HOMICÍDIOS MOLECULARES
Fábio Costa Pereira
Procurador de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, atua no Tribunal de Justiça Militar do RS. É Presidente da Associação Brasileira de Estudos de Inteligência e Contrainteligência- ABEIC.
Escrevi, recentemente, dois artigos buscando explicar as correlações mais importantes que se vinculam aos altos níveis de violência e insegurança que a sociedade brasileira, nas últimas três décadas, vem experimentando.
Nos artigos Guerra Civil Molecular e Revolução Molecular tento demonstrar como a destruição da coesão social, patrocinada por altas taxas de criminalidade, incapacidade do estamento burocrático no poder em manter a paz e a ausência de respostas, à altura, aos ilícitos praticados, ganharam contornos por demais complexos, infletindo o país para um estado de permanente insegurança interna.
O front do prazer (referido no artigo Revolução Molecular), onde todo o espectro das pulsões e vontades humanas se concentra, é explorado pelos revolucionários e guerreiros moleculares para atingirem os seus objetivos.
Humanos sem freios que limitem os seus impulsos, realizando tudo o quanto lhes garanta a satisfação de seus desejos, ainda que em prejuízo dos demais que o circundam, não conseguem viver em um contexto social ordeiro e democrático.
Nunca é demais lembrar que a observância de códigos e regras que limitem o espectro da ação, da vontade humana e da expressão desmensurada dos desejos é essencial para a pacífica coexistência em sociedade.
Assim, quando dezenas, centenas e milhares de “revolucionários” e “guerreiros” moleculares juntam-se ao front do prazer, não mais cumprindo ou aceitando as regras de convívio social, a sociedade que a esta coesão dá sustentação, colapsa, o que permite a implantação de outro modelo de convivência social, distópico em sua ideia inicial e despótico em sua consecução prática.
Os revolucionários e guerreiros moleculares, ao agir, seguem, ainda que sem a exata noção disto, os ensinamentos de Saul Alinsky ditados em suas Rules for Radicals, onde prega que “a questão nunca é a questão, a questão sempre é o poder”.
Independentemente do assunto ou do fato que os guerreiros e revolucionários moleculares utilizarão como instrumento de ação, diante da magnitude de seus fins, que a tudo julgam superiores, inclusive a justificar os meios empregados, o que lhes moverá será o resultado em benefício de sua “causa”. O credo e o ideário por eles professados vêm sempre em primeiro lugar.
O presente artigo bem que poderia se chamar de “roubo molecular”, “corrupção molecular”, “fake news molecular” ou outro ilícito qualquer, pois, em última análise, o que realmente importa é o que está subjacente ao crime telado.
É preciso que se tenha em mente que o fundamental não é o que está se debatendo de forma aparente, e sim o motivo pelo qual o tema está em debate e o que ele efetivamente significa ou quer representar.
Resolvi, por esses motivos, para finalizar a trilogia Molecular, abordar esta temática que guarda profunda conexão com as duas anteriores, dando-lhe o nome de Homicídios Moleculares.
Estaremos diante de um Homicídio Molecular quando um ou alguns homicídios, devidamente pinçados de um contexto maior, de morticínio amplo, geral e irrestrito de pessoas de todas as raças, sexos, orientações sexuais ou idades, como ocorrente no Brasil, por matizes que interessam aos revolucionários e guerreiros moleculares em sua luta, são utilizados para recrutar outros como eles e colocar a sua causa e não o tema homicídio em evidência.
A motivação ou as motivações do homicídio colocado sob os holofotes dos guerreiros e revolucionários moleculares, portanto, quando este é “molecularizado”, não é o que os inquieta ou os impulsiona a agir, e sim a capacidade de mobilização e visibilidade que dado homicídio, devidamente explorado, pode lhes conferir.
O caminho da mobilização é, ao mesmo tempo, simples e genial, pois basta pegar-se um fato dentro de um conjunto de fatos de igual grandeza e gravidade, deixando os demais de lado, dando-se ao fato pinçado contornos de luta única e exclusiva por direitos perdidos ou solapados, quando o que importa aos revolucionários e guerreiros moleculares é, tão somente, a Guerra e a Revolução por eles travada.
Vamos à demonstração do que estou falando.
No Brasil, nos últimos dez anos, cerca de 490 mil brasileiros perderam a vida vitimados por conta de homicídios dolosos consumados, aquele em que o seu autor, ao agir, tem a intenção de obter o resultado morte.
Neste largo período temporal, a cada singular ano, em nosso país, aproximadamente 49.000 mil brasileiros perderam a vida pela singular vontade de nossos implacáveis homicidas, a razão de 4.083 por mês, 136 por dia e 5,6 por hora.
Esses inflados números, que espelham apenas parte da crônica violência que nestas terras fez morada, como consequência, conferiram, ao Brasil, uma das primeiras posições no ranking dos países com maior número de homicídios dolosos em termos absolutos. Em 2017, apenas para ilustrar, nosso torrão natal registrou cerca de 12% (+ 55.900) do número total dos homicídios praticados ao redor do globo (+ 464.000) .
De igual sorte, na década usada como referência, a segunda dos anos 2000, o nosso país, no Index of Peace, ano a ano, vem despencando e perdendo posições, aproximando-se, a passos largos, dos indicadores dos países mais inseguros para se viver, muito disto por conta da nossa elevada taxa de homicídios.
Apenas para se ter uma ideia da “queda” brasileira em seus níveis de paz e segurança, o país, em 2010, entre os 169 países que constam do index, ocupava a já preocupante posição de número 84.
Dez anos depois, no ano de 2020 para ser mais exato, aquela posição que já era desconfortável para um país como o nosso, uma das maiores economias do planeta e aspirante à “player” mundial, tornou-se crítica. Ocupamos, hoje, a posição de número 126.
Perdemos, em uma década, nada menos do que 42 posições no ranking de paz, a reforçar o nosso acelerado caminho para “brigar”, com os países mais violentos do mundo, por um nada invejável lugar de protagonismo.
Neste absurdo cenário, de cerca de SEIS homicídios por hora, todos os dias da semana, durante os TREZENTOS E SESSENTA E CINCO dias do ano, faça chuva ou faça sol, brasileiros, como nós, são inclementemente mortos por criminosos que, se eventualmente forem identificados, processados ou condenados gozarão de uma série de benefícios tanto processuais quanto durante o cumprimento de sua pena (abordarei o tema em outro artigo), enquanto a única coisa que será destinada à vítima será uma lápide fria e à família desta a prisão perpétua da dor.
Espelham os números como apresentados que, na mesma hora em que ocorrente o homicídio molecular, que será explorado à exaustão por guerreiros e revolucionários moleculares, outros cinco, que sequer por eles serão mencionados, em que pese igualmente graves, cairão no esquecimento.
Os Guerreiros e Revolucionários Moleculares, para o homicídio que elegeram como mote de sua atenção, clamarão por pena exemplar ao seu autor, antecipando-lhe a condenação e esquecendo-se do primado, que tantas vezes reverberam para si e para os seus, do princípio da presunção da inocência até o trânsito em julgado da condenação criminal.
Indagados, momento posterior, sobre outros crimes de igual grandeza, sobre a necessidade do rigor na punição e na exasperação das regras relativas ao cumprimento da pena aplicada aos homicidas, dirão que a severidade da punição e da pena de nada adiantam e que a sociedade, antes de punir, deve recuperar e acolher o criminoso em seu seio, propondo inúmeras medidas alternativas à prisão.
A lógica do guerreiro e do revolucionário molecular, como facilmente se pode perceber, é marcada por um “duplipensar” que navega, sem qualquer problema, entre a coerência e a incoerência do discurso, e se amolda ao sabor das circunstâncias.
Como resumo da ópera, para os Guerreiros e Revolucionários Moleculares, a lógica “revolucionária” não se prende e não pode se prender aos mesmos ditames da lógica seguida por nós, comuns dos mortais.
É importante recordar que, em matéria de homicídios, toda e qualquer vida perdida importa. Por esse motivo, independentemente do homicídio praticado, da qualificação do autor ou da vítima, este deve ser punido com todo o rigor da lei. De outra sorte rumaremos a passos largos para a anomia.
Vidas humanas sempre importam!