É inevitável que cenas como as que estamos vendo na Líbia, de um regime tirânico ruindo como um castelo de cartas diante de uma força contrária, nos remetam ao que ocorreu no Iraque em 2003. Há paralelos possíveis, algumas similaridades, aspectos completamente diferentes e, o mais importante para o futuro, riscos.
Uma diferença básica é que a invasão do Iraque pelos EUA, com ajuda da Grã-Bretanha, foi feita ao arrepio da ONU e da comunidade internacional, sobre uma premissa falsa (a posse de armas de destruição em massa por Saddam Hussein). Mal planejada, criou um atoleiro do qual, milhares de baixas mais tarde, os EUA levaram muito tempo para começar a se retirar. Já a operação na Líbia, em apoio aos grupos que se rebelaram contra a ditadura de Kadafi, foi aprovada pela ONU. Agindo com a habitual cautela, e até com sabedoria, o presidente Obama declinou de pôr os EUA na liderança. Ela coube, na frente política, à França de Nicolas Sarkozy e à Grã-Bretanha de David Cameron; e na militar, à Otan (que agrupa EUA, Canadá e países europeus), com forte apoio do Pentágono em inteligência e tecnologia.
A princípio, a nova abordagem empacou nos aspectos heterogêneos dos grupos anti-Kadafi e na suposta capacidade de as forças do ditador africano resistirem com sucesso às investidas, apesar dos bombardeios da Otan. Mas, nas últimas semanas, os acontecimentos se precipitaram e Trípoli caiu, embora ainda haja bolsões de resistência. Salvo forças especiais, cuja presença é confirmada pela imprensa americana, não há mortos nem feridos entre tropas americanas, francesas ou britânicas, pelo simples motivo de que, ao contrário do Iraque e do Afeganistão, elas não estão envolvidas na ação em solo líbio.
O day after no Iraque foi um desastre porque os americanos, sob a batuta da troica Bush, Cheney, Rumsfeld, não tinham planos para lidar com o fim de um regime que mantinha unido, na base da força, um emaranhado religioso, tribal e étnico que explodiu em mil conflitos e atentados com a queda de Bagdá. O fim da ditadura de 42 anos de Kadafi não é garantia alguma de futuro risonho para a Líbia. Mas, pelo menos, a experiência do Iraque diz o que não se deve fazer. As novas lideranças líbias não devem – como fizeram os EUA no Iraque – afastar e excluir a burocracia governamental porque trabalhava para o tirano.
Ela é necessária e trabalhará sob nova direção. As forças armadas e a polícia devem passar por um processo minucioso de depuração, mas não devem ser desmobilizadas. Os militares não mercenários também guardarão seus postos na nova ordem política. Como aprenderam os EUA no Iraque, é muito mais complicado e caro montar novas forças a partir do zero.
Toda a sociedade líbia deve participar do dia a dia da construção do novo país – ou os excluídos recorrerão à violência. Os planos de transição e as decisões da nova liderança devem ser os mais transparentes possíveis. A Líbia leva uma vantagem sobre o Iraque: embora a Otan tenha bombardeado o país, sua infraestrutura não foi arrasada como a iraquiana sob o peso de duas guerras – a do Golfo, em 1991, e em 2003.
A comunidade internacional terá papel-chave na tarefa de encaminhar esse reinício da vida na Líbia. A ONU e os principais líderes mundiais devem atuar para viabilizar consensos políticos entre as correntes vencedoras, de modo a evitar ou, pelo menos, minimizar possíveis conflitos ou confrontos fratricidas.