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Guerra Híbrida STF – O crime no Rio de Janeiro na era pós-ADPF 635

Barricadas vão desde as mais simples, e de caráter transitório (que podem constar de montes lixo aos quais se ateia fogo, com móveis e carros atravessados nas vias), até as mais complexas, com pedaços de trilhos firmemente chumbados no chão e também blocos de concreto.

Ricardo Pereira
Especialista em Conflitos Urbanos
Especial para DefesaNet
assuntosmilitares@assuntosmilitares.jor.br

Nota DefesaNet

Um ano e meio após o artigo “A ADPF 635 e seus Efeitos sobre o Combate ao Crime no RIO de JANEIRO” (JAN2022), Ricardo Pereira analisa os impactos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 635 (ADPF), deferida pelo relator, Ministro Edson Fachin, em 5 de junho de 2020.

Recomendamos a leitura dos dois artigos que trazem análise a partir de quem convive e cobre os eventos no terreno, como o único brasileiro “Especialista em Conflitos Urbanos“.

A implantação da ADPF 635 está criando efeitos inesperados como o caso Light (ver matéria abaixo).

– O crime no Rio de Janeiro na era pós-ADPF 635 Junho 2023


A ADPF 635 e seus Efeitos sobre o Combate ao Crime no RIO de JANEIRO Janeiro 2022


A CONTA DO CRIME – Furto de energia em áreas violentas afeta caixa de distribuidoras no Rio

Guerra Híbrida Brasil – Comandante PMERJ – Apreensão Recorde de Fuzis é Sinal de Alerta – Março 2023

O Editor

Um bom tempo já se passou desde que entraram em vigor as restrições determinadas pelo Supremo Tribunal Federal em relação às operações das forças de segurança cariocas em comunidades a não ser em casos ditos “absolutamente excepcionais”. Ao longo desse tempo, o crime organizado aproveitou esse hiato para “respirar” e reforçar seu controle sobre essas áreas. Para quem não tem ideia da quantidade de comunidades existentes no Rio de Janeiro e da quantidade de habitantes que elas abrigam, os números surpreender: o censo realizado em 2010 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE indicou a existência de 793 favelas na cidade, onde vivia 22% da população, ou seja — na ocasião —cerca de 1.400.000 pessoas (sendo que, se considerada toda a região metropolitana, ou o chamado Grande Rio, esse total subiria para mais de 1.700.000 habitantes.

No entanto, um levantamento mais recente, de 2021, revelou uma significativa expansão na quantidade desse tipo de assentamento, indicando que o crime organizado atua em 1.413 comunidades no Rio (cerca de 12% do total de favelas existentes no país, sendo que, em números redondos, o tráfico domina 81% dessas áreas (a maior facção controla 828 favelas, a segunda atua em 238 e a terceira tem em suas mãos 69), ficando os restantes 19% na mão de milícias. Vale a pena ressaltar que muitas dessas favelas cresceram tanto que acabaram se unindo, formando os chamados “Complexos” (Alemão, Penha, Maré, Pedreira, Lins, etc.), compostos de várias comunidades. O Complexo do Alemão, por exemplo, é composto de 13 favelas, enquanto o da Penha — contíguo a ele — agrupa 15, e o da Maré engloba 17).

Esses números, porém, não devem ser considerados como definitivos, pois o “mapa” de quem domina quais áreas é por vezes submetido a mutações, em razão da disputa pelo controle de território. Sobre esse aspecto, é importante apontar que, para o crime organizado, a ação da polícia é diferenciada. Isso porque as forças de segurança realizam operações que não têm o objetivo de controlar territórios, ou seja: a polícia entra, cumpre sua missão (por exemplo: cumprir mandados de prisão) e sai. Via de Regra os criminosos resistem, mas há sempre a opção de retraírem caso se vejam em desvantagem, retornando ao local quando a polícia sair.

Mas essas opções não existem quando se trata de incursões de outras facções ou da milícia, pois essas almejam expulsar seus adversários e assumir o controle físico de determinadas áreas, para aumentar sua presença, influência e lucro. A rivalidade entre esses grupos é extremamente exacerbada, e incluem pesados castigos a moradores que, por exemplo, se vistam com roupas que de alguma forma simbolizem grupos rivais, seja por suas cores ou estampas, ou sobre jovens que estejam de alguma forma se relacionando ou namorando com moradores de áreas consideradas como “inimigas”. Assim, esses confrontos, quando ocorrem, são de extrema violência.

Outra diferença importante é que as forças de segurança atuam dentro de regras de engajamento bem definidas, com normas explicitando quando pode ou não abrir fogo, etc. A polícia toma todos os cuidados possíveis para evitar vitimizar os moradores. Os criminosos, por sua vez, utilizam seu armamento sem qualquer preocupação sobre onde os projéteis irão parar ou o que irão atingir. Muitas das vítimas são atingidas pelas chamadas “balas perdidas” mesmo estando em suas casas, confiando que as paredes serão proteção suficiente — o que nem sempre acontece, pois munições de 5,56mm e 7,62mm podem perfurá-las, principalmente se os tijolos não estiverem recobertos por revestimento, como é o caso na maioria das vezes.

Quando ao argumento de que a polícia nem sempre segue as regras de engajamento, pode-se dizer que esses casos se configuram como exceções, e não são tão numerosas quanto a mídia pretende mostrar. Para a imprensa, invariavelmente, sempre que um morador de comunidade é atingido por uma “bala perdida”, a culpa é jogada sobre as forças de segurança. Além disso, muitas vezes as baixas entre os criminosos são apontadas como resultado de “massacres” ou “chacinas”, mesmo que nem tenha havido tempo hábil para algum tipo de investigação.

O domínio dos criminosos sobre as comunidades é muito forte, sendo exercido com mão de ferro. Por exemplo: uma ambulância só tem acesso a uma comunidade dominada para recolher um doente, ou um rabecão para apanhar um cadáver, ou a concessionária de energia elétrica para efetuar algum reparo, se sua entrada for autorizada pela facção dominante. Hoje em dia, a presença das UPP (Unidade de Polícia Pacificadora), que experimentaram um período positivo quando de sua implantação, é — na maioria das comunidades onde estão instaladas — meramente “tolerada” pelos criminosos, desde que “não façam marola”, ou seja, não incomodem as suas atividades.

A proibição das incursões policiais tem também grandemente favorecido um tipo crime diferente do tráfico de drogas: trata-se do roubo de cargas. Frequentemente caminhões são abordados em estradas ou já no perímetro urbano e seus motoristas obrigados a desviarem seu trajeto, entrando em comunidades, onde a carga é retirada e armazenada, e o veículo é abandonado. Para angariar a simpatia dos moradores, às vezes é permitido que os mesmos retirem para si parte das cargas transportadas (as que não são do interesse dos criminosos que efetuaram o roubo, por falta de espaço de armazenamento ou por sua baixa lucratividade).

Além de disporem de farta munição (tanto que frequentemente atiram no modo automático, e não no semiautomático), e de normalmente — em função de muitas das favelas se encontrarem em terrenos acidentados — ocuparem posições mais altas do que as forças de segurança (topos de escadarias, lajes, etc.), os criminosos contam com armamento igual ou muitas vezes mais potente que o dos policiais (é inquietante a descoberta de fuzis antimaterial, de calibre 12,7mm, em poder de grupos criminosos), conhecimento inigualável do terreno, “apoio” de parte dos moradores (em função de parentesco, amizades, ou ameaças) e muitas vezes de um certo grau de “imunidade” quando se trata da imprensa.

Uma pergunta recorrente toda vez que se trata desse assunto é: “Mas como as armas chegam às mãos dos traficantes e milicianos?”. Em recente entrevista concedida a um canal do YouTube, o delegado Fabrício Oliveira, que chefia a Coordenadoria de Recursos Especiais (CORE) da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, e que foi o primeiro titular da Delegacia Especializada em Armas, Munições e Explosivos – DESARME, criada em 2017, declarou que foi constatado que a imensa maioria dessas armas provém do mercado negro de outros países, principalmente dos Estados Unidos, utilizando rotas marítimas, aéreas e terrestres (nesse último caso, via Paraguai). Disse ainda que a grande maioria dessas armas são capazes de tiro automático (leia-se: armas que possam disparar em rajadas), um tipo de armamento que não é vendido para CACs (Caçadores, Atiradores Desportivos e Colecionadores), o que põe por terra o mito de que esse conceito explicaria a origem dos fuzis do crime. Revelou também que por vezes essas armas são passadas por empréstimos a outros grupos de criminosos para que esses executem grandes roubos ou invasões de território de rivais. Segundo ele, um estudo da Departamento Geral de Polícia Especializada estimou que, no Rio de Janeiro, havia 60.000 criminosos em liberdade (em comparação, existem aproximadamente 8.000 policiais civis, e cerca de 45.000 policiais militares, dos quais apenas metade trabalha nas ruas), e se considerarmos que possivelmente metade deles utilizem fuzis, o total desse tipo de armas no Rio poderia chegar a 30.000 unidades, quantidade imensamente superior aos cerca de 500 fuzis apreendidos pelas forças de segurança a cada ano, como em 2022. E isso sem considerar que, no Estado, há cerca de 51.000 presos ligados a facções criminosas.

Em resumo, poderíamos relacionar alguns dos principais efeitos da proibição de operações policiais em comunidades, sob o ponto de vista do autor, a maioria deles estabelecidos através de experiência pessoal:

  1. Aproveitando o “afrouxamento”, o crime organizado procurou reforçar seu domínio sobre as áreas que atua, o que se reflete, por exemplo, no crescimento do número e da efetividade de barricadas; Estes obstáculos físicos à progressão de viaturas impedem o acesso de viaturas policiais ou “canalizam” seu progresso por vias intensamente batidas pelo fogo dos fora-da-lei. Os tipos de barricadas vão desde as mais simples, e de caráter transitório (que podem constar de montes lixo aos quais se ateia fogo, com móveis e carros atravessados nas vias), até as mais complexas, com pedaços de trilhos firmemente chumbados no chão e também blocos de concreto. A remoção desse segundo tipo é muito difícil, e frequentemente exige máquinas como retroescavadeiras, etc., e mesmo assim nem sempre é possível sua retirada. De qualquer forma, a tropa embarcada tem sempre que desembarcar (para progredir ou até mesmo remover barricadas simples, compostas de móveis ou veículos atravessados na rua), e seus integrantes se convertem em alvos convidativos para os criminosos.
  2. Crescimento expressivo do Comando Vermelho – CV, a maior facção criminosa do Rio de Janeiro — as outras duas são a AdA (Amigos dos Amigos) e o TCP (Terceiro Comando Puro).
  3. Como já mencionado, aumento quantitativo e qualitativo do armamento nas mãos da criminalidade
  4. Presença acentuada, dentro das áreas dominadas pelo tráfico, de criminosos oriundos de outros estados e que aqui se sentem protegidos para permanecerem fora do alcance da Lei ou para continuarem comandando as ações em suas respectivas áreas. A Polícia Civil alegadamente já identificou a presença no Rio de centenas de criminosos provenientes de onze estados.
  5. Diminuição da participação da Polícia Federal – PF e da Polícia Rodoviária Federal – PRF em ações conjuntas com as forças de segurança cariocas.
  6. Embora o número de operações policiais em comunidades tenha sido drasticamente reduzido, a violência dos enfrentamentos, quando ocorrem, aumentou. Com o crime organizado fortalecido e mais fortemente posicionado em suas “cidadelas”, o nível da resistência oposta às forças de segurança cresceu. O Comando Vermelho, por exemplo, instruiu seus militantes a não abandonarem suas armas ou suas posições quando confrontados pela polícia ou grupos rivais, sob pena de punição severa, que pode incluir a morte. Isso faz com que o risco de “danos colaterais”, impostos à população das áreas conflagradas, aumente exponencialmente.
  7. Redução da participação da população das áreas dominadas no auxílio ao combate ao crime organizado, o que era feito principalmente através do Disque Denúncia, reportando a localização de esconderijos de indivíduos foragidos, ou informando locais onde havia grande quantidade de drogas ou de armas escondidas.

A solução desse complexo problema não é fácil nem rápida, e exige inúmeras providências em diversos segmentos da administração pública. Mas de uma coisa não se tem dúvida: a solução demanda um endurecimento da legislação, trazendo penas mais duras, que realmente possam ter um efeito desencorajador sobre aqueles que pensam em seguir o caminho do crime. Muitas vezes, um criminoso que é ativo no tráfico, porta fuzil, atira contra policiais, põe fogo em ônibus e, enfim, causa um sem número de problemas, recebe uma pena relativamente leve em comparação aos seus delitos e, portanto, em pouco tempo poderá ser libertado e retornar ao crime.

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