ela exerce a função de Consultora Jurídica, assessorando o Contra-Almirante brasileiro Antonio Braz de Souza, nesta que é parte da maior coalizão naval do mundo, com foco na repressão à pirataria no Mar Vermelho, Golfo de Aden e Mar Arábico.
O trabalho da militar tem sido fundamental para decisões que envolvem os Direitos Internacionais do Mar e Marítimo, enriquecendo a tomada de decisões e contribuindo para soluções mais abrangentes e eficazes em cenários desafiadores. De acordo com o que já foi noticiado nesta Agência Marinha de Notícias (AgMN), a região tem sido palco de inúmeros conflitos, não só com incidentes de pirataria, mas também com uma série de ataques de rebeldes Houthis a navios mercantes.
Nesta quinta reportagem da série especial Mulher na MB, a AgMN entrevistou a Capitão de Corveta (T) Luciana Mendes, que contou sobre seu trabalho de liderança em um ambiente operativo, novo e desafiador. Ela que, nas palavras do Almirante Braz de Souza, sempre trabalhou “com uma dedicação e profissionalismo que servem como lembrete de que o potencial humano não conhece limites de gênero”.
As características apontadas pelo Almirante para descrever a Capitão de Corveta (T) Luciana Mendes são uma marca de família. A Oficial, que hoje desbrava um novo caminho para as militares dentro da MB, segue o legado de sua mãe, a Contra-Almirante do Quadro de Médicos (MD) Dalva Maria Carvalho Mendes, primeira mulher do País a alcançar o generalato, em 2012. A médica anestesista fez parte da primeira turma do Corpo Auxiliar Feminino da Reserva da Marinha e inspirou o pioneirismo da filha.
AgMN: Em primeiro lugar, pode contar como foi sua caminhada até chegar a este posto de Oficial Superior na Marinha do Brasil?
CC (T) Luciana Mendes: Eu entrei na Marinha em 2011, no concurso de 2010. Sou formada em Direito, e, na época do concurso, fui a segunda colocada, de 11 vagas. Depois do Curso de Formação, fui distribuída para a então Diretoria de Pessoal Militar da Marinha, onde fiquei até novembro de 2015, quando fui para Diretoria-Geral do Pessoal da Marinha. E, em 2020, fui para o Comando de Operações Navais (ComOpNav) – órgão responsável pelas funções operativas em alto nível da MB.
AgMN: Como foi seu primeiro contato com uma Organização Militar (OM) de caráter operativo, onde a maioria dos militares são homens?
CC (T) Luciana Mendes: Uma coisa que eu costumo dizer é que o ComOpNav foi um verdadeiro divisor de águas, que me impulsionou a descobrir novos horizontes e me fez pensar em desafios que, definitivamente, me tiraram da zona de conforto. Eu sabia que o ComOpNav era diferente por ser um setor operativo, o coração da Marinha. E sabia também que teria demandas mais difíceis, mas, hoje, vejo como este desafio foi relevante para mim.
AgMN: E o que mudou?
CC (T) Luciana Mendes: Passei a estudar ainda mais, retomei meus estudos do inglês e tive conhecimentos voltados para a parte operacional, com foco em outros ramos do Direito. Fiquei destacada por um período de oito meses no Comando de Operações Marítimas e Proteção da Amazônia Azul, onde tive maior contato com o Direito Operacional. Esta é a única Organização Militar da Marinha que tem bacharéis em Direito especificamente voltados para uma assessoria nesta área. Tive a oportunidade de trabalhar com temas voltados à interpretação de legislações relativas ao Direito do Mar e à aplicação do Poder Marítimo. Também tive a grata satisfação de ministrar palestras sobre esses temas em alguns cursos sobre Segurança Marítima.
AgMN: Como a mãe da Senhora, a primeira brasileira a se tornar Oficial-General, a inspirou a seguir essa carreira?
CC (T) Luciana Mendes: O que sempre me inspirou na minha mãe foi a paixão pelo trabalho, todo seu esforço e dedicação. E esse foi o exemplo que ela nos passou dentro de casa, que certamente influenciou nas minhas escolhas profissionais. A linda trajetória dela na MB e ver que, como fruto deste trabalho, foi possível alcançar papéis de destaque, me fez buscar por este crescimento na carreira e acreditar na possibilidade de participar de qualquer missão, especialmente, as mais desafiadoras.
AgMN: E como foi o caminho percorrido até o cargo de Consultora Jurídica do CTF-151?
CC (T) Luciana Mendes: É a terceira vez que o Brasil é protagonista da CTF-151 e, em todas, contou com um Oficial, que era bacharel em Direito, na função de Consultor Jurídico. Na primeira seleção, eu não estava preparada, nem era o momento certo para mim. Na segunda vez, participei do processo, mas não fui selecionada. E não desisti. Na terceira vez, após os exames de proficiência em inglês, teste físico e inspeção de saúde e, após a confecção de uma lista tríplice – chancelada pelo Comandante da Marinha –, vi com muito orgulho que havia sido selecionada.
AgMN: Na sua opinião, há interesse das mulheres em participarem de missões assim? Há oportunidades iguais?
CC (T) Luciana Mendes: Em missões operacionais, ainda se vê uma participação muito reduzida de mulheres. Mas, especificamente aqui, quando a gente pensa em Oriente Médio, muitas vezes ainda há receio das mulheres em se voluntariarem – pela forma como poderiam ser tratadas, ou em relação a possíveis restrições culturais. Mas eu me convenci de que era algo possível, que seria bom para mim e que teria que trabalhar para que isso acontecesse. Em relação às oportunidades, quando a mulher quer, ela consegue. Só precisa fixar objetivos e metas, e fazer o melhor para tornar possível.
AgMN: O que a senhora poderia dizer sobre essa preocupação da Marinha com a inclusão do público feminino em todas as fileiras?
CC (T) Luciana Mendes: A presença das mulheres, na verdade, é um reflexo do que existe na sociedade, com a participação equilibrada em outras carreiras. Na Marinha, homens e mulheres têm as suas peculiaridades, mas essas diferenças são agregadoras. Para mim, as mulheres são mais observadoras, minuciosas, cautelosas – e isso é agregador. A tendência é que tenhamos mais e mais formas de contribuir, de forma positiva, para a MB.
AgMN: Como é a rotina diária na CTF-151?
CC (T) Luciana Mendes: É uma rotina de expediente normal. Temos o que chamamos de uma rotina de “ritmo de batalha”, com uma série de reuniões para tratar de diversos assuntos de coordenação e para a tomada de decisões, já que atuamos como Estado-Maior. Eu, especificamente, fico na assessoria jurídica da repressão à pirataria, que é nossa missão. E assim, como tudo pode acontecer, a qualquer momento posso ser acionada. Se for o caso, a qualquer hora estou preparada para voltar ao trabalho ou prestar assessoria pelo telefone.
AgMN: E o trabalho de Consultora Jurídica? Como funciona?
CC (T) Luciana Mendes: Aqui é como se fosse um gabinete de crise, onde se monitora e se atua 24 horas por dia. Além das assessorias em situações reais, nós, assessores jurídicos, participamos das reuniões, ministramos palestras e prestamos assessoria em uma série de exercícios, que simulam situações reais, com o objetivo de aprimorar a capacitação dos militares que atuam na CTF-151.
AgMN: Qual sua visão sobre o cenário de crise?
CC (T) Luciana Mendes: O que encontramos, nesta região, é uma grave crise econômica, associada a problemas antigos de corrupção e ausência de Estado, o que faz com que a situação se agrave ainda mais. Com a pobreza, muitos usam embarcações pesqueiras para cometer crimes, com vistas a obterem retornos financeiros mais expressivos. Há algum tempo, estávamos em uma situação em que a pirataria tinha sido suprimida, mas, desde novembro do ano passado. os casos voltaram a ressurgir.
O trabalho da CTF-151 tem a ver com dissuasão, ou seja, com estarmos presentes. O fato de os piratas saberem que existem navios coordenados, que podem ser acionados, faz com que eles não cometam infrações. E, como a pirataria é um crime de jurisdição universal, isso significa que o país que intercepta e captura os piratas pode fazer a persecução penal. Aqui na região, temos muitos casos julgados em Seicheles e nas Ilhas Maurício, graças a acordos específicos firmados pelos países de bandeira dos navios de guerra.
AgMN: Por fim, qual mensagem a senhora pode deixar para as mulheres que pensam em ingressar na Força?
CC (T) Luciana Mendes: Trabalhar nas Forças Armadas, e especialmente na Marinha, é uma experiência singular, em que podemos explorar um universo de possibilidades, trabalhar com pessoas de diversas formações e culturas, e em diversas localidades, construir amizades verdadeiras, o que nos permite desafiar nossos limites, crescer substancialmente e revelar todo nosso potencial.
Agência Marinha de Notícias