A ferramenta permitia, sem qualquer protocolo oficial, controlar os passos de até 10 mil proprietários de telefones a cada 12 meses
Dimitrius Dantas, Patrik Camporez e
Thiago Bronzatto
O Globo
14 Março 2023
Nota DefesaNet Diferente do que a reportagem erroneamente informou, a Cognyte (ex-Verint) está presente no Brasil desde muito antes do governo Bolsonaro. A empresa é uma das líderes mundiais no fornecimento de soluções tecnológicas destinadas a apoiar as atividades de inteligência, sendo uma das principais parceiras das Forças Armadas, de Segurança e de Inteligência do Brasil e de diversos países. O investimento em soluções e softwares destinados as atividades de inteligência aumenta a rapidez e a efetividade das operações. A mídia tradicional, por desconhecer a importância da atividade de inteligência, publica regularmente informações sem fundamento e acaba expondo capacidades e sistemas táticos que não deveriam ser públicos em prejuízo da segurança das operações. DefesaNet defende o aumento e a continuidade do investimento em sistemas e tecnologias capazes de suportar e aumentar a eficácia das atividades de inteligência, em prol da segurança do Estado Brasileiro e das Operações Militares. O Editor |
Durante os três primeiros anos do governo Bolsonaro, a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) operou um sistema secreto de monitoramento da localização de cidadãos em todo o território nacional, segundo documentos obtidos pelo GLOBO e relatos de servidores. A ferramenta permitia, sem qualquer protocolo oficial, monitorar os passos de até 10 mil proprietários de celulares a cada 12 meses. Para isso, bastava digitar o número de um contato telefônico no programa e acompanhar num mapa a última localização conhecida do dono do aparelho.
A prática suscitou questionamentos entre os próprios integrantes do órgão, pois a agência não possui autorização legal para acessar dados privados. O caso motivou a abertura de investigação interna e, para especialistas, a vigilância pode ainda violar o direito à privacidade. Procurada, a ABIN disse que o sigilo contratual a impede de comentar.
A ferramenta, chamada “FirstMile”, ofereceu à agência de inteligência a possibilidade de identificar a “localização da área aproximada de aparelhos que utilizam as redes 2G, 3G e 4G”. Desenvolvido pela empresa israelense Cognyte (ex-Verint), o programa permitia rastrear o paradeiro de uma pessoa a partir de dados transferidos do celular para torres de telecomunicações instaladas em diferentes regiões. Com base no fluxo dessas informações, o sistema oferecia a possibilidade de acessar o histórico de deslocamentos e até criar “alertas em tempo real” de movimentações de um alvo em diferentes endereços.
A agência comprou o software por R$ 5,7 milhões, com dispensa de licitação, no fim de 2018, ainda na gestão de Michel Temer. A ferramenta foi utilizada ao longo do governo Bolsonaro até meados de 2021.
Integrantes da ABIN relatam que o mecanismo era usado sem a necessidade de registros sobre quais pesquisas eram realizadas. Na prática, qualquer celular poderia ser monitorado pelo programa sem uma justificativa oficial. A utilização da ferramenta gerou questionamentos internos no órgão, inclusive com relatos de sua utilização contra os próprios agentes. A polêmica resultou em um procedimento interno para apurar os critérios de utilização e a regularidade da contratação dessa tecnologia de espionagem.
Nota DefesaNet
Delgado Ramagen postou em sua conta Twitter
Um integrante do alto escalão da ABIN afirmou ao GLOBO, sob a condição de anonimato, que o sistema era operado sob a justificativa de haver um “limbo legal”. Ou seja, como o acesso a metadados do celular não está expressamente proibido na lei brasileira, a agência operava a ferramenta alegando serem casos de “segurança de Estado” — e, portanto, não estava quebrando o sigilo telefônico. O problema, segundo esse oficial de inteligência, era que o programa podia ser manejado “sem controle” e não era possível saber se foram feitos acessos indevidos.
O uso da ferramenta chegou a ser citado em uma decisão da Justiça fruto de uma operação da Polícia Federal que investigava suspeitas de vazamentos de informações por dois representantes comerciais do programa no Brasil. Uma mensagem de voz enviada pelo WhatsApp por um desses funcionários, cujo conteúdo foi citado no despacho, revelou que ele tinha acesso à localização de celulares.
Questionamento legal
Especialistas e integrantes da Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência (CCAI) do Congresso ouvidos pelo GLOBO questionam a utilização desse tipo de serviço pela ABIN. A lei que regula a agência, de 1999, não prevê entre suas atividades o monitoramento de celulares nem a vigilância da geolocalização de determinados alvos.
— Nesse caso, há três direitos frontalmente violados: o direito à vida privada, à intimidade e à liberdade de locomoção. E não só. A vida do cidadão está em risco quando a geolocalização é feita de maneira indiscriminada — diz Denilson Feitoza Pacheco, presidente da Associação Internacional para Estudos de Segurança e Inteligência (Inasis).
Para o advogado Christian Perrone, diretor de Direito e GovTech do Instituto de Tecnologia e Sociedade, a falta de parâmetro legal para a ABIN comprar e utilizar o programa dá margem a questionamentos sobre a violação do direito à privacidade e intimidade:
Senador da Rede: Randolfe pede ao STF instauração de inquérito para apurar se Bolsonaro interferiu na ABIN
— A própria contratação sem ter um instrumento normativo sobre os padrões de utilização já entraria na linha tênue de ser ilegal, mas a sua utilização gera ainda mais preocupação: na lógica constitucional, se temos direito à privacidade e intimidade, ela só pode ser impactada por uma justificativa de interesse público que seja robusta.
‘Geolocalização remota’
Do ponto de vista legal, a fiscalização sobre as atividades da ABIN cabe ao Poder Legislativo por meio da CCAI. Segundo o senador Esperidião Amin (PP-SC), ex-presidente da comissão, o tema revela a necessidade de atualização do sistema de inteligência.
Lauro Jardim: O patrimônio de Ramagem, o ex-chefe da ABIN de Bolsonaro e candidato de Carluxo
— Precisamos nos preocupar com a defesa do cidadão. Esse é o aspecto que pode surgir com esses programas a pretexto de defender segurança e infraestrutura — afirmou.
Procurado, o ex-chefe da ABIN Alexandre Ramagem, eleito deputado federal com o apoio de Bolsonaro, não quis dar detalhes da utilização do serviço sob a sua gestão:
Cármen Lúcia: ‘Arapongagem é crime’, diz ministra do STF em decisão que impõe limites a decreto de Bolsonaro sobre poderes da ABIN ( Nota DefesaNet – A Ministra que criou a Constituição adaptável às necessidades da Corte, fecha os olhos, para as arbitrariedades que o seu colega faz aliado com PF contra a privacidade dos cidadãos)
— Isso é com a ABIN. Tem contrato, tem tudo. A contratação está toda regular. Se tiver algum questionamento, tem que fazer à ABIN.
A ABIN, porém, não forneceu as informações sobre o caso. Procurada, a empresa responsável pelo programa afirmou que não poderia comentar por questão de sigilo contratual. Em um registro na Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança (ABIMDE), a companhia diz que presta uma série de serviços de inteligência como, por exemplo, o de “geolocalização celular remota” e de “inteligência na dark web”.
A fabricante da ferramenta foi representada no Brasil por Caio Cruz, filho do general Santos Cruz, ex-ministro de Bolsonaro. Caio Cruz não deu detalhes da contratação, alegando sigilo.
ESTRUTURA PARALELA
Escândalo das rachadinhas
Durante a maior parte do governo Bolsonaro, a ABIN foi chefiada pelo delegado da Polícia Federal Alexandre Ramagem, que coordenou o esquema de segurança do presidente na campanha de 2018. À frente da agência, Ramagem mantinha contato direto com o então mandatário e seus filhos. Em 2020, a revista Época revelou que a ABIN teria produzido ao menos dois relatórios de orientação para o senador Flávio Bolsonaro e seus advogados no pedido de anulação da investigação do escândalo das rachadinhas. A autenticidade e procedência foram confirmadas pela defesa do senador.
Negócios de Jair Renan
No ano passado, O GLOBO mostrou que um agente disse à PF que recebeu missão extraoficial para levantar informações de negócios envolvendo Jair Renan, o filho mais novo do presidente. O objetivo, segundo ele, era prevenir “riscos à imagem” de Bolsonaro.
Atuação na CPI da Covid
Durante a CPI da Covid, a ABIN teria atuado para levantar informações sobre irregularidades nos estados e municípios relacionadas à pandemia, conforme revelou a revista Crusoé. O objetivo era mudar o foco dos trabalhos da comissão parlamentar.
Fora dos relatórios
Diante dos episódios, que não foram registrados no banco de relatórios da ABIN, Alexandre Ramagem, passou a ser acusado de montar estrutura paralela de apuração de casos de interesse de Bolsonaro. Em 2021, ele foi convocado para ir à Câmara dos Deputados e negou irregularidades:
— Primeiro, se tiver algo paralelo na ABIN, tem que ter um servidor atuando de forma ilícita ou a utilização do sistema de forma ilícita. Portanto, condenável. E nós apuramos e, até o momento, pelo contrário, demonstramos que não tem. Nós não fazemos monitoramento de pessoas.
Nota DefesaNet Notas de um Fiel Observador, publicado em Edição 16 Julho 2021 Inteligência Uma das prioridades atuais é a modernização dos sistemas de inteligência das Forças Armadas. Nosso entorno estratégico está tomado de agentes e forças extrarregionais. A luta incessante contra o narcotráfico e o crime organizado requerem uma inteligência militar modernizada com sistemas avançados de COMINT (Communications Intelligence) e ELINT (Eletronicss Intelligence, sensores eletro-ótpticos e ferramentas cibernéticas. Como se diz, o investimento em inteligência é um dos menores e mais efetivos. As ordens de grandeza na Inteligência são muito pequenas, ínfimas frações em comparação com os custos das Forças convencionais, mas os resultados são bastante significativos. A inteligênncia pode vencer a guerra mesmo antes dela começar. A instabilidade política no Brasil e nos países vizinhos, agravadas pela pandemia e pelas mudanças de governo, com a movimentação de diferentes atores requer mais atenção e capacidades ampliadas dos serviços de inteligência da Marinha, Exército e Aeronáutica, e a necessidade urgente da criação de uma agência de inteligência para o Ministério da Defesa. |