Dayana Rezende
RIO – No dia 3 de setembro de 1998, Camila Magalhães Lima, então com 12 anos, saiu de casa para a escola com uma certeza: experimentaria, pela primeira vez, a sensação de independência. A pedido dela, os pais não a buscariam. Uma troca de tiros na saída do colégio, porém, interrompeu seus planos. No meio do fogo cruzado, Camila acabou atingida no pescoço. A bala ficou alojada na coluna, deixando-a tetraplégica.
De lá para cá, quase duas décadas se passaram e muita coisa mudou. A jovem recuperou o movimento dos braços, tirou carteira de motorista, cursou faculdade de ciências sociais, passou num concurso público. No entanto, aos 30 anos, completados no último dia 11, a busca pela independência continua.
— Voltar a andar já não me importa mais. Hoje, consigo mexer os braços, e isso me traz uma independência enorme. Por cerca de um ano, fiquei presa dentro do meu corpo. Para coçar a cabeça, precisava pedir ajuda. Mas minhas conquistas poderiam ser maiores se eu já tivesse recebido minha indenização — lamenta.
Se as lojas que contrataram os seguranças que trocaram tiros com bandidos naquele 3 de setembro cumprirem a última determinação judicial, Camila receberá uma indenização de R$ 450 mil por danos morais e R$ 450 mil por danos estéticos, além de ganhar uma reforma em sua casa, para adaptá-la às suas necessidades. Mas os réus ainda podem recorrer.
O tiroteio aconteceu no fim daquela manhã. Dois ladrões tentaram assaltar uma joalheria no movimentado Boulevard Vinte e Oito de Setembro, em Vila Isabel, e entraram em confronto com seguranças privados. Foram mais de 20 minutos de troca de tiros. Uma amiga de Camila também foi ferida, no pé, mas sem gravidade.
— Naquela época, um fato como esse ainda causava comoção. Hoje, virou banalidade — comenta Ana Lúcia Magalhães, mãe de Camila.
As imagens da menina uniformizada, caída no chão sobre uma poça de sangue, os olhos amendoados arregalados, assustados, comoveram o país. Camila se lembra bem daquele dia. Queria pedir socorro, mas sua voz não saía: o tiro atingira sua garganta. A mãe recebeu a notícia por telefone, do marido, que evitou dar os detalhes. “Camila se machucou saindo da escola”, disse ele.
— Escutei as pessoas dizendo que eu tinha levado um tiro, mas achei que não fosse nada grave, que estaria na escola na semana seguinte — conta Camila.
Fisioterapia em vez de esportes
A tragédia foi um divisor de águas na vida da família Magalhães. Antes, o sonho da jovem era ser modelo. Depois, os desejos tornaram-se triviais: conseguir, sozinha, coçar a testa, pentear o cabelo, tomar banho. Tudo era feito com a ajuda dos pais. Em meio às recordações ruins, mãe e filha usam a palavra “sorte” para lembrar que, naquele mesmo 3 de setembro, Ana assinara sua aposentadoria. O pai já era aposentado. Os dois teriam tempo integral para cuidar da jovem.
A Camila de antes da tragédia tinha uma vida ativa. Andava de bicicleta, praticava ginástica olímpica, fazia natação. O esporte foi dolorosamente substituído por fisioterapia, hidroterapia e hipoterapia (método terapêutico que utiliza cavalos). Com a ajuda de parentes e amigos, assim como de dinheiro antecipado da ação movida na Justiça, fez tratamentos no exterior, em cidades de Portugal, da Itália, da Alemanha e dos Estados Unidos. Nos primeiros meses, ela não conseguia sequer ficar sentada. Hoje, a agente executiva da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) vai sozinha ao trabalho, dirigindo o próprio carro, que é adaptado.
Ir ao mercado é um martírio
Mas sua independência ainda é limitada. Ir ao mercado, por exemplo, é um martírio. As calçadas do bairro onde mora, a mesma Vila Isabel que mudou seu destino, são esburacadas. A troca para a cadeira de banho também precisa da ajuda braçal de Ana. O pai era quem fazia a força, mas ele morreu no ano passado. Ao terraço do apartamento, Camila nunca mais foi, por causa das escadas. A solução seria instalar um elevador, mas faltam recursos. Se a determinação judicial for cumprida, no entanto, a obra poderá ser feita.
Camila segue se tratando, com sessões de fisioterapia, fisiatria e psicólogos. Sua mãe quer levá-la de novo para o exterior, desejo que também poderá ser realizado caso saia a indenização.
— Os tratamentos lá são mais eficazes — diz Ana. — As técnicas são mais evoluídas, e minha filha terá acesso a equipamentos que não existem no Brasil.
Ficar de pé e dar pequenos passos, mesmo que com o auxílio de órteses (aparelhos que a auxiliam nos movimentos), Camila já consegue. O que ela espera, agora, é que a Justiça também caminhe junto.
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