O suposto poder dissuasório das armas nucleares foi sempre considerado por seus possuidores como uma garantia de sua segurança e como motivo da ausência de conflitos na Europa
SERGIO DUARTE
Embaixador, ex-Alto Representante das Nações
Unidas para Assuntos de Desarmamento.
Presidente das Conferências Pugwash
sobre Ciência e Assuntos Mundiais.
Apesar das intenções constantes do Preâmbulo da Carta das Nações Unidas, que expressa a determinação de “evitar o flagelo da guerra”, inúmeros e sangrentos choques armados ocorreram em muitas partes do mundo ao longo dos mais de 75 anos de existência da organização internacional. Nem sempre as controvérsias se resolveram por métodos pacíficos e a força das armas foi usada em muitas ocasiões contra a integridade territorial e independência política de diversos Estados. A invasão da Ucrânia pela Rússia constitui uma flagrante violação dos Propósitos e Princípios definidos na Carta
Desde o bombardeio de Hiroshima e Nagasaki em 1945 o poder destruidor do átomo não foi utilizado diretamente em novas guerras. No entanto, a simples existência desse armamento mudou a face do mundo, dividindo-o entre os que possuem os que não possuem tais armas e criando a possibilidade de destruição em escala nunca antes imaginada. Essa situação está juridicamente consolidada por meio do direito de veto sobre as decisões do Conselho de Segurança concedido a cinco potências e seu reconhecimento exclusivo como “estados nucleares” no Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP)[1], que não contém disposições claras e vinculantes para a eliminação das armas atômicas. Outros quatro países se dotaram de capacidade nuclear bélica após o prazo estabelecido no TNP e por isso não gozam daquele reconhecimento.
O suposto poder dissuasório das armas nucleares foi sempre considerado por seus possuidores como uma garantia de sua segurança e como motivo da ausência de conflitos na Europa. No entanto, a capacidade nuclear bélica não impediu a eclosão de uma guerra nesse continente, com o envolvimento de países da OTAN – uma aliança militar nuclear – nem tampouco evitou o temor de que o armamento atômico venha a ser usado, o que demonstra a falácia dessa noção. Ao contrário, a existência de tais armas parece haver estimulado as ambições e receios das partes em conflito, longe de representar um fator de manutenção da paz. A dissuasão nuclear parece funcionar – até o momento em que falha.
As potências nuclearmente armadas continuam acrescentando novas capacidades destruidoras a seu armamento e prosseguem afirmando, com maior ou menor estridência, sua disposição de utilizá-las nas circunstâncias que considerarem convenientes, sem atentar para os catastróficos e potencialmente irrecuperáveis efeitos para o planeta. A preocupação com a possibilidade de uso de armas nucleares não aflige apenas as populações dos países envolvidos na guerra entre a Rússia e a Ucrânia, pois as consequências de uma guerra nuclear não se limitarão às fronteiras dos beligerantes. A ausência de opções viáveis para a solução do conflito, que parece haver chegado a um impasse, inquieta seriamente a parcela da comunidade internacional que até agora tem se mantido à distância.
A atual situação é altamente complexa e resulta de fatores históricos, culturais e geopolíticos que vão muito além da realidade atual no campo de batalha, gerando consequências adversas para a economia e a segurança internacional e outras repercussões negativas. Não se deve minimizar a dificuldade de encaminhar soluções aceitáveis para as partes em litígio. A dependência nas armas nucleares como garantidoras da segurança nacional de seus possuidores acentua as dificuldades, mas também representa um estímulo para a busca urgente de uma solução duradoura.
O Conselho de Segurança da ONU é o órgão internacional primordialmente encarregado da manutenção da paz e segurança mundiais, mas vê-se impossibilitado de agir com eficácia nessa questão. As regras sobre a tomada de decisões têm impedido a utilização dos mecanismos previstos na Carta para tratar de situações de rompimento da paz ou que possam colocar em perigo a segurança internacional. A Assembleia Geral adotou uma resolução condenando a agressão, porém com alguns votos negativos e diversas abstenções. De qualquer forma, suas decisões têm apenas caráter de recomendações e não possuem força obrigatória.
Os recursos com que contam as Nações Unidas para a manutenção ou restauração da paz e segurança, constantes dos Capítulos VI e VII da Carta, têm sido utilizados com considerável êxito em situações que não contrariam diretamente os interesses das cinco potências detentoras do poder de veto. Esses países permanecem, assim, nesses casos, imunes à ação coercitiva da organização mundial. Para que o Conselho possa exercer cabalmente suas funções, é preciso aperfeiçoar o atual sistema.
Não há indicações de que a situação no campo de batalha possa evoluir, ao menos no curto e médio prazo. em direção a um cessar-fogo que permita o início de negociações em busca de uma paz duradoura. No momento, os dois países parecem estar preparando ofensivas destinadas a recuperar territórios ou a consolidar ganhos até agora obtidos. A maioria dos analistas acredita que a guerra provavelmente continuará ainda por tempo indeterminado, agravando o sofrimento e a destruição da Ucrânia e trazendo também perdas humanas e materiais para a Rússia. Na ausência de um resultado militar decisivo para qualquer dos dois lados, uma solução negociada terá que partir dos próprios beligerantes.
Nenhum dos envolvidos no conflito aceitaria qualquer solução que não possa ser apresentada como uma “vitória”. Kiev e a aliança atlântica que a apoia consideram inegociável a restituição de todos os territórios ocupados pela Rússia, inclusive a Crimeia, anexada desde 2014, além da reconstrução das áreas devastadas pela guerra. Moscou, por sua vez, rejeita a devolução de territórios e acredita que a expansão da OTAN para o leste é na verdade apenas parte de um desígnio geopolítico muito mais amplo que visaria restringir a capacidade de atuação da Rússia no mundo. Não deveria haver recompensa para o desrespeito a normas básicas da convivência internacional. Seja como for, a “vitória”, para a Rússia, exigiria mais do que apenas impedir o ingresso da Ucrânia na aliança atlântica. Para um lado ou para o outro, aceitar os termos do adversário significaria abandonar convicções arraigadas que envolvem considerações de equilíbrio estratégico e de soberania e orgulho nacional, assim como os interesses de populações com percepções diversas, e às vezes conflitantes, sobre suas raízes culturais e suas lealdades políticas. Não há fórmulas mágicas para tratar dessas questões.
Surgiram ultimamente sugestões ainda muito genéricas e exploratórias sobre a possibilidade de que países não envolvidos na guerra se articulem para a busca de soluções, pois muitos aspectos do conflito ultrapassam os limites de uma disputa bilateral e afetam interesses muito além do âmbito estritamente europeu. Qualquer proposta com um mínimo de chances de sucesso terá, portanto, que ser aceitável não apenas para a Rússia e a Ucrânia. Até o momento as partes mais diretamente interessadas não se mostraram receptivas.
À medida que os custos humanos e materiais da guerra aumentem e se reflitam com maior intensidade além do ambiente mais próximo das hostilidades, pode-se supor que aumente também a pressão em favor de uma solução negociada. Se os dois lados perceberem que poderá haver mais ganhos do que perdas, é possível que a balança se incline em direção ao exame de propostas oriundas de países e/ou personalidades alheios à guerra, tendentes a consecução de um acordo de cessar-fogo a partir do qual poderia haver progressos específicos. Presumindo que o cessar-fogo seja factível, o passo seguinte seria a facilitação de conversações diretas entre a Rússia e a Ucrânia. O secretário-geral das Nações Unidas poderia desempenhar papel crucial nesse processo. Posteriormente, entendimentos mais amplos deveriam visar o estabelecimento de bases sólidas para uma estrutura de segurança na Europa.
Os obstáculos no caminho do entendimento e da paz são muitos e nenhum deles pode ser vencido fácil ou rapidamente, mas podem ser identificados e neutralizados se houver dose suficiente de bom-senso para compreender que o prolongamento e exacerbação do conflito representam o mais grave risco existencial da era nuclear não apenas para as partes em guerra, e sim para a humanidade como um todo. A compreensão das verdadeiras dimensões do perigo é fundamental para gerar o momentum necessário para obviá-lo.
Infelizmente, a história da humanidade demonstra que a razão e o bom-senso nem sempre governam as ações e decisões dos indivíduos, inclusive os líderes e dirigentes políticos. É de extrema importância redobrar os esforços para reverter a perigosa trajetória da humanidade em direção a sua própria extinção. O gênero humano não pode permanecer refém do imprevisível relacionamento entre potências armadas com os meios de destruição mais poderosos e indiscriminados jamais inventados. Em sua opinião dissidente sobre o pleito das Ilhas Marshall contra os países nucleares, em 2016, o Juiz da Corte Internacional de Justiça Antonio Augusto Cançado Trindade afirmou: “Um mundo com armas nucleares, como o nosso, caminha para destruir seu passado, ameaça perigosamente o presente e não terá futuro algum. As armas nucleares levam ao nada”.
Essas palavras merecem profunda ponderação.
[1] Em 1963 o Embaixador João Augusto de Araújo Castro descreveu essa situação como “congelamento do poder mundial”.