Marcelo Godoy
O Estado de S.Paulo
06 de janeiro de 2020
O ataque americano que matou o general Qassim Suleimani provocou reações diferentes entre os militares brasileiros. Generais da ativa enfatizaram o papel do iraniano na desestabilização do Oriente Médio, promovendo forças irregulares contra interesses americanos e israelenses. Oficiais – principalmente da reserva – preferiram lembrar a violação da soberania iraquiana, pois o ataque aconteceu em Bagdá sem autorização do governo do país, um aliado americano na luta contra o Estado Islâmico.
O Estado ouviu três generais e um coronel da ativa sobre a crise no Oriente Médio. Todos reconheceram que o governo Jair Bolsonaro deve se posicionar ao lado dos EUA em caso de retaliação iraniana, fato confirmado por um dos mais próximos auxiliares do presidente.
“Os atos do general Suleimani mostraram aos americanos que a conciliação não era o melhor caminho”, disse um deles, que trabalhou na área de informações. “Tudo deve ter sido pesado pelo governo americano, que baseou sua ação nos dados de inteligência de que dispunha.”
Outro general lançou a pergunta sobre o que Suleimani fazia em Bagdá e afirmou que o Irã devia responder a essa questão. Seus companheiros concordaram com a indagação. Dono de quatro estrelas, o oficial disse estranhar a reação contra a ação americana que, segundo ele, parecia esquecer o papel de Suleimani nos conflitos do oriente Médio. O terceiro general considerou que o ataque americano foi dirigido a um alvo legítimo – um militar.
Apenas um deles – outro general de quatro estrelas – enfatizou a tradição de moderação de nossa política externa e de seu esforço de promover a paz. O general afirmou que o Brasil devia guardar distância do conflito, manter cautela e incentivar a conciliação, como era a tradição de nossa diplomacia até o incompreendido Ernesto Araújo assumir o Itamaraty – o chanceler divulgou nota alinhando o Brasil à posição americana na “guerra contra o terror”.
As palavras do general – conhecido por sua moderação – se aproximaram das considerações de seus colegas da reserva. O primeiro a defender ao site UOL a neutralidade do País na crise atual foi o ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e do Estado Maior do Exército, general Sérgio Etchgoyen. Em seguida, foi a vez dos generais Maynard Santa Rosa, que disse que manter o silêncio seria a melhor estratégia do governo, e Santos Cruz, para quem “qualquer posicionamento fora da neutralidade e da imparcialidade é falta de noção de consequência e responsabilidade”.
Por fim, juntou-se a eles o general Rocha Paiva, que divulgou áudio questionando a legitimidade da ação americana, enfatizando a violação da soberania iraquiana e classificando-a de "precedente perigoso", a exemplo do que já havia feito o general Etchgoyen. “O general Etchgoyen não representa os generais do atual Alto Comando do Exercito”, disse um dos generais ouvidos pelo Estado, deixando clara a diferença de reação entre o ex-chefe do GSI e generais mais próximos de Bolsonaro.
Ao demonstrar preocupação com a possibilidade de os Estados Unidos usarem o mesmo metro usado no Iraque caso um alvo de seu interesse estiver no Brasil, Etchgoyen, parece lembrar outro chefe do Estado Maior, o general Pedro Aurélio de Góis Monteiro. Ele e seu colega, o ministro da Guerra, Eurico Gaspar Dutra, confrontaram as pretensões americanas de ocupar bases no Norte e no Nordeste durante a 2º Guerra.
Em 11 de novembro de 1940, o então ministro da Guerra enviou ofício secreto ao presidente Vargas. “Este, sr. presidente, é o problema fundamental do Brasil contemporâneo. Precisa armar-se para que não se transforme, de um momento para outro, numa nova Mongólia americana, sujeito ao audacioso assalto dos mais fortes”. O Brasil, como se sabe, deixou a neutralidade defendida por Dutra e Góis Monteiro e entrou na guerra. Mas foi difícil segurar a impetuosidade americana.
Em dezembro de 1941 chegavam a Belém, Natal e Recife os primeiros americanos. Devia ser pessoal técnico. Em vez disso, chegaram fuzileiros fardados e armados para o espanto dos generais comandantes das praças: Zenóbio da Costa, Mascarenhas de Moraes e Cordeiro de Farias. O mal-entendido foi superado. Todos os americanos foram declarados técnicos da Panair. E o embaixador brasileiro em Washington, Carlos Martins, acabou levando a culpa pela “confusão”.
Mesmo após as vitórias da FEB, Dutra não escondia o ressentimentos contra os aliados. “Não foram poucos os encargos e sacrifícios que recaíram sobre o Brasil na 2ª Guerra Mundial. (…) E, a despeito dos sacrifícios de vidas e prejuízos materiais, o Brasil não logrou qualquer compensação quer na Conferência das Reparações quer na Conferência de Paz, enquanto até países que se mantiveram neutro foram largamente aquinhoados”, escreveu. O marechal deixava claro que os interesses de um País não são satisfeitos apenas por meio da satisfação a mandamentos morais, religiosos ou ideológicos.
Sua história e a reação de nossos militares sobre a posição do governo Bolsonaro diante do ataque americano demonstram que as questões geopolíticas e as relações internacionais estão muito além da visão binária que domina hoje a cúpula do Itamaraty. O alinhamento automático na chamada luta antiterror até pode, no fim, limitar-se à retórica do chanceler Araújo. Reconhecer, no entanto, o papel de Suleimani na guerra híbrida entre americanos e iranianos não deve levar ao esquecimento dos interesses nacionais nem colocar o Brasil em posição de subalternidade ou em conflito com os objetivos próprios do País.