Thomas Sparrow
O vídeo do autodenominado "Estado Islâmico" que supostamente mostra um militar jordaniano sendo queimado vivo reabriu o debate sobre os avanços e limites da guerra que levou a formação de uma coalizão internacional contra o grupo.
Na guerra nos campos militares e da informação, o vídeo pode ser entendido como uma batalha entre tantas outras.
As imagens, cuja autenticidade não pode ser confirmada, seriam de Moaz al-Kasasbeh, o piloto capturado pelo grupo quando seu avião caiu na Síria durante uma missão de apoio à coalizão.
Dias antes, o "Estado Islâmico" veiculou a notícia da decaptação do refém japonês Kenji Goto, levando Tóquio a anunciar maior apoio aos países que combatem o grupo, principalmente no Iraque e na Síria.
Nesse contexto, um grande ataque na capital líbia, Tripoli, realizado por militantes leais ao Estado Islâmico, levou analistas a alertar para o alcance do grupo no norte da África.
Mas, ao mesmo tempo, o Estado Islâmico perdeu uma importante batalha na cidade síria de Kobane, retomada por forças curdas na semana passada com ajuda dos Estados Unidos.
Durante vários meses, Kobane havia se tornado um ponto-chave na batalha: a região foi alvo de grande parte dos ataques aéreos americanos contra o EI.
Recrutamento
A violência, as decapitações e as ameaças do "Estado Islâmico" têm o claro objetivo de chocar a opinião pública global e enviar uma forte mensagem política a Washington. No caso de Kasasbeh, a mensagem também teve natureza militar pois, diferentemente da maioria dos reféns decapitados – em sua maioria civis -, o piloto participou de operações da coalizão.
O Estado Islâmico também tem uma força considerável nos países onde atua. Algumas estimativas sugerem que controla um terço do Iraque e da Síria, além de ter grupos fiéis em países como a Líbia.
"Não conseguimos expulsá-los de partes significativas de território", disse à BBC Thomas Sanderson, co-diretor do projeto de ameaças transnacionais do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS, na sigla em Inglês), em Washington.
Sanderson diz que houve um aumento no número de combatentes estrangeiros ligados ao grupo: de 15 mil há alguns meses para 19 mil.
"O fluxo de combatentes estrangeiros provenientes do mundo árabe e de outras áreas é uma prova da força da contranarrativa do 'Estado Islâmico' e sua capacidade de converter soldados em máquinas de morte leais, prontos para dar a vida pelo grupo", disse à BBC Fawaz Gerges, professor da London School of Economics and Policial Science (LSE) de Londres.
Guerra de longo prazo
O governo americano reconheceu na terça-feira que o "Estado Islâmico" tem grande "habilidade" para recrutar e admitiu que este será um problema de longo prazo para a guerra.
"Nós sabemos que eles são capazes de convocar mais pessoas para lutar", disse o secretário de imprensa do Pentágono, almirante John Kirby.
Mas isso não significa, necessariamente, que o grupo jihadista esteja vencendo a guerra. Na verdade, os EUA acreditam terem avançado consideravelmente desde o início das operações no ano passado.
Em seu recente discurso sobre o Estado da União, no Congresso, o presidente Barack Obama disse que seu país está impedindo o avanço da milícia através da coalizão aérea militar e do apoio à oposição moderada na Síria.
Autoridades americanas também ficaram satisfeitas com a retomada do controle de 90% do Kobane.
O Comando Central do Exército, que lidera as operações no Iraque e na Síria, disse que, embora a guerra esteja longe de terminar, a derrota do "Estado Islâmico" em Kobane mostra que o grupo abriu mão de um de seus objetivos estratégicos, e teve sua capacidade afetada.
"A tenacidade das forças contra o 'Estado Islâmico', bem como os ataques aéreos da coalizão, têm degradado a capacidade do grupo para comandar e controlar forças; recrutar, treinar e reter combatentes; obter receitas provenientes da venda de petróleo; e manter sua moral", disse o comunicado.
Mas eles também acreditam que, sete meses depois do início da ofensiva, ainda falta muito para vencer o grupo. Kirby disse na semana passada que a guerra pode durar entre três e cinco anos.
"No campo de batalha não há claramente nenhum vencedor nem ganhador", avalia Jonah Blank, analista da Rand Corporation, um centro de estudos com sede na Califórnia.
Manifesto do ‘EI’ diz ser legítimo que meninas se casem a partir dos 9 anos¹
Como é a vida de mulheres jihadistas sob o autodenominado "Estado Islâmico"?
Um longo tratado foi publicado por mulheres que apoiam o Estado Islâmico (EI) no Iraque e na Síria, e que se denominam Brigadas Khansaa.
Seu objetivo principal é atrair mulheres da Arábia Saudita e do Golfo Pérsico para o EI, respondendo questões comuns e desfazendo supostos mitos.
Agora, o documento foi traduzido e publicado por uma organização contra-extremista sediada em Londres, a Quilliam.
"É considerado legítimo", diz o documento, "que uma menina se case aos nove anos de idade".
"A maioria das meninas", acrescenta, "estará casada até os 16, 17 anos".
A partir deste momento, a mulher deve permanecer escondida da visão alheia, apoiando o califado por trás de portas fechadas.
Mulheres, diz o texto, não devem ser atrasadas. De fato, devem ser educadas, especialmente quanto a aspectos da religião islâmica, mas apenas entre as idades de sete e 15 anos, acrescenta o documento.
O modelo ocidental da mulher emancipada, que sai de casa para trabalhar, falhou, dizem as Brigadas Khansaa, com as mulheres "ganhando nada da ideia de igualdade com os homens a não ser espinhos".
Lojas de roupas e salões de beleza são coisa do diabo, afirma o documento.
Paraíso para imigrantes
O extenso documento foi publicado em 23 de janeiro, mas foi largamente ignorado pela mídia internacional.
O tom difere das mensagens extremas – relatando episódios de violência – postadas em mídias sociais por mulheres ocidentais associadas ao EI.
O documento afirma que a função primária das mulheres é "sedentária", não a de guerrear. Elas devem apoiar os homens em casa e criar os filhos.
Boa parte do documento tem como objetivo reforçar a aparente normalidade da vida das mulheres em território controlado pelo EI.
"O estado não proíbe nada", diz o texto, imediatamente acrescentando que o EI não vem fazendo esforços para separar homens e mulheres nas escolas.
Raqqa, a capital de fato do "Estado Islâmico", é descrita como um "paraíso para imigrantes", onde famílias vivem sem sofrer de fome e frio.
"Para o inferno com o nacionalismo", conclama o documento, ao afirmar que em Raqqa tribos se juntam, e chechenos são amigos de sírios, e sauditas são vizinhos de cazaques.
'Mulheres perdidas'
Em contraste, afirma o documento, mulheres dos Estados do Golfo, notadamente da Arábia Saudita, enfrentam "selvageria e barbárie".
O texto cita mulheres que trabalham ao lado de homens no comércio, que mostram o rosto em documentos de identidade, que ganham bolsas para estudar no exterior, em "universidades da corrupção".
A TV saudita, que reúne alguns dos mais conservadores canais da região, é descrita como "uma televisão de prostituição e corrupção".
Mulheres escritoras, por sua vez, são chamadas de "perdidas" pelas Brigadas Khansaa.
Professores estrangeiros são rotulados como espiões, espalhando suas "ideias ateístas venenosas e corruptas".
O texto não menciona, porém, crimes atribuídos ao EI, como a escravização em massa de civis de etnia yazidi, o tráfico de meninas menores de idade, as decapitações públicas e ainda o recente episódio de um homem supostamente gay que foi arremessado do sétimo andar de um prédio.
Há uma breve passagem mencionando os ataques aéreos em Raqqa e outras cidades dominadas pelo EI.
A mensagem principal é de que mulheres que vivem no Golfo Pérsico deveriam escapar de sua suposta vida de injustiças e migrar para a utopia do "Estado Islâmico".
¹ – Frank Gardner Analista para Assuntos de Segurança da BBC