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Taubaté, interior de São Paulo, 31 de agosto de 1993. Entre uma partida de futebol e outra, no pátio da Casa de Custódia, um grupo de nove detentos — Antônio Carlos dos Santos, Antonio Carlos Roberto da Paixão, Isaías Moreira do Nascimento, Ademar dos Santos, César Augusto Roris da Silva, Idemir Carlos Ambrósio, Misael Aparecido da Silva, Wander Eduardo Ferreira e José Márcio Felício — discute a criação de uma confraria de presos, com um objetivo claro: evitar uma repetição do massacre do Carandiru, ocorrido menos de um ano antes.
 
Os nove fundadores do que viria a se chamar Primeiro Comando da Capital (PCC) estavam convencidos de que, ao submeterem os criminosos a uma hierarquia dentro da cadeia, poderiam evitar brigas internas como a que serviu de estopim para a rebelião no Carandiru e, ao mesmo tempo, ter força para extrair concessões do Estado. Os primeiros protegidos do PCC eram conquistados na marra. Ou pagavam, ou eram mortos ou espancados.
Não demorou para os presos entenderem que pertencer ao grupo representava uma elevação de status no mundo do crime. Por não ter surgido em uma favela, bairro ou cidade, o PCC nunca foi uma organização local. Já no embrião apresentou uma capilaridade singular, que lhe permitiu alastrar-se rapidamente por São Paulo e depois para os estados que estão cravados na rota do tráfico da cocaína vinda da Bolívia e do Paraguai.
Pedro Juan Caballero, Paraguai, 15 de junho de 2016. As imagens das câmeras de segurança de uma farmácia na Rua 14 de Mayo registram 18h44.
A 70 metros dali, dezenas de fiéis rezam na Paróquia de São Geraldo. Na calçada oposta, jovens frequentam as aulas de uma escola local. Um anoitecer típico dos moradores da cidade, que faz fronteira com o Brasil, em Mato Grosso do Sul. Naquele horário exato, porém, o motorista de uma Toyota Hilux branca para no cruzamento em frente à farmácia e, sorrateiramente, espera até ser alcançado por um Hummer blindado que vem escoltado por três caminhonetes com capangas armados com fuzis e pistolas automáticas. Em seguida, a Hilux acelera. A porta traseira se abre e revela uma metralhadora antiaérea. Uma rajada de balas ilumina a rua e atinge o para-brisa do Hummer.
Em seu interior está o brasileiro de origem libanesa Jorge Rafaat. Uma nova sequência de disparos atravessa o vidro blindado do veículo, matando Rafaat. Conhecido como o Rei da Fronteira, ele era o último empecilho para que a organização criminosa PCC alcançasse a hegemonia do tráfico de drogas e armas a partir do Paraguai.
"Tirar Rafaat do caminho era o que faltava para o PCC se tornar o primeiro cartel internacional de drogas com sede no Brasil", diz o procurador de Justiça Márcio Christino, do Ministério Público de São Paulo, um especialista na história e no funcionamento do PCC. "Esse cartel já tem um nome, dado pelos próprios criminosos: NARCOSSUL." Em pouco mais de duas décadas, enquanto a Justiça paulista fracassava em punir os responsáveis pela matança de 111 presos desarmados no Carandiru, o PCC deixou de ser apenas uma quadrilha que vende proteção a detentos e consolidou-se como a maior e mais poderosa organização criminosa da história do Brasil. Eis o resultado que o Brasil colheu ao executar presos — coisa que os adversários dos direitos humanos acham que é uma cândida solução — e manter policiais criminosos impunes. Se fosse uma empresa, o PCC seria hoje a décima sexta maior do país, à frente de gigantes como a montadora
 
CRIME S.A.
Se fosse uma empresa, o PCC seria a 16ª maior no Brasil, à frente da JBS Foods e da Volkswagen (vendas líquidas, em bilhões de reais, em 2015)
 

  Empresa e Atividade Faturamento
     2015
1 Petrobras (Petroquímica) 
 
262,8 2
2 BR Distribuidora (Combustíveis) 101,5 3
 
3 Ipiranga (Combustíveis) 68,3
4 Raízen (Combustíveis) 56,2
5 Vale (Mineração) 44,6
6 Telefônica (Telecomunicações 35,6
7 Braskem (Petroquímica) 35
8 Claro (Telecomunicações) 34,4
9 Cargill (Agroindústria) 33,4
10 Bunge (Agroindústria) 30,4
11 JBS (Agroindústria) 30,2
12 BRF (Agroindústria) 28
13 Pão de Açúcar (Supermercados) 23,5
14 Ambev (Bebidas) 23
15 Fiat (Automóveis) 20,8
16 PCC (Narcotráfico) 20,2
17 Via Varejo (Comércio) 20,1
18 Atacadão (Supermercados) 19,8
19 JBS Foods (Alimentos) 19,6
20 Volkswagen (Automóveis) 18

 
 
Volkswagen. Trata-se de um império corporativo em que os produtos são as drogas ilícitas. Os clientes são dependentes químicos. Os fornecedores são criminosos paraguaios, bolivianos e colombianos. Os métodos são o assassinato, a extorsão, a propina e a lavagem de dinheiro. As áreas de diversificação são os assaltos a banco, o roubo de cargas e o tráfico de armas. A meta, coerente com as exigências da globalização, é internacionalizar-se, e para chegar lá os líderes do PCC estão selando alianças com quadrilhas africanas e terroristas do Oriente Médio.
O PCC recorre ao tráfico de drogas desde sua fundação. O que no início era apenas uma forma de multiplicar as receitas obtidas com a venda de proteção nas cadeias tornou-se, com o tempo, sua atividade central — o core business, para usar um anglicismo do mundo empresarial. Hoje, a organização controla mais da metade do comércio de entorpecentes no pais. A reportagem de VEJA consultou mais de uma dezena de especialistas e policiais no Brasil e em outros seis países para dimensionar a capacidade financeira do PCC. Conclusão: apenas com a venda de drogas para consumo no território nacional, a organização alcança um faturamento anual da ordem de 20,3 bilhões de reais, sem incluir as receitas com roubo de carga e assalto a banco (veja como foi feito o cálculo no quadro ao lado).
Em 2015, cerca de 3 000 caixas eletrônicos foram explodidos no país. Suspeita-se que o PCC esteja por trás de pelo menos um terço dos ataques. A fortuna que passa pelas mãos dos narcotraficantes do PCC é pulverizada. Ela é usada para pagar propina a policiais, juízes e políticos, patrocinar execuções e remunerar os milhares de "trabalhadores" envolvidos na operação. Parte significativa é despendida nas operações de lavagem de dinheiro, que obrigam os criminosos a corroer seu capital para esconder a origem ilícita dos recursos por meio de empresas de fachada.
Os custos podem ser altos, mas a margem de lucro do tráfico é imbatível. A diferença de preço entre 1 quilo de pasta-base na Bolívia e 1 quilo de cocaína no Brasil é de 1500%. Não espanta que os chefões do tráfico exibam uma vida de fausto. No início do ano, a Polícia Federal prendeu em Fortaleza um dos comandantes do PCC, Alejandro Camacho, irmão caçula do líder da organização, Marcos Camacho, o Marcola, que desde 1999 cumpre pena de 232 anos no presídio de Presidente Venceslau, no interior de São Paulo, pelos crimes de assalto, roubo a banco, formação de quadrilha, tráfico de drogas e homicídio. Marcola assumiu a chefia do PCC em 2002, depois do assassinato na cadeia de um dos fundadores da organização, Idemir Carlos Ambrósio,
 
a mando de outros dois comparsas que discordavam de seus métodos de extorsão. "Playboy", como é chamado Marcola, foi quem transformou o PCC de uma simples quadrilha em uma corporação criminosa. Seu irmão Alejandro é conhecido por ter liderado a maior fuga da história do Carandiru, em 2001 (leia o quadro na pág. ao lado), e é dono de imóveis em alguns dos endereços mais caros de Fortaleza, capital do Ceará.
 
Sua residência principal é uma cobertura na Avenida Beira-Mar. Mesmo com o pai na cadeia, seus três filhos adolescentes levam uma vida de luxo e de viagens mostrada no Instagram. O roteiro inclui Ibiza, Nova York, Paris e Disney. No ano passado, a PF prendeu em Londrina 22 pessoas que faziam parte da rede logística do PCC. Os bandidos moravam em condomínios de alto padrão, e um deles era vizinho do juiz federal que decretou a prisão e do delegado que comandou as investigações.
Com os bandidos, foram apreendidos 180 veículos, de marcas como Porsche, Mercedes-Benz e BMW, motos de corrida, uma lancha e um helicóptero. Entre as dezenas de imóveis confiscados, havia cinco mansões. (As casas e os veículos que ilustram a abertura desta reportagem pertenciam, todos eles, a membros do PCC.)
"Não adianta apenas apreender carregamentos de drogas e deter quem os transporta. Temos de fechar o cerco aos chefes das organizações e seus mecanismos de lavagem de dinheiro, já que são eles que realmente lucram com o tráfico", diz o delegado Cassius Baldelli, coordenador-geral de Repressão a Drogas da Polícia Federal. "Para atingir o coração do narcotráfico, temos de quebrar a base financeira das quadrilhas", reforça o delegado Elvis Secco, que comandou uma operação que resultou na apreensão de mais de 70 milhões de reais em bens dos traficantes paranaenses. Nos últimos dois anos, a PF confiscou 557 milhões de reais dos criminosos, o triplo do que foi apreendido nos quatro anos anteriores.
 
Só em São Paulo, em 2013, o Ministério Público Estadual identificou 500 contas bancárias do PCC, com saldo total de 200 milhões de reais. Apesar do sucesso "empresarial", o PCC continua tendo como base o sistema prisional. Estima-se que cerca de 90% dos presos brasileiros estejam sob sua influência. Isso representa um contingente espantoso de 550 000 pessoas. A grande maioria, porém, se restringe a pagar mensalidades ao PCC (cujos valores variam de acordo com o que a organização imagina ser a capacidade de pagamento de cada preso) ou a obedecer às ordens do grupo durante rebeliões, como as de 2001, das quais participaram 27 000 detentos em 29 presídios paulistas. Os membros ativos do PCC somam cerca de 10 000 presos, o equivalente a 1,5% da população carcerária nacional. A questão é que, quando voltam às ruas, esses homens não perdem o vínculo com o grupo. Nada menos que 3000 "soldados" do PCC atuam fora dos presídios. É o bastante para tocar o terror nas cidades. Desde sua criação, o PCC realizou mais de 300 ataques contra prédios públicos em todo o país. Em 2006, a facção matou 42 policiais em dez dias em reação a uma transferência de presos. Em abril deste ano, em Fortaleza, no mês seguinte à prisão do irmão de Marcola e da aprovação de uma lei que prevê o bloqueio de celulares nos presídios do Ceará, o PCC estacionou um carro-bomba em frente à Assembleia Legislativa. O dispositivo não foi acionado. O governador manteve a lei, mas o estado não a homologou. Episódios como esse mostram que o PCC também tenta influenciar decisões políticas que sejam do seu interesse, a exemplo do que fazia Pablo Escobar, o chefão do Cartel de Medellín, na Colômbia, nos anos 80. Em que pese a semelhança de método, o cartel do PCC ainda está longe de atingir o mesmo patamar dos antecessores colombianos.

Por três motivos:

Primeiro, pela questão financeira. Os brasileiros faturam em dois meses o que Escobar amealhava em uma semana;
Segundo, porque o PCC não temo domínio territorial que desfrutavam os traficantes colombianos, que controlavam o poder público e a polícia na região central da Colômbia e na periferia da capital, Bogotá, e,
Terceiro, as circunstâncias políticas são distintas. Além do narcotráfico, a Colômbia enfrentava uma guerrilha de esquerda longeva que minou o controle do Estado em largas fatias de seu território e drenou as forças do governo, abrindo espaço para a expansão das organizações criminosas.
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FUGA DO CARANDIRU
ALEJANDRO CAMACHO, IRMÃO DE MARCOLA, ESCAPOU DO PRESÍDIO EM 2001, COM OUTROS 107 PRESOS, POR UM TÚNEL ESCAVADO DE FORA PARA DENTRO.
 
Alejandro Juvenal Herbas Camacho Júnior, de 45 anos, irmão caçula de Marcola, chefão do PCC, protagonizou a maior fuga da história do Carandiru, onde cumpria pena de quarenta anos por assalto a carros-fortes. Desde a década de 90, atuava também como elo do PCC com o Comando Vermelho, facção criminosa do Rio de Janeiro. Cabia a ele negociar a compra de armas com fornecedores paraguaios e com as Faro, na Colômbia, em conjunto com o traficante Fernandinho Beira-Mar. Em novembro de 2001, Marcolinha, como Alejandro também é conhecido, escapou do Carandiru com outros 107 detentos por um túnel cavado de fora para dentro.
A construção da rota de fuga foi financiada pelo PCC e beneficiou, além de Alejandro, outros trinta integrantes do grupo. A estrutura de aproximadamente 1 metro de altura por 1 metro de largura possuía escoras de madeira, iluminação e ventiladores. Quatro anos depois, alguns dos presos que Marcolinha tirou da cadeia usaram a mesma tática para realizar o maior roubo a banco da história do Brasil. Os bandidos construíram um túnel de 76 metros de extensão para acessar o cofre da sede do Banco Central em Fortaleza, no Ceará, e levar 164,8 milhões de reais, dos quais apenas 60 milhões foram recuperados. Segundo a Polícia Federal, Marcolinha foi um dos mentores do plano. Depois de fugir do Carandiru, Marcolinha passou cinco anos escondido, até ser recapturado no bairro do Tatuapé, em São Paulo. Ele ficou detido no presídio de Presidente Venceslau na companhia do irmão e de outros comandantes do  PCC até o ano passado, quando foi beneficiado com a progressão da pena para o regime aberto. Em março deste ano, a Polícia Federal prendeu-o novamente, em Fortaleza, por -que surpresa – narcotráfico. Do Ceará, ele comandava uma rede de tráfico que se estendia por vários estados. Além dele, 28 pessoas foram detidas na operação, que apreendeu 560 quilos de cocaína, 25 toneladas de maconha, um fuzil e 160 000 dólares em espécie. Alejandro está, agora, em um presídio na cidade paulista de Valparaíso.
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SEM CONTROLE Uma plantação de coca no Peru, a poucos metros do rio que delimita a fronteira com o Brasil, no Estado do Amazonas, em foto de 2015. Ao lado, um raio X mostra bolsas com cocaína em um container no Porto de Santos
 
Mas o PCC, claramente, imita a operação colombiana, ainda sem muito sucesso. Em 2010, a polícia paulista prendeu um candidato a deputado federal bancado pelo PCC. Dois anos depois, a PF prendeu uma candidata à prefeitura de Cariús, no Ceará, que tinha a sua campanha financiada pelo tráfico. Em termos de modelo de negócio, o PCC também funciona cada vez mais como os grupos colombianos.
Um cartel de narcotráfico é, basicamente, a união de organizações criminosas em torno de objetivos comuns. O primeiro deles foi criado nos anos 70, na Bolívia. Chamava-se La Corporación. "Os criminosos levaram para o mundo do ilícito os métodos bem-sucedidos dos grupos empresariais", explica o analista político boliviano Hugo Achá. "O PCC já é um cartel porque impõe sua ascendência por meio de regras de mercado, oferecendo às facções criminosas locais as vantagens de se franquear ao grupo." O salto empresarial de mera quadrilha para cartel está ligado ao que se pode chamar de internacionalização do PCC. Com uma capacidade cada vez maior de distribuir cocaína dentro do Brasil, a organização passou a ignorar intermediários e agora negocia diretamente com os grandes fornecedores na Bolívia e no Paraguai. Nesse processo, o PCC evoluiu de cliente a parceiro da produção. Da mesma forma que gera muito dinheiro para si, também faz circular uma fortuna dentro das demais redes criminosas que o abastecem. Todos os anos, traficantes brasileiros despejam nos países produtores de coca algo em torno de 1 bilhão de dólares.
É um ciclo em que o Brasil perde duas vezes: com a evasão de divisas e com a abundância de cocaína no mercado. A internacionalização do PCC parece preocupar mais o governo dos Estados Unidos do que o do Brasil. No fim dos anos 90, os criminosos brasileiros selaram um acordo em presídios paranaenses com prepostos do Hezbollah, grupo do terrorismo libanês.
Os traficantes libaneses, que até então faziam remessas da droga para o norte da África e a Europa somente por meio de mulas, gostaram dos serviços de proteção oferecidos pelos brasileiros. Com o tempo, o PCC passou a atuar como agente logístico do Hezbollah, fazendo atravessar a droga pelo território nacional e facilitando a remessa para a África. O Ministério Público de São Paulo reuniu uma série de evidências de que os criminosos brasileiros já estabeleceram rotas de distribuição que irrigam de cocaína diversos países africanos e chegam até o Oriente Médio, por meio das redes locais que atuam no norte da África. "O crack que atravessa o Brasil virou o combustível de guerras africanas. Os combatentes são mantidos mais tempo em ação sob o efeito da droga, e organizações terroristas da região fazem fortuna administrando as rotas que permitem que a cocaína chegue aos mercados mais lucrativos, que são a Europa e o Oriente Médio", afirma o ex-delegado federal Mauro Sposito, especialista em controle de fronteira. A Polícia Federal descobriu que uma das portas de saída é o Porto de Santos, por onde a droga é despachada em contêineres.
 
O PCC tem na sua folha de pagamento funcionários dos terminais que abrem os contêineres e inserem bolsas de drogas em uma carga regular. Depois de novamente lacrados, os compartimentos são fotografados e as imagens enviadas para os portos de destino, onde um comparsa dos traficantes fará a retirada da droga antes de a carga passar pela alfândega. De janeiro a setembro deste ano, a PF apreendeu mais de 6 toneladas de cocaína escondidas em contêineres no Porto de Santos.
Mais da metade desse volume seria despachada para Tunísia, Bélgica e França. A expansão da maior organização criminosa da história brasileira é fruto da falência dos presídios do país. O que esperar de um sistema penal que não é capaz sequer de punir os culpados pelo massacre de 111 apenados, 24 anos atrás? ?
 
A MULTINACIONAL DA COCAÍNA
O PCC monopoliza a importação de drogas do Paraguai, atua em sociedade com cocaleiros bolivianos e fornece proteção e infraestrutura para o envio de entorpecentes a terroristas do Hezbollah e a grupos armados na África

 

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