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Vladimir Putin vai sobreviver?

 George Friedman
Stratfor
Tradução e edição: Nicholle Murmel

 
Há uma visão geral de que Vladimir Putin governa a Rússia como um ditador, de que ele derrotou e intimidou seus oponentes e se posta como uma ameaça às nações vizinhas. É uma visão razoável, mas que talvez precise ser revista sob a luz dos últimos acontecimentos.
 
Ucrânia – a aposta para reverter o declínio russo
 
Logicamente, devemos começar pela Ucrânia. O país é vital para a Rússia como um pára-choque contra o Ocidente e como rota para fornecer gás à Europa – a base da economia russa. Em 1º de janeiro deste ano, o presidente ucraniano era Viktor Yanukovich, com inclinação abertamente favorável à Moscou. Dada a complexidade da política e da sociedade ucraniana, seria pouco razoável afirmar que durante sua administração o país era apenas uma marionete. Mas é coerente dizer que os interesses russos estavam seguros.
 
Isso era extremamente importante para Vladimir Putin. Parte da razão pela qual ele substituiu Boris Yeltsin, em 2000, foi a performance do então presidente durante a guerra em Kosovo. A Rússia tomou partido dos Sérvios e foi contra uma ofensiva da OTAN à Sérvia – a posição de Moscou foi ignorada, simplesmente não importava para o Ocidente. Ainda assim, quando a campanha aérea falhou em conseguir a rendição de Belgrado, a Rússia negociou um acordo que permitiu aos Estados Unidos e outras nações da OTAN entrar na região e administrar Kosovo. Como parte do acordo, foi prometido que as tropas russas teriam um papel significativo na pacificação, mas no fim das contas a participação lhes foi negada, e Yeltsin se mostrou incapaz de reagir a essa ofensa.
 
Putin também tomou o lugar de Yeltsin por conta do estado desastroso em que se encontrava a economia russa. Apesar de o país sempre ter sido pobre, mantinha-se a aura de imponência e respeito em termos de assuntos internacionais. Durante a administração de Yeltsin, porém, a Rússia empobreceu ainda mais, e passou a ser alvo de desdém no cenário global. Putin teve que lidar com esses dois problemas. Levou muito tempo até agir e recriar o poder russo, apesar de dizer desde o começo que a queda da União Soviética havia sido o maior desastre geopolítico do século 20. Isso não significava que ele queria ressuscitar o bloco em sua forma fracassada, mas sim que a potência russa fosse levada a sério novamente, além de projetar e reforçar os interesses nacionais.
 
A gota d’água veio da Ucrânia durante a Revolução Laranja em 2004. Viktor Yanukovich foi eleito presidente naquele ano em circunstâncias dúbias, mas o candidato foi forçado a se submeter a novas eleições – e perdeu, dando lugar a um governo pró-Ocidente. Na época, Putin acusou a CIA e outras agências de inteligência de orquestrar a demanda por novas eleições. Com relativa visibilidade, foi aí que o presidente se convenceu de que o Ocidente pretendia destruir a Federação Russa, mandando-a pelo mesmo caminho da antiga URSS. Para ele, a importância da Ucrânia era auto-explicativa. O presidente então passou a acreditar que a CIA havia interferido no processo eleitoral de Kiev para deixar a Rússia em uma posição delicada, e o único motivo para tanto seria a vontade de debilitar ou destruir Moscou. Após o conflito em Kosovo, Putin passou publicamente da desconfiança para a hostilidade em relação ao Ocidente.
 
O governo russo trabalhou entre 2004 e 2010 para reverter a Revolução Laranja. Trataram de restabelecer as Forças Armadas, concentrar o aparato de inteligência e usar o que restava da influência econômica para remodelar as reações com a Ucrânia – se não pudessem controlar o páis, não queriam deixá-lo para os Estados Unidos e a Europa. Esse não era o único objetivo internacional de Moscou, é claro, mas era o mais essencial.
 
A invasão russa à Georgia teve mais a ver com a Ucrânia do que com o Cáucaso. Na época, os EUA ainda estavam atolados no Afeganistão e no Iraque. Ainda que Washington não tivesse nenhuma obrigação formal para com a Georgia, havia laços estreitos e garantias implícitas entre os dois países. A invasão foi projetada por Moscou com duas finalidades. A primeira era mostrar às nações da região que as Forças Armadas russas, em estado deplorável no início dos anos 2000, estavam novamente capazes e operacionais em 2008. A segunda era demonstrar aos governos, especialmente o de Kiev, que as garantias dadas pelos EUA, explícitas ou veladas, não tinham valor. Em 2010 Yanukovich foi eleito presidente na Ucrânia, revertendo a Revolução Laranja e limitando a influência ocidental no país.
 
Reconhecendo a fratura na relação com Moscou e percebendo a tendência geral contra os Estados Unidos no Leste Europeu, o governo Obama tentou recriar antigos modelos de relacionamento quando Hillary Clinton presenteou Vladimir Putin com um botão de “reiniciar” em 2009. Mas Wahsington queria restaurar os laços nos termos do que Putin definiu como os “antigos dias ruins”. Naturalmente o presidente russo não se interessava por um recomeço assim. Em vez disso, ele via os EUA como assumindo uma postura defensiva, e pretendia tirar vantagem disso..
 
Um lugar onde Putin explorou as novas circunstâncias foi a Europa, usando a dependência energética da União Europeia em relação ao gás russo para se aproximar do Continente, especialmente da Alemanha. Mas o ponto alto dessa estratégia veio durante a questão da Síria, quando o governo Obama ameaçou o país com ataques aéreos, após Damasco ter usado armas químicas, mas em seguida voltou atrás. O governo russo se opôs fortemente à postura de Obama propondo que se negociasse com o governo de Bashar al-Assad. Moscou emergiu dessa crise parecendo um agente decisivo e capaz, enquanto os EUA aparentavam fraqueza e incompetência. A potência russa parecia em alta e, apesar da economia enfraquecida, o sucesso diplomático reforçou a imagem presidencial.
 
A maré vira contra o presidente
 
Por contraste, os acontecimentos na Ucrânia este ano se mostraram devastadores para Vladimir Putin. Em janeiro, a Rúsia dominava Kiev, em fevereiro, Yanukovich fugiu do país e um governo pró-Ocidente assumiu o poder. O levante generalizado contra o governo central, que Putin esperava que viesse do leste ucraniano após a deposição de Yanukovich, não aconteceu. Enquanto isso, o novo governo, com ajuda de conselheiros ocidentais, se implantou mais firmemente. Em julho, o governo russo mantinha influência apenas sobre pequenas partes da Ucrânia, incluindo a Crimeia, onde Moscou sempre manteve contingentes militares massivos por conta de tratados, além de um triângulo de territórios entre Donetsk, Luhansk e Severodonetsk onde um pequeno número de insurgentes, aparentemente apoiados pelas Forças Especiais russas, controlava uma dúzia de cidades.
 
Se absolutamente nenhum levante acontecesse na Ucrânia, a estratégia de Putin seria deixar o governo em Kiev se desintegrar sozinho, e afastar os Estados Unidos da Europa ao explorar a forte dependência energética do Continente. E é aí que o abate do avião de passageiros da Malasya Airlines se torna crucial. Se for comprovado – como tudo indica – que a Rússia forneceu sistemas antiaéreos aos separatistas e enviou equipes para operá-los (uma vez que operar os sistemas requer um longo treinamento), o país pode ser responsabilizado por derrubar o avião. Isso significa que a habilidade de Moscou para separar os governos europeus dos EUA declinaria dramaticamente. Putin então passaria de um governante eficiente e sofisticado, que usa seu poder de forma implacável, a um incompetente perigoso apoiando uma insurgência desesperada com armamentos completamente inapropriados.
 
Nesse meio-tempo, o presidente russo precisa considerar o destino de seus antecessores. Nikita Khrushchev voltou de férias em outubro de 1964 e se viu substituído por seu protegido, Leonid Brezhnev, enquanto enfrentava acusações de, entre outras falhas, “maquinações inconsequentes”. Khrushchev já havia sido humilhado com a Crise dos Mísseis de Cuba em 1962 – esse episódio, e sua incapacidade de impulsionar a economia depois de uma década no poder, fez com que seus colegas o “aposentassem”. A lição aqui é que não seria inédito que um gigantesco retrocesso diplomático e falhas na economia derrubassem do Kremlin um líder aparentemente incontestável.
 
A atual situação econômica da Rússia não é nem de longe catastrófica como nos governos de Khrushchev  e Yeltsin, mas deteriorou significativamente nos últimos anos e, mais importante, não correspondeu às expectativas. Depois de se recuperar da crise de 2008, Moscou passou por sucessivas quedas no crescimento do PIB, e o Banco Central do país prevê crescimento zero este ano. Dadas as pressões atuais, pode-se concluir que a economia russa entrará em recessão ainda m 2014. As dívidas dos governos regionais dobraram nos últimos quatro anos, e diversas repúblicas da Federação estão próximas da falência. Também estão quebrando algumas empresas do setor de mineração e produção de metais. A crise ucraniana só piorou a situação. Capitais em torno de 76 bilhões de saíram da Rússia nos últimos seis meses, comparado com 63 bilhões ao longo de todo o ano de 2013. Investimentos estrangeiros diretos caíram 50% na primeira metade de 2014 em comparação ao mesmo período do ano passado. E esses números aconteceram mesmo com o petróleo ainda custando mais de 100 dólares o barril.
 
A popularidade interna de Vladimir Putin subiu vertiginosamente após o sucesso dos Jogos de Inverno em Sochi e depois de a mídia ocidental tê-lo feito parecer o agressor na questão da Crimeia – afinal, a imagem do presidente foi construída como a de um homem severo e agressivo. Mas real situação na Ucrânia está se tornando cada vez mais óbvia, a grande vitória do governo russo será vista como encobrir uma retirada em um momento de sérios problemas econômicos. Para muitos líderes, os acontecimentos em Kiev não seriam um desafio tão imenso, mas Putin construiu sua imagem em cima de uma política externa dura, e a economia demonstra que seus índices de popularidade não eram tão altos antes da questão ucraniana.
Imagine a Rússia depois de Putin
No tipo de regime que Putin ajudou a arquitetar, o processo democrático pode não ser a chave para entender o que acontecerá em seguida. O atual presidente restaurou elementos da era soviética em sua estrutura de governo, usando até mesmo o termo Politburo para se referir ao próprio Gabinete. São todos homens escolhidos pessoalmente, claro, então pode-se pensar que eles sejam leais. Mas no Politburo estilo URSS, os colegas mais próximos eram frequentemente os mais temidos. Esse modelo de administração é projetado para um líder construir coalizões entre facções. Putin vem sendo muito bom em fazer isso, como vem sendo muito bom em tudo até agora. Mas a capacidade de manter as partes unidas se corrói à medida em que a habilidade pessoal do presidente diminui, e várias facções no país começam a agir movidas pela preocupação com as consequências de permanecerem ligadas a um líder decadente. Assim como Khrushchev, que falhou na economia e na política externa, Putin pode ser removido pelos próprios colegas.
 
É difícil saber como se daria uma crise de liderança, dado que o processo constitucional de sucessão presidencial coexiste com o governo informal criado por Putin. Sob o ponto de vista democrático, o ministro da Defesa, Sergei Shoigu, e o prefeito de Moscou, Sergei Sobayanin, são tão populares quanto Putin, e podem se tornar mais populares com o tempo. Já em uma disputa à moda soviética, o chefe da Casa Civil, Sergei Ivanov, e o chefe do Conselho de Segurança, Nicolai Patryushev, seriam candidatos possíveis. Mas há outros. Afinal, quem poderia ter previsto a ascensão de Mikhail Gorbachev?
 
Em última análise, políticos que calculam mal e administram mal tendem a não sobreviver. Putin calculou mal a crise na Ucrânia – falhou em antecipar a queda de um aliado, em responder eficazmente, e então tropeçou ao tentar reaver a área de influência perdida. A administração da economia também não vem sendo exemplar, isso em termos suaves. O presidente tem colegas que acreditam serem capazes de fazer melhor, e atualmente há pessoas importantes na Europa que ficariam contentes em ver Putin fora do Kremlin. Ele precisa reverter esse quadro, e rápido, ou pode ser substituído.
 
A trajetória do atual presidente está longe do fim. Mas ele governa há 14 anos, incluindo o período em que Dimitri Medvedev era o governante oficial – é muito tempo. Ele pode recuperar o passo, mas como as coisas estão no momento, é de se esperar que pensamentos revolvam nas cabeças de seus colegas do Politburo. O próprio presidente deve estar reavaliando as opções todos os dias. Retroceder diante do Ocidente e aceitar o “status quo” na Ucrênia seria difícil, considerando que a questão de Kosovo o ajudou a chegar ao poder no passado e tudo o que ele declarou sobre Kiev ao longo dos anos. Mas o quadro atual é insustentável. O fator coringa nessa situação é que caso Putin se veja em sérios problemas políticos, ele pode se tornar ainda mais agressivo. Não se pode afirmar que essa seja a realidade presidencial no momento, mas muita coisa deu errado ultimamente. E como em qualquer crise, quanto mais a situação se agrava, mais extremas são as opções consideradas.
 
Mas aqueles que pensam que Putin é o líder russo mais opressor e agressivo que se pode imaginar precisam ter em mente que não é bem assim. Lenin, por exemplo, era terrível. Mas Stalin era muito pior. Da mesma forma, pode chegar um tempo em que o mundo olhará para a “era Putin” como uma época de liberdade. Pois se a luta entre Vladimir Putin e seus opositores se intensificar, a disposição de todos para a brutalidade pode muito bem aumentar.

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