Por Konstantin Makiyenko
vice-diretor do Center for Analysis of Strategies and Technologies
– CAST – Rússia
Tradução e edição – Nicholle Murmel
A queda do avião da Malasya Airlines levo a crise na Ucrânia a um novo patamar. Konstantin Makiyenko, vice diretor do Center for Analysis of Strategies and Technologies (CAST), fala sobre a situação militar atual em Kiev, e as possibilidades para encerrar a crise.
Mobilização estilo União Sovética vs. Forças de Autodefesa
O governo em Kiev enviou quase todas as unidades disponíveis para “operações antiterroristas” no leste do território, incluíndo seis brigadas mecanizadas, uma brigada de blindados, uma aerotransportada e três de infantaria leve, além de forças especiais. Há até mesmo unidades da Guarda Nacional que se voluntariaram, além de grupos armados particulares, financiados por oligarcas do país. Ao todo, são entre 32 e 35 mil militares e centenas de veículos blindadas e sistemas de artilharia na zona de conflito. Porém tropas de infantaria realmente capazes de operações ofensivas somam entre 10 e 12 mil. É mais difícil estimar os números das foras de autodefesa opositoras, mas é pouco provável que o contingente seja maior do que 5 ou 7 mil.
A principal vantagem das Forças Armadas ucranianas é a superioridade absoluta em termos de armamento pesado, principalmente artilharia, lançadores múltiplos de foguetes e blindados. São esses os elementos que determinam a estratégia – tentar causar danos irreparáveis aos oponentes, que não contam com o equipamento para suprimir os sistemas de artilharia superiores do Exército. O exemplo mais recente é o cerco de Slavyansk – as forças de Kiev estão interrompendo linhas de comunicação para deter as forças de autodefesa e ao mesmo tempo isolá-las da Rússia.
Por outro lado, o maior problema das forças de Kiev é a falta de pessoal de infantaria treinado, motivado e com experiência em combate. O contingente disponível é suficiente para manter posse do território, estabelecer bloqueios em estradas e deter os opositores, mas não para operações de assalto às cidades. Até o momento, as tropas ucranianas não tomaram uma única cidade ou vila em operação ofensiva. Os opositores estão sendo forçados para fora de suas posições pela artilharia pesada e por disparos de foguetes, ou porque temem serem cercados. No entanto, Kiev promoveu diversas campanhas de mobilização, e a experiência acumulada pelos combatentes nos locais de ação equilibra até certo ponto a falta de treinamento formal.
No geral, as forças de autodefesa opositoras vêm lutando de forma mais competente ou tiveram mais sorte – venceram um bom número de batalhas locais quase toda semana. Mas o Exército ucraniano detém a iniciativa estratégica, sendo assim, o território em posse das forças de autodefesa está se tornando cada vez menor.
Os últimos quatro meses expuseram tanto as fraquezas óbvias quanto as qualidades das Forças Armadas da Ucrânia, como a rápida mobilização de tropas e recursos, e a melhora nos padrões organizacionais e no planejamento para o combate. As forças ucranianas aprenderam a lidar com a falta de suprimentos materiais e técnicos e com a logística fraca. As ações defensivas das tropas de Kiev presas nos aeroportos de Lugansk e Donetsk, e do contingente semi-cercado ao sul avançando ao longo da fronteira com a Rússia, mostram unidades ucranianas motivadas combateram firmemente. E claro, eles contaram com imensa superioridade numérica e de fogo.
Por fim, as tropas ucranianas demonstraram grande resistência psicológica às perdas, apesar de os números não serem claros. Segundo estatísticas oficiais de Kiev, as forças do governo perderam mais de 300 homens, o que não deveria afetar tão seriamente o moral e a prontidão de um contingente de 35 mil. Mas se for verdade que as perdas são em torno de 1 mil militares nos últimos quatro meses, então o moral no lado ucraniano é mais alto do que se pode imaginar. Em geral, as forças da Ucrânia têm vantagens tradicionalmente percebidas no Exército Soviético e no Exército Imperial russo pré-1917 – exigem pouco, são dominadas pelo fatalismo, mas muito perseverantes
A mobilização em estilo soviético, apesar de pouco eficiente, ajudou Kiev a aumentar sua capacidade militar mais rápido do que as forças de oposição. O governo central venceu a batalha pelo tempo em Donetsk e Lugansk. A Ucrânia, apesar de enfraquecida pela crise política, se mostrou mais eficiente do que o mosaico organizacional das repúblicas populares de Donetsk e Lugansk.
A “primavera russa”
Os desdobramentos na Ucrânia deram oriegem a um interessante fenômeno social – uma “primavera russa”. Trata-se de um movimento patriótico espontâneo não encorajado pelos articuladores e analistas do Kremlin. São em boa parte voluntários que dão assistência à Novorossiya – conjunto de repúblicas auto-proclamadas no leste da Ucrânia. São feitas doações para aquisição de ajuda humanitária para a população local, além do transporte arriscado desses recursos aé as cidade sitiadas. Centenas de russos com experiência militar foram à guerra como voluntários no que configurou a maior mobilização patriótica da sociedade na era pós-URSS.
Por outro lado, muitos nacionalistas ucranianos lutaram na guerra da Chechênia no lado dos separatistas, e Kiev não fez nada para detê-los. Segundo órgãos de inteligência militar de um terceiro país com presença forte no Cáucaso – nem Rússia, nem Ucrânia – 800 voluntários ucranianos tomaram parte no conflito checheno, e cerca de 400 deles seriam física e operacionalmente capazes de estarem nos conflitos atuais. Em outras palavras, o que estamos vendo é uma réplica da política de Kiev na metade dos anos 1990 e início dos anos 2000.
Indústira de defesa russa: possíveis impactos das sanções e da ruptura das relações com a Ucrânia
Se as indústrias de defesa da Rússia e da Ucrânia romperem completamente os laços técnicos e militares, Kiev perderá seu maior mercado, que movimenta desde centenas de milhões de dólares até um bilhão anualmente. Parece que o governo ucraniano está deliberadamente incapacitando o setor nacional de engenharia que vende produtos para o mercado russo, a fim de de destruir a base social das forças políticas pró-Rússia. Ao mesmo tempo, em um período de três até cinco anos, Moscou terá problemas para cumprir seus contratos no setor de defesa. A maior parte desses bens de baixa complexidade são fabricados em linhas de montagem pequenas, e companhias russas não vêm se interessando em fabricá-los. Além disso, a Rússia depende fortemente de motores de fabricação ucraniana para helocópteros, aviões treinadores e sistemas de propulsão naval com turbinas a gás, e esses componentes sim representariam o maior dos problemas. A capacidade de operar aeronaves de transporte, especialmente o An-124, tabém pode ser comprometida.
Como resultado dessa crise, produtos militares ucranianos serão substituídos por equivalentes russos mais sofisticados. É apenas uma questão de tempo, dinheiro, organização nas linhas de produção e governança empresarial. Moscou pode fabricar qualquer produto atualmente oferecido pela indústria ucraniana. A atual situação da simbiose industrial entre Rússia e Ucrânia podia ser facilmente prevista em 2004, quando o governo anti-Rússia de Viktor Yushchenko assumiu o poder em Kiev após a Revolução Laranja.
É possível implementar até mesmo os programas mais difíceis e ambiciosos de substituição de importações em um período de 10 anos, ainda mais quando metade desse tempo vem sendo marcada pelo rápido crescimento da economia russa e pela rápida expansão do potencial financeiro do país. A inabilidade ou relutância em proteger Moscou dos riscos políticos dos acordos de co-produção com a Ucrânia demonstram a falta de eficiência das políticas governo nacional e de seus especialistas, assim como o potencial diretivo insignificante das empresas do setor de defesa na Rússia. Pode soar estranho, mas a Saturn, empresa privada de motores, foi a apoiadora mais consistente de programas para substituir produtos da Ucrânia. Porém, a empresa acabou nacionalizada juntamente com várias outras do parque industrial nacional.
É possível que as sanções do Ocidente comprometam a modernização tecnológica da indústria de defesa russa, bem como a economia no geral. Porém, Moscou tem bastante experiência dos anos de URSS em termos de trabalhar sob embargo tecnológico. Além do mais, a situação econômica global é bem diferente da época da Guerra Fria. Os Estados Unidos e a Europa não mais detém o monpólio financeiro e tecnológico, e diversos países que enfrentam sanções têm amplo espaço para se moverem. Essa crise deve converncer o governo russo de que o centro da civilização está se deslocando para a região da Ásia-Pacífico, que o foco da vida econômica e política da Rússia também deve se transferir para lá. Talvez nós devamos considerar até mesmo transferir a capital da Federação de Moscou para alguma cidade universitária na Sibéria, como Tomsk ou Novosibirsk.
Apesar de a China conseguir substituir fornecedores ocidentais de alguns bens manufaturados, Moscou deve continuar a confiar na própria indústria de defesa. Alguns países europeus e Israel também tentarão manter a cooperação com a Rússia, mas a dimensão dessa cooperação será determinada pelo grau de dependência desses parceiros em relação aos Estados Unidos
A compra dos navios de assalto anfíbio Mistral, de fabricação francesa, também é permeada de riscos. Paris fará o possível para cumprir as obrigações contratuais a fim de não sofrer enormes perdas financeiras, e principalmente preservar sua reputação, pois uma mancha moral se mostraria mais danosa do que perdas em dinheiro.
Prognósticos e expectativas
Em se tratando dos prognósticos para o conflito na Ucrânia, as forças opositoras em Donbass provavelmente não são capazes de vencer. Kiev simplesmente vencerá os combatentes da pequena república pelo cansaço. As operações do governo central estão melhorando em termos de qualidade e gerenciamento, a experiência das tropas de combate está aumentando, o equipamento está melhor, e o moral também está mais forte. É um processo natural para qualquer exército em combate Por outro lado, os líderes das repúblicas populares em Donetsk e Lugansk não demonstraram grande habilidade em operações militares o na construção de uma unidade política. E isso é compreensível até certo ponto quando consideramos que esses movimentos foram basicamente improvisados enquanto o oligarca Rinat Akhmetov tentava pressionar o novo governo em Kiev. Tanto Akhmetov quanto as autoridades em Moscou logo perderam o controle do processo. O nível de apoio político e social ao projeto Novorossiya em Donbass e Lugansk permanece limitado e diminuirá ainda mais com os revezes militares na região. As repúblicas opositoras só duraram até agora principalmente por fatores imprevisíveis, como a habilidade de combate surpreendente dos comandantes em campo, especialmente Igor Strelkov.
A Ucrânia ainda tem muitos recursos a serem mobilizados. Aparentemente, uma terceira onda de recrutamento foi acionada por Kiev, e deve reunir até 50 mil pessoas ou mais. Por conta da perda de muitos pilotos treinados, a Força Aérea do país não será atuante como antes, mas esse elemento pode ser compensado pelas unidades de artilharia. Uma possível falta de combustível e munição só acontecerá após cerca de três ou cinco meses de combate – quando a fase mais intensa do confronto já tiver terminado.
No entanto, há fatores que evitarão que as forças de Kiev derrotem tão facilmente os opositores. Primeiro, o Exército ucraniano não tem tropas suficientes para controle eficiente de um território com seis milhões de pessoas. Em segundo, as operações acontecem principalmente em áreas urbanas, o que dificulta manobras ofensivas. No ambiente de uma cidade, mesmo tropas escassas e mal equipadas podem enfrentar um oponente mais forte por mais tempo. Kiev imediatamente agrupou todos os seus recursos técnicos e humanos, e por isso o confronto no leste escalou rápido. A mobilização ambiciosa em abril e maio foi parcialmente provocada pela demonstração de poder militar da Rússia na fronteira, que causou em Kiev a impressão de que a intervenção era iminente.
O fato é que o mais importante para as forças de autodefesa opositoras não é vencer a batalha no leste da Ucrânia, mas sim não perder. Se não houver derrota, já se trata de vitória. Quando a contagem dos mortos chega aos 5 mil ou até 7 mil e o PIB nacional cai de 10% a 12%, os opositores esperam que o sentimento anti-guerra e os protestos populares se tornem o centro das atenções na Ucrânia. Normalmente essa é a estratégia de ativistas mais fracos e não ligados ao governo quando enfrentam uma máquina estatal mais forte.