ABIN – Marco Cepik – Atos golpistas, Amazônia e cibersegurança são prioridade
Fábio Serapião
Folha de São Paulo
11 Junho 2023
Considerado um dos principais pesquisadores da área de inteligência governamental, o professor Marco Cepik, 55, afirma que o presidente Lula (PT) estipulou como prioridades da ABIN (Agência Brasileira de Inteligência): a proteção do Estado democrático de Direito, a questão dos impactos das mudanças climáticas e as ameaças cibernéticas.
Cepik é o atual diretor da Escola de Inteligência da ABIN, indicado pelo diretor-geral da instituição, Luiz Fernando Côrrea.
O professor universitário e autor de mais de uma dezena de livros aponta o 8 de janeiro como exemplo da importância de se ter uma “atividade de inteligência que seja capaz de entender e antecipar as vulnerabilidades e os riscos” de eventos como os ataques golpistas de apoiadores de Jair Bolsonaro (PL).
Em entrevista à Folha, o diretor da escola da ABIN traçou um cenário sobre a imagem dos serviços de inteligência perante a sociedade e defendeu mais transparência —e menos “sigilo de 100 anos”— para a população compreender o trabalho desempenhado pela agência.
O episódio do 8 de janeiro levantou o debate sobre a atuação da ABIN. Os ataques mostram a necessidade do trabalho de inteligência? Sem dúvida. O que aconteceu no 8 de janeiro é muito grave porque não havia acontecido no Brasil ainda um ataque tão sistemático às instituições. Aqueles prédios são símbolos fortes da institucionalidade democrática constituída a partir da Constituição de 1988. Qualquer ataque àquilo é um ataque à alma do Brasil.
A prevenção desse tipo de coisa é importante, e os fatos estão sendo averiguados no âmbito parlamentar, no âmbito da Justiça Federal e por meio de sindicância interna de cada órgão. Isso sinaliza a necessidade de uma atividade de inteligência que seja capaz de entender e antecipar as vulnerabilidades e os riscos de que esses eventos possam ser recorrentes. Nós não queremos outro 8 de janeiro na história do Brasil.
Como a ABIN está hoje em comparação a outros serviços de inteligência, como CIA ou os russos? Por definição legal, por compromisso histórico e por parâmetro constitucional, o Brasil não realiza operações de inteligência no exterior. Então nós nos aproximamos mais do modelo de serviço canadense, que faz a contrainteligência, protege o país e faz a produção de conhecimento para assessoramento da decisão.
Recentemente tivemos casos de espiões russos com identidade brasileira, o que mostrou uma espécie de uso do Brasil para formar espiões. Não é compatível com a tradição diplomática brasileira, com os compromissos internacionais do Brasil, a realização dessas atividades. Somos críticos desse comportamento das grandes potências, de interferência nos assuntos internos dos outros países.
Nós temos uma agência modesta em termos de pessoal e orçamento, que tem uma necessidade de ter mais recursos. Então precisamos de uma ABIN mais forte, com mais recursos para realizar essas missões, mas são essas missões [contrainteligência e assessoramento].
Um dos desafios é a questão da segurança cibernética? Os órgãos de inteligência de modo geral surgiram no século 20, ainda no mundo analógico. Eles passaram pela primeira revolução digital, se adaptaram. Hoje nós estamos vivendo uma segunda revolução digital. A primeira revolução digital afetou o serviço de inteligência porque aumentou muito a capacidade dos sensores de imagens, de sinais, em obter informação. Agora a gente precisa aproveitar a segunda revolução digital para melhorar a nossa capacidade de analisar essas informações.
Quais são as outras prioridades? No âmbito da Escola de Inteligência da ABIN, que está alinhada com a administração da agência, em função da orientação que o presidente da República deu, nós temos alguns temas prioritários: a proteção do Estado democrático de Direito, a proteção contra as ameaças cibernéticas e uma priorização para a questão dos impactos da mudança climática sobre as vulnerabilidades e os conflitos no Brasil —que dá uma prioridade grande para a questão amazônica hoje e para vulnerabilidade dos povos tradicionais.
A respeito da imagem dos serviços de inteligência, o cidadão comum não entende muito o que exatamente a ABIN faz… É uma imagem que foi projetada pelo que os serviços de inteligência no mundo todo fizeram ao longo do século 20. A gente acha que essas coisas são muito antigas. Os serviços de inteligência foram se desenvolvendo porque os governantes precisavam de informações para tomarem decisões sobre assuntos que ameaçavam a segurança do país. Eles produzem conhecimento como as universidades, como os institutos de pesquisa, como os institutos de estatística. São um insumo para a tomada de decisão governamental.
Então por que ter o serviço de inteligência especificamente? Porque os serviços de inteligência produzem conhecimento sobre temas específicos, sobre temas que são afetos à segurança nacional. Ou àquelas vulnerabilidades que podem se tornar um problema de segurança. As ameaças surgem do conflito de interesses, de vontades antagônicas, mas elas surgem também da detecção de vulnerabilidades no relacionamento entre os atores. Esses atores podem ser países, podem ser empresas, podem ser grupos da sociedade.
Então a atividade de inteligência é primordialmente uma atividade de produção de conhecimento. O serviço de inteligência provê conhecimento para a decisão governamental em áreas sensíveis para segurança da cidadania e do Estado.
A população em geral vê serviços de inteligência como a ABIN atrelados a arapongagem e espionagem. Por que existe essa imagem? Quando esses serviços se organizam, no final do século 19 e começo do século 20, o trabalho policial envolveu também o policiamento político. Em alguns países, a repressão à dissidência interna, ao pensamento, à oposição. Isso se tornou uma marca, uma praxe dos serviços de inteligência internos.
Como a atividade de inteligência acessa as informações necessárias para assessorar o presidente? As atividades de inteligência de organizações civis como ABIN são muito restritas naquilo que ela pode fazer em termos de contraespionagem.
Impedir que o Brasil sofra ataques de espionagem de outros países, isso é uma tarefa. E isso tem que ser feito por meios também sigilosos, tem que ser feito por meio da educação dos órgãos para proteção do conhecimento; dos nossos ativos de conhecimento na ciência, na tecnologia, conhecimento tradicional.
Mas além da educação, da sensibilização para os riscos de segurança, tem que impedir ativamente também que outros órgãos de inteligência de outros países acessem coisas que são protegidas legalmente no Brasil. Um percentual muito grande da produção de conhecimento é feito ostensivamente, acessando fontes abertas. A atividade de inteligência no Brasil não é de policiamento político, e isso já é de muito tempo.
O sr. cita em um dos seus livros o dilema da tensão entre a transparência e a eficiência do serviço de inteligência. É possível ter uma relação equilibrada? Acho que sim, isso é uma evolução histórica no caso do Brasil. A Lei de Acesso à Informação foi um marco muito importante nisso. Precisa fazer um estudo muito forte do que está classificado como segredo, se aquilo precisa ser classificado ou não. Essa é uma das tarefas que o dr. Luiz Fernando tem aqui na agência: a gente delimitar mais claramente o que precisa ser classificado.
Como na prática aumentar o controle público? Estamos fazendo isso aqui agora. Em primeiro lugar são os órgãos de inteligência se abrirem mais para o contato com a sociedade civil, com os meios de comunicação, com as universidades e intercambiar conhecimentos de maneira mais livre. Outro caminho é por meio de políticas de transparência ativa. Nós também estamos promovendo, há uma série de produtos da atividade intelectual dentro da ABIN que podem ser acessados e devem ser acessados pelo público.
Trata-se de aumentar a transparência do material já produzido para a população ver o que a agência produz? Exatamente isso. A gente precisa aperfeiçoar os mecanismos de controle externo. O que a legislação determina é a proteção da identidade dos servidores e daquelas informações que recebem a classificação do sigilo. Mas a classificação do sigilo tem tempo para cair, embora tem gente que classificou coisas com 100 anos. Trata-se do rol do que que é a informação classificada e o que não é classificada. O que tem que fazer é aperfeiçoar e agilizar a resposta a um pedido de acesso à informação, não pode ser simplesmente “não”.
RAIO-X
Marco Cepik, 55
Atual diretor da Escola de Inteligência da ABIN. É professor titular de relações internacionais e política comparada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e doutor em ciência política. Atua nas áreas de segurança internacional, governança digital e estudos de inteligência
Doutor em ciência política. Atua nas áreas de segurança internacional, governança digital e estudos de inteligência