Durante 37 anos, a fronteira entre Israel e Síria, ainda tecnicamente em guerra, mostrou-se tão tranquila quanto qualquer das fronteiras entre israelenses e árabes silenciadas por acordos de paz. No domingo isso mudou, e o tumulto nas Colinas de Golã podem revelar uma nova fase da revolta contra o presidente Bashar al-Assad e da teia de relações internacionais que ele está navegando.
Previsivelmente, tanto a Síria quanto Israel culparam um ao outro pelo derramamento de sangue – soldados israelenses mataram quatro pessoas quando centenas invadiram a fronteira. Mas a mensagem era muito mais importante, uma vez que o governo sírio, que controla o acesso à fronteira, permitiu que multidões se aventurassem a um lugar que antes declarava fora dos limites. Pela primeira vez no seu reinado de 11 anos, Assad demonstrou a Israel e ao mundo que, em uma revolta que representou a maior ameaça à sua família que já está no governo há quatro décadas, ele poderia provocar uma guerra para permanecer no poder.
Poucos questionaram a sinceridade dos refugiados palestinos que se reuniram na fronteira – o dia que assinala a criação de Israel continua sendo uma data marcante para os palestinos, e eles citaram os levantes da Primavera Árabe como uma inspiração. Mas como é frequentemente o caso na política árabe moderna, eles podem estar envoltos em um conflito mais cínico que envolve poder, sobrevivência e dissuasão, em no qual, em graus variados, Irã, Israel, Turquia e Estados Unidos têm uma participação na sobrevivência de um governo que é desprovido de legitimidade, exceto como a força de uma noção de estabilidade.
"Essa é uma mensagem do governo sírio para Israel e para a comunidade internacional: 'se vocês continuarem a nos pressionar, iremos incendiar a frente com Israel'", disse Radwan Ziadeh, um dissidente sírio e professor visitante da Universidade George Washington.
A mensagem traz riscos profundos em uma região volátil. Israel aparentemente prefere o governo de Assad a uma alternativa que possa favorecer os islâmicos, embora as autoridades israelenses neguem isso. Mal equipada e negligenciada, a Síria continua a ser absolutamente incapaz de travar uma guerra, com seus militares mobilizados em todo o país em uma feroz repressão à revolta popular que já dura dois meses. E mesmo na Síria, algumas pessoas suspeitam que os palestinos estejam sendo manipulados, embora alguns advirtam que uma resposta ainda mais agressiva de Israel poderia rapidamente mudar isso.
"Oh, Maher, seu covarde, envie o seu Exército para Golã", gritavam os manifestantes na semana passada ao irmão de Assad, que lidera a elite da Guarda Republicana e a Quarta Divisão, que assumiu a liderança em operações militares contra as cidades atingidas pelo levante popular.
"A ideia de travar guerra contra Israel não faz parte do pensamento da Síria há muito tempo", disse Louay Hussein, um famoso dissidente que se reuniu com um assessor de Assad na semana passada naquilo que o governo chamou de início de um diálogo. "O governo sírio não tem uma estratégia. Sua atuação política é baseada no improviso".
Tensão
Ao contrário da fronteira libanesa, uma região ainda tensa onde Israel e o Hezbollah travaram uma guerra devastadora e inconclusiva em 2006, na fronteira síria as Colinas de Golã permanecem extraordinariamente tranquilas desde uma trégua em 1974 que se seguiu a uma guerra no ano anterior. Apreendidas por Israel na guerra de 1967, as colinas permanecem o centro da inimizade entre os dois países, apesar de a Síria há muito tempo ter indicado que tem pouca chance de recuperá-la, exceto por meio de negociações.
Para muitos no mundo árabe, a perpétua tranquilidade da fronteira já é motivo de piadas, especialmente conforme a Síria passou a pressionar Israel através de terceiros para além das suas fronteiras, principalmente o Hezbollah, no Líbano. Em árabe, Assad significa leão, portanto a piada mais comum feita sobre o pai de Assad, Hafez, é: "Um leão no Líbano, mas um coelho em Golã".
A revolta, porém, já reformulou as relações regionais, colocando a Síria diretamente na defensiva. Embora oficiais do governo afirmem sua supremacia, os militares estão mobilizados desde o estepe do sul até a costa do Mediterrâneo. As mortes no domingo em Talkalakh, perto da fronteira libanesa, são o mais recente alvo da tentativa dos militares de sufocar a dissidência. As relações com a Turquia pioraram e os Estados Unidos e a Europa impuseram sanções ao país.
No Líbano, aliado da Síria, o Hezbollah parece ansioso e a sua emissora de televisão, a Al-Manar, quase ostensivamente omite qualquer menção da revolta na Síria. Em uma entrevista na semana passada em Damasco, Rami Makhlouf, o empresário mais poderoso da Síria e um confidente e amigo de infância de Assad, alertou a comunidade internacional contra a imposição de pressão sobre o governo sírio. A instabilidade da Síria, disse Makhlouf, também significaria instabilidade para Israel. "A estabilidade na Síria é a coisa mais importante para a estabilidade dos seus vizinhos", disse ele na entrevista. "Que os vizinhos? Israel".
A fronteira ao longo das Colinas de Golã, um estratégico platô rochoso, é a mais sensível da Síria, e existem postos de controle em toda a região. Mesmo para os sírios, é necessária permissão para entrar em algumas de suas regiões. Em um Estado autoritário, o governo também mantém a vigilância implacável sobre os 10 campos palestinos oficiais e três não-oficiais.
Ziadeh, citando informantes em Damasco, disse que pelo menos quatro ônibus foram vistos sábado deixando dois campos onde as facções mais fiéis da Síria exercem controle. "Durante 40 anos, os sírios têm evitado a infiltração, o que mostra que têm sua mão no controle", disse Yoni Ben-Menachem, um analista israelense. "Isso também demonstra a pouca vontade de Israel e dos Estados Unidos de ver a derrubada de Bashar al-Assad" – enquanto ele mantiver a fronteira com Israel tranquila.
Laços
Relativamente pobre, com uma população que empalidece diante de países como o Egito, a Síria há muito tempo desempenha um papel firme, tornando-se um pilar na região. Apesar de declaradamente secular, o país tem laços profundos com movimentos islâmicos como o Hamas nos territórios palestinos. O mesmo vale para a república islâmica do Irã, seu aliado mais próximo.
A ambiguidade de sua política externa levou as autoridades americanas a manter a esperança de que a Síria possa ser atraída para longe da sua aliança com o Irã e seus aliados. A genialidade de Assad – ele é famoso por concordar, mas não cumprir – ajudou a levar a Turquia a aprofundar suas relações com um país que viu como um centro para a sua visão de integração regional.
Tanto os Estados Unidos quanto a Turquia têm denunciado a repressão, mas não chegaram a pedir a partida de Assad, um passo com implicações de longo alcance para a sobrevivência da liderança. Isso foi em parte motivado pelo medo do que poderia acontecer após a queda de Assad, dizem os analistas, uma ansiedade que o governo tem procurado incansavelmente cultivar desde o início do levante. A violência de domingo, segundo analistas, pode ter sido um prenúncio planejado.
"Vai ser uma bagunça", disse um oficial do governo Obama disse sobre a determinação do governo em sobreviver. "Ele vai travar uma luta por sua vida”.
*Por Anthony Shadid