Andrei Netto/correspondente em Paris
Líbia, Gosta do Marfim, Mali e República Centro Africana. Em menos de três anos, a França multiplicou intervenções militares na África, sob o argumento humanitário e de combate ao terrorismo.
Mas, para especialistas, por trás das ofensivas está a tentativa de recuperar influência geopolítica e garantir benefícios econômicos de suas ex-colônias, em uma espécie de "Doutrina Monroe à francesa" que já dura meio século.
A sequencia de intervenções na África teve início em março 2011, quando o então presidente Nicolas Sarkozy enviou caças Rafale para bombardear as colunas do exército de Muamar Kadafi, que ameaçava arrasar seus opositores em Benghazi, na Líbia. Trata-se da única das quatro últimas ofensivas que não ocorreu em uma ex-colônia francesa, e também a única sob os auspícios da Otan.
Desde então, as intervenções – realizadas com o aval da ONU – se acumulam a ponto de duas delas ainda estarem em curso. A mais recente acontece neste momento na República Centro Africana (RCA), um dos quatro países mais pobres do mundo. Em 5 de dezembro, o Conselho de Segurança da ONU deu aval em votação unânime para uma intervenção militar com o objetivo de frear os confrontos entre milícias, intensificados desde de março, quando Michel Djotodia, líder da oposição, derrubou o presidente François Bozizé, assumindo o poder.
Ao longo do ano, o país de 4,5 milhões de habitantes mergulhou no caos e na violência entre cristãos e muçulmanos. Para impedir o banho de sangue em sua ex-colônia, tão logo recebeu o aval internacional a França anunciou o envio de 1,6 mil; soldados a Baíigui, capital centro-africana, para a operação "Sangaris". Na sexta-feira, os militares, associados à Missão Internacional de Apoio à República Centro Africana (Misca), ainda tentavam restabelecer a ordem nos distritos de Gobongo e Pabongo, onde novos enfrentamentos deixaram pelo menos 40 mortos na quinta-feira, segundo o Comitê Internacional da Cruz Vermelha.
Embora a crise humanitária de fato exista na República Centro Africana e tenha existido na Líbia e no Mali, para especialistas ouvidos pelo Estado a frequência com que o ex-colonizador tem se envolvido em conflitos na África também tem outras razões. A primeira delas seria a reaproximação entre a França e suas ex-colônias, não só por razões econômicas, mas sobretudo geopolíticas.
Desde os anos 1960, Paris enviou tropas para intervenções pelo menos 50 vezes, quase uma por ano. Mas, de acordo com o cientista político Michel Galy, professor Instituto de Relações Internacionais (Ileri), de Paris, as ações militares francesas na África estão crescendo.
"Sem dúvida há uma aceleração, e a cada intervenção a propaganda do Estado diz que não é neocolonialismo", lembra Galy, que atribui o intervencionismo à "dominação geopolítica", fruto de um atraso na descolonização do continente. "A África francófona ainda é vista como a esfera de influência da França. É a Doutrina Monroe "à la française", explica.
Essa "esfera de influência" lembra Galy, dá à França cerca de 40 votos quase automáticos nas Nações Unidas, além de uma zona de influência comercial e monetária – 15 países usam o franco CFA como moeda, uma herança colonial.
Passado. Philippe Hugon, cientista político do Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas (íris), concorda com Galy, mas pondera que a doutrina francesa para a região não é nova – ela apenas se fortaleceu. "A França sempre manteve bases militares na África e sempre patrocinou intervenções. A novidade é que desde o desastre da intervenção americana na Somália os Estados Unidos se desengajaram da África em favor da Asia e do Oriente Médio e consideram que os ex-países francófonos são responsabilidade da França. E é nos países francófonos que há mais problemas nos dias de hoje."
Além da miséria endêmica e da instabilidade política, explicam os analistas, Mali e República Centro-Africana também têm em comum a presença de milícias extremistas islâmicas.
Para o general de divisão Vincent Desportes, teórico militar francês, as duas intervenções estão ligadas. "Nós sabemos perfeitamente que os jihadistas que não foram presos ou mortos no Mali estão tentando se instalar em outro lugar, e esse lugar seria a República Centro-Africana se o país mergulhasse no caos", adverte. "Do ponto de vista de segurança, há uma continuidade entre o Mali e a RCA."